Política
O exército da desinformação
O apoio à apuração paralela das urnas pelas Forças Armadas não é espontâneo, mas obra da máquina de fake news


A pesquisa A Cara da Democracia, produzida pelo INCT-IDDC na segunda quinzena de setembro, mostra que 54,3% dos brasileiros apoiam uma apuração paralela das eleições feita pelas Forças Armadas. Esse dado, que revela de imediato uma opção de parte da população por um arranjo de certa forma inédito na história eleitoral brasileira, a tutela do processo pelos militares, precisa ser analisado e bem observado à luz do sistema de desinformação que se estrutura e se consolida com a ascensão do bolsonarismo.
A desinformação sistemática e sistematizada do bolsonarismo e do governo Bolsonaro tem produzido uma realidade paralela no País, o que, na verdade, provoca um estado de dúvida, insegurança e medo na população. O ecossistema de fake news tem na tríade crenças + valores + medos um componente potente que é trabalhado e bem utilizado. Portanto, esse apoio não é uma preferência pura e simples, é uma percepção construída meticulosamente por meio desses “ingredientes” principais na produção dos discursos.
Os eleitores não acordaram, num belo dia, e pensaram: “Achamos interessante que as Forças Armadas façam uma apuração paralela da eleição”. Essa percepção, essa vontade, esse apoio, tudo foi cuidadosamente construído discursivamente e inoculado na população como vírus, a partir da operação desse sistema de desinformação, com o bombardeio minuto a minuto de fake news, lives e declarações do presidente, notícias falsas nos portais fake, ações de pastores nos cultos. Não é obra do acaso, tampouco uma percepção firme.
Isso nunca esteve no âmbito da discussão dos brasileiros em relação às eleições no País. Tal questão jamais fora colocada, não foi minimamente considerada, nunca existiu, na verdade. Esse novo “atributo” das Forças Armadas foi uma construção, mais uma, da realidade paralela do sistema de desinformação bolsonarista. Nesse sentido, quero destacar aspectos importantes, em termos da produção discursiva, que me parecem muito relevantes para compreendermos este cenário.
O primeiro refere-se ao ataque sistemático às urnas. Desde 2018, com breves intervalos, Bolsonaro desqualifica constantemente as urnas eletrônicas, o sistema eleitoral. Fala em fraude e ineficácia. No monitoramento que realizamos no âmbito do Observatório das Eleições, o peso desses ataques é bastante evidente nas redes sociais. O termo “urna eletrônica”, no campo bolsonarista, está sempre associado a um aspecto pejorativo e de dúvidas sobre a sua eficácia, o que gera bastante engajamento. Em suas lives, Bolsonaro lança, reiteradamente, dúvidas sobre a eficiência das urnas, além de insinuar abertamente que qualquer resultado, a não ser a sua vitória, será fraudulento. Esse discurso, meticulosamente produzido, tem uma capilaridade enorme, sendo disseminado pelas redes sociais, ganhando espaço em cultos e programas religiosos. Até mesmo a mídia tradicional (tevês, rádios e jornais) passa a responder aos ataques do presidente.
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O segundo aspecto é o medo da violência política, que tem conquistado espaço com os sucessivos casos, entre eles o assassinato de opositores do bolsonarismo. A partir desse medo, que fica evidente na população – o chamado “voto envergonhado” é um indício importante desse ânimo –, o discurso relativo às Forças Armadas procura mostrá-las como garantidoras de certa ordem e como instrumentos de força a coibir a violência ou a fraude. Portanto, constrói-se uma percepção positiva dos militares, o que pode levar à constatação por parte da população de que, se existe possibilidade de fraude, a apuração paralela se justifica de alguma forma.
Por fim, destaco a avalanche de produções a mostrar resultados de pesquisas falsas. Nos últimos dias, circulou pelas redes sociais um suposto recorte de uma reportagem do Jornal Nacional que divulgava o resultado de uma pesquisa Ipec, na qual Bolsonaro aparece bem à frente de Lula. O vídeo é uma mostra do estrago produzido pelas deep fakes. Em linhas bem gerais, esse recurso utiliza inteligência artificial para modular a voz e a expressão facial dos indivíduos, o que possibilita colar em qualquer personagem qualquer tipo de discurso. O vídeo com a suposta reportagem do JN impressiona pela qualidade. Para um leigo, é impossível perceber que se trata de conteúdo fraudulento, mentiroso, inventado. Vale lembrar que um recurso com essa qualidade não é de baixo custo, ou seja, há ainda em operação um forte esquema de financiamento para produção e disseminação de fake news no Brasil.
Esses conteúdos falsos aliam-se às declarações do presidente da República de que as pesquisas realizadas por institutos de maior tradição – como Datafolha e Ipec – são mentirosas e que não reproduzem a realidade. Em contraposição, Bolsonaro cita reiteradamente o tal “datapovo”, ou seja, aqueles apoiadores que o recebem em eventos públicos. Pois bem, esse tipo de conteúdo e de declaração causa uma grande confusão em quem é bombardeado por declarações oficiais, pois as afirmações de figuras públicas têm grande impacto na avaliação e na construção da percepção dos cidadãos em relação aos fatos.
Portanto, esse apoio à apuração paralela resulta também, sem dúvida nenhuma, desse poder de criação e disseminação de discursos e percepções do real, fruto do complexo sistema de desinformação consolidado sob o bolsonarismo no Brasil. Na terra da realidade paralela, nada é aleatório. •
*É jornalista, doutora e mestre em Linguística e Língua Portuguesa, com foco na Análise do Discurso. É pesquisadora do Observatório das Eleições (INCT IDDC), pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp) e pesquisadora do grupo de estudos Multilinguismo e Interculturalidade no Mundo Digital (CLE/Unicamp).
Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: https://observatoriodaseleicoes.com.br.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O exército da desinformação”
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