Economia
O futuro é nosso?
Aos 70 anos, a Petrobras continua no centro do debate sobre o modelo de desenvolvimento do Brasil


Criada há 70 anos, fruto de uma entusiasmada campanha nacionalista, a Petrobras ocupou desde o primeiro momento o centro da disputa pelos destinos do Brasil. A batalha entre os defensores de um projeto de desenvolvimento autônomo e os vendilhões do patrimônio público repetiu-se ao longo do tempo de várias maneiras, com o pêndulo a mover-se para um lado e para o outro, a depender das circunstâncias. Na mais recente versão dessa guerra “santa”, vitória da turma que sempre sonhou em subordinar a política interna aos interesses internacionais. A Operação Lava Jato e o golpe contra Dilma Rousseff pavimentaram a estrada para a ofensiva sem precedentes sobre a estatal, cujo desmonte recente ameaça agora o papel da empresa na transição sustentável, essencial ao País e ao planeta. A companhia resiste aos ataques, mas seu futuro depende do êxito no enfrentamento de um duplo e gigantesco desafio, o de reconstituir a estrutura dilapidada desde 2015 e converter-se em uma empresa de energia, não exclusivamente petrolífera.
A transformação só fará sentido, no entanto, se no processo a Petrobras cumprir uma missão fundamental, consolidar a autossuficiência na produção e no suprimento de produtos energéticos a preços finais acessíveis ao conjunto da sociedade, em especial aos menos favorecidos. É imprescindível ainda a rearticulação com a indústria doméstica, não só para suprir insumos à produção e combustíveis ao sistema de transporte, mas para retomar a tarefa de importante norteadora do desenvolvimento, por meio de estratégias, inovações, parcerias e encomendas ao parque produtivo local. É o que se espera da maior empresa do País, que constitui também uma das mais importantes demonstrações da capacidade de realização do seu povo, no mais alto nível e em consonância com os padrões internacionais.
O slogan que marca a defesa do maior empreendimento tecnológico do País – Imagem: Arquivo/CNP
Os 67 ativos da Petrobras vendidos nos últimos sete anos somam 280,4 bilhões de reais e equivalem a 40% do setor de exploração e produção de petróleo. Do total de privatizações, 62,4% foram concretizadas no governo Bolsonaro, contabilizou o Observatório Social do Petróleo em levantamento realizado entre 2015 e junho de 2022. Caso todas as refinarias que faziam parte do plano de venda de ativos da empresa no governo Bolsonaro tivessem sido privatizadas, a gasolina custaria 19% e o diesel 12% acima dos preços atuais, calculou o OSP em junho. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defende a reestatização das refinarias vendidas no governo Bolsonaro. Para o diretor-técnico do Ineep, Mahatma dos Santos, o objetivo reforça o programa político aprovado nas eleições, que acenava com a interrupção do processo de venda de ativos estratégicos da companhia, e a visão de que a cadeia produtiva de óleo e gás é mais eficiente quando integrada. “A venda de ativos, como as refinarias da Bahia, do Amazonas e do Ceará, implicou em práticas comerciais descoladas do interesse público nacional e em preços superiores aos praticados pela Petrobras. Isso se explica pela menor eficiência desses atores privados, que operam com forte capacidade ociosa e porque se criaram monopólios privados nessas regiões”, afirma Santos.
Segundo o presidente Jean Paul Prates, a Petrobras ruma à solução dos problemas deixados pelas administrações anteriores e dos desafios atuais, em especial da transição energética, com destinação de 15% dos investimentos de 78 bilhões de dólares para energias verdes entre 2024 e 2028, em contraste com os 6% previstos no plano anual elaborado pela diretoria anterior. A transição contempla acordos com outras empresas, com destaque para a WEG e a Vale, para projetos de energia solar, eólica em terra e no mar e produção de hidrogênio. Para o diretor de Transição Energética e Sustentabilidade da petroleira, Maurício Tolmasquim, a necessidade de descarbonização é global e premente. Em velocidades diferentes, os 128 países responsáveis por 88% das emissões globais e 92% do PIB mundial têm adotado uma série de políticas, inclusive medidas duras, para a redução das emissões, entre outras, na área de transportes, central para o setor de petróleo. Alguns países pretendem banir a venda de veículos carburados e outros criam leis de incentivo à aquisição de veículos elétricos. A projeção da Agência Internacional de Energia, caso se cumpra a meta do acordo do clima assinado em Paris, é de uma queda na demanda de petróleo de cerca de 40%. “Os principais financiadores e investidores do setor, que reúnem ativos da ordem de 6 trilhões de euros, estão adotando políticas mais restritivas”, ressaltou Tolmasquim.
Maior empresa do País, a petroleira é a prova da capacidade de realização no mais alto nível
E preciso, no entanto, não ter ilusões quanto à rapidez da transição. A Petrobras prosseguirá como essencialmente uma empresa de petróleo e se adaptará para continuar a ser a principal companhia do Brasil. Em compensação, há atividades voltadas para a descarbonização que “têm enorme sinergia com nossas atividades offshore da área de petróleo, como as eólicas offshore, e estamos nos posicionando nessa área. O Brasil tem uma extensão costeira imensa e a Petrobras é a empresa que possui hoje mais projetos de eólicas offshore inscritos no Ibama, cerca de 14 gigawatts”, ressalta Tolmasquim. Outra ação relevante, sublinha, é a produção de biocombustíveis, como o diesel-R, para o transporte rodoviário, o combustível marítimo, que terá de imediato cerca de 10% de composição renovável, com tendência de crescimento, e ainda a amônia verde, que deverá ser destinada ao transporte ferroviário. “O grande filão é o combustível aéreo renovável, que todas as companhias precisam e não tem quem produza. Também estamos de olho na área petroquímica, na qual devemos entrar com parceiros”, ressaltou. No setor de petróleo, a expectativa da Petrobras de explorar a polêmica Margem Equatorial ganhou novo alento com a recente concessão de licença ambiental do Ibama em relação à Bacia Potiguar.
A oferta de derivados de petróleo a preços “abrasileirados”, como defende o presidente Lula, e a reestatização de refinarias e outros ativos estão interligadas. A privatização da Refinaria Landulpho Alves, na Bahia, a primeira do País, ocorreu em 2021. O negócio foi fechado um mês após Bolsonaro retornar do Oriente Médio com presentes e joias avaliadas em milhões de reais, que o ex-presidente tentou incorporar ao seu patrimônio pessoal, segundo farta documentação exposta pela mídia. A RLAM foi adquirida pelo grupo Mubadala Capital, dos Emirados Árabes, por 1,65 bilhão de reais, valor considerado simbólico.
A Petrobras precisa retomar o projeto de se tornar uma empresa de energia, não só de petróleo. A recompra das refinarias é parte dessa estratégia – Imagem: Saulo Cruz/MME, Ari Versiani/MP e Arquivo/Agência Petrobras
A prática de preços razoáveis para indivíduos e empresas passa pela superação da política dos Preços de Paridade de Importação, sistemática aplicada nos governos Temer e Bolsonaro, que atualizava os preços internos segundo a variação da cotação do petróleo em dólares e a oscilação da moeda estadunidense, e transformou a companhia em uma produtora de lucros e dividendos para os acionistas, boa parte estrangeiros. O “abrasileiramento” dos preços, confirmado por Prates, não se restringe a uma questão administrativa. Implica reverter, em grande medida, a venda de refinarias, que transferiu para particulares, por meio de privatizações, 25% da produção de derivados, e requer ainda a recomposição da rede de distribuição própria. Desde o início do terceiro mandato de Lula, a Petrobras não opera segundo a política de preços da PPI. A nova diretriz é resultado de elaboração interna de técnicos das áreas financeira e comercial, mas há quem a considere uma continuidade do modelo anterior. “O fim da PPI é uma falácia”, aponta o vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras, Felipe Coutinho.
Outros analistas levam em conta as limitações impostas à companhia, na política de preços, em consequência da venda de uma parcela importante do parque de refino e da estrutura de distribuição, que criou um novo contexto, econômico e político, para a definição da tabela de derivados. A Petrobras não pratica a PPI, mas ainda a considera uma referência, destaca o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp. “Isso desagrada a quem acha que deveria ser uma política mais orientada pelo custo. Eu acho que esse encaminhamento é, entretanto, inviável no momento atual, devido ao resultado do processo de privatização, tanto na parte do refino quanto naquele de distribuição. A gente vai pagar essa conta agora.” Ficou claro, acrescenta, que no período em que os distribuidores privados tiveram interesse em driblar o mercado e quiseram forçar a Petrobras a subir o preço, eles boicotaram a oferta. A especulação contra a empresa correu solta, apontam várias evidências. Em agosto, a Federação Única dos Petroleiros denunciou um “ataque especulativo de agentes econômicos, em um movimento de formação de estoques para forçar um suposto desabastecimento do mercado interno de combustíveis”. Desde a queda da PPI em maio deste ano, declarou o coordenador-geral da FUP, Deyvid Bacelar, refinarias privadas reclamam dos preços praticados pela petroleira, inclusive no Conselho Administrativo de Defesa Econômica. A Abicom, a associação que reúne os importadores, também reclamou, alegando que a companhia opera com preços baixos e pratica dumping no mercado.
A reestatização do refino é necessária para consolidar uma política de preços condizente com as necessidades internas
O problema, ressalta Ruas, é político. Hoje, a Petrobras não pode adotar uma estratégia de preços que desconsidere por completo os outros players, dependentes do preço de importação, justamente porque ela pode ser encurralada por aquele grupo. “Eles podem manejar o mercado de maneira a forçar o desabastecimento e responsabilizar a Petrobras pela falta ou insuficiência de produtos, tanto econômica quanto politicamente.” Este é o cenário no qual a companhia se encontra hoje, diz o economista. Precisa barganhar o tempo todo com esses agentes para tentar estabelecer um mecanismo de ajustes mais suaves de preços e não ficar vulnerável aos ciclos intensos do mercado, mas, ao mesmo tempo, não consegue prolongar esse processo de controle de preços por muito tempo porque pode sofrer um revés político.
“Sou muito pessimista quanto à reestatização, mas torço muito para estar errado e que eles consigam encaminhar uma solução. A RLAM não pode ficar como está, quem sofre com isso é o povo da Bahia, o trabalhador”, ressalta o engenheiro aposentado da Petrobras e ex-consultor parlamentar Paulo Cesar Ribeiro Lima. O problema é que a Acelem, do Grupo Mubadala, também comprou o terminal Madre de Deus, os dutos e os outros terminais terrestres, além da refinaria. Abastecer o mercado da Bahia sem essa empresa tornou-se inviável. O Porto de Aratu, no mesmo estado, só comporta cargas pequenas. Há dois caminhos para resolver o problema, elenca Lima: o Estado regular os preços do monopólio privado regional, como faz com os preços da eletricidade no caso da Eletrobras, ou readquirir a refinaria e a estrutura que a acompanha. A PPI, lembra o engenheiro, não saiu do papel nos últimos anos do governo Bolsonaro. “Na prática, não vejo grande mudança. Acho até que teve uma pequena melhora, sim, mas não é o que o Brasil precisa. Ficou muito vago, a Petrobras pode praticar o que ela quiser.”
A mudança da política de preços permitiu uma redução ao consumidor e se refletiu no recuo da inflação – Imagem: André Motta de Souza/Ag. Petrobras e Ricardo Wolffenbuttel/GOVSC
A estatal flexibilizou a política de preços e retirou o preço de paridade de importação como única referência, ressalta Santos. A companhia introduziu elementos como as condições dos mercados locais, custo de produção e rentabilidade. Essa mudança possibilitou, ao menos nesses primeiros meses, uma redução no patamar de preços praticados no mercado interno. Contudo, o fato de a atual estrutura da cadeia de abastecimento nacional, em especial da produção de derivados, ainda ser dependente de importações expõe o mercado à volatilidade internacional, que segue um fator decisivo na cotação dos derivados. “Em outras palavras, os preços internacionais continuarão, pelo motivo apontado, como elemento determinante para os preços internos, assim como elementos conjunturais, geopolíticos e comerciais internacionais”, acrescenta o diretor-técnico do Ineep.
Retomar as refinarias desestatizadas não é, contudo, uma tarefa trivial, sublinha Ruas. “eOs agentes privados que as compraram conheciam os riscos. Quem comprou a Refinaria Landulfo Alves em dezembro de 2022 sabia que iria enfrentar um governo com alguma estratégia de reestatização. E, se estava ciente disso, entrou com uma estratégia especulativa de comprar barato e vender caro”, dispara o economista. “Não entrou com nenhuma estratégia operacional, mas com um objetivo financeiro, de comprar e revender.” A conclusão inevitável é que, no momento atual, os compradores das refinarias privatizadas gostariam de vendê-las o mais rápido possível, antes que seus preços caiam ainda mais. Uma pressa, cabe sublinhar, que coincide com as intenções de reestatização declaradas por Silveira, mas diverge do interesse objetivo do Estado, de pagar o menor preço possível para reaver os ativos vendidos a preços subavaliados.
A empresa destinará 15% dos investimentos à transição energética, em contraste com os 6% previstos pela administração anterior
A transição da Petrobras de companhia exclusivamente petrolífera para uma empresa de energia é mais complicada do que parece, aponta o professor da USP e ex-diretor da Petrobras Ildo Sauer. “A transição ainda não é transição. Tem havido maior participação das renováveis no acréscimo do consumo, sem um decréscimo do petróleo, nem do carvão, nem do gás. Não ocorre substituição.” As renováveis, diz o professor, exceto a hidráulica, aproximam-se hoje de um limiar de 5% de participação no consumo. Depois de atingir 5% do consumo mundial, o petróleo levou décadas para se aproximar de 50%. Há lentidão porque existe todo um aparato de produção, de logística, de consumo e de uso a ser substituído. “Quando a Petrobras completou 50 anos, eu era diretor e disse que o centenário da empresa, em 2053, será possivelmente com pouco, ou nenhum, petróleo. Só que o papel da Petrobras permanece de pé, enquanto instituição organizadora do elemento mais importante para a produtividade, o sistema energético. Sem sistemas energéticos, os sistemas industrial, de mobilidade e transporte não funcionam, sem isso não há produtividade nem desenvolvimento econômico”, afirma Sauer.
Prates, presidente da empresa, promete ampliar os investimentos em renováveis – Imagem: Tomaz Silva/ABR
A solução dos problemas está menos nos indivíduos do que nas estruturas, em especial naquelas de natureza política, destaca o pesquisador. “A Petrobras continua de pé como um grande instrumento. Ela cumpre o papel que o governo lhe designar. Não adianta atacar a Petrobras nem seus dirigentes. Eles têm limites. Eu estive lá, e sei que a empresa tem de atender ao TCU, à CVM, ao Cade, à Lei das S.A., à Lei Sarbanes-Oxley, dos EUA, e à SEC. Você tem limites de atuação e não pode fugir disso. Então não adianta achar que o problema está na diretoria da Petrobras. O problema está em Brasília, está no modelo, está na política energética, na política social, na política de desenvolvimento econômico e na política ambiental. É importante ter uma política ambiental, garantir o equilíbrio termodinâmico da atmosfera, em conjunto com a dinâmica da sociedade. Esse dueto é importante, conjugar essas duas coisas é o principal desafio pela frente.” •
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O futuro é nosso?’
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