Política

O encontro democrático de Mano Brown e Haddad

Ao escutar Brown, Haddad produziu um discurso novo, realizando uma atualização geracional da democracia. Impasses demandam liberdade e não o recuo a um modelo autoritário

Mais do que vaticinar a derrota, a dura provocação de Brown colocou em outra temporalidade o momento que o país atravessa
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Um dos momentos mais expressivos desta eleição se deu no comício do candidato do PT, Fernando Haddad, promovido por artistas no Rio de Janeiro, sob os Arcos da Lapa, na terça-feira 23. Após diversas falas de nomes importantes da cultura do País, que advertiam para os riscos que a candidatura de Bolsonaro representa para o futuro da democracia brasileira, esperava-se de Mano Brown algo parecido.

No entanto, o rapper abriu sua intervenção de forma perturbadora, avisando que “não gosta de festa”, deixando clara sua insatisfação com a falta de tradução do mal estar social de boa parte da população que não encontrara, até aquele momento, vocalização. De fato, até ali, as intervenções falavam da perspectiva de quem percebe o risco de ruptura da democracia liberal, mas não evocavam a visão de quem vive nas periferias das grandes metrópoles e que se sentem esmagadas pela violência cotidiana, pelo desemprego, e por uma intolerável ausência de acesso à política.

MB foi didático quando disse: “Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, me amavam, que me serviam o café de manhã, que lavavam meu carro, que atendiam meu filho no hospital tenham se transformado em monstros (…). Se em algum momento a comunicação do pessoal daqui falhou, vai pagar o preço”. E concluiu: “Se não conseguir falar a língua do povo, vai perder mesmo.”

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Mesmo afirmando que estava ali representando apenas a si mesmo, MB sinalizava a insatisfação de toda uma parcela da população que não aceita mais ser tratada como clientela. Por isso, o primeiro grande deslocamento produzido por sua fala foi a de alertar quanto à necessidade de alterar profundamente a forma de participação popular no sistema político brasileiro.

A fala final de Brown, admitindo que essa eleição já estava decidida, causou grande desconforto, chegando a suscitar um ensaio de vaias, logo contida por uma audiência – de cerca de 70 mil pessoas – que apesar de perplexa, compreendia que algo de decisivo estava se passando ali.

Mais do que vaticinar a derrota, a dura provocação de MB colocava em uma outra temporalidade o momento que o país atravessa: para além do desfecho desse processo eleitoral, e na verdade qualquer que seja seu resultado, resta evidente a urgência de se admitir o erro, não tanto aquele constantemente cobrado ao PT pelos economistas que falam pelo mercado, mas o que se refere à relação com a sociedade e, muito especialmente, com os novos sujeitos que o próprio ciclo do PT no governo federal ajudou a dar vida.

No fundo, sua fala colocava sob nova luz os termos do debate atual, tornando mais legível a insatisfação popular com o PT e com o sistema político como um todo. Seu objeto é menos a indignação com a corrupção e mais a falta de direito à voz, de acesso real à política, que tem sido barrado por uma combinação perversa de máquinas eleitorais que em muitos casos se combinam com o domínio exercido por milícias. A atrofia do acesso à política é também inversamente proporcional à hipertrofia da presença das igrejas neopentecostais – e de sua linguagem – na vida pública do país nos últimos anos.

A fala de Brown alterou completamente o roteiro do evento. De repente, a agenda do fantasma da ditadura e a lembrança de 64 e de 68 se viu atualizada pelo tempo presente de quem vive sob o silêncio que se impõe sobre as periferias. O desconforto foi evidente e ficou no ar. Aflito, Caetano pegou o microfone e ensaiou uma articulação entre os dois tempos, entre as duas gerações, a dele e a de Brown.

Chico fez o mesmo, inclusive deixando de lado sua habitual timidez. Mas o desconforto não passava. De fato, somente Haddad, o último a falar, conseguiu cortar o nó górdio. E ao fazê-lo realizou notável tarefa de tradução, abrindo passagem para uma poderosa virada em sua campanha.

O candidato não tinha como deixar de responder à provocação de Bronw e começou por chamar a atenção para a importância do rapper ter feito aquele gesto ali, naquele palco, naquele momento. Em um lance, Haddad indicava a importância daquela voz dissonante encontrar eco, ampliando dramaticamente o alcance da arena pública de sua candidatura.

Na sequência, reconheceu a validade da crítica, admitindo que o mal estar do “povão” era compreensível e precisava encontrar abrigo em sua candidatura. A saída, portanto, exigiria mais do que simplesmente política de emprego, acesso à universidade e ampliação do poder de consumo, remetendo à radical democratização da participação popular.

Ao conseguir escutar atentamente as palavras de MB, Haddad produziu um discurso novo, que lhe conferiu luz própria, realizando, em um instante, uma atualização geracional da democracia brasileira. A resposta aos impasses da democracia demanda mais liberdade e participação e não o recuo a um modelo autoritário.

A passagem estava feita: as pungentes manifestações de preocupação com os destinos da democracia de Osmar Prado, Marieta Severo, Elisa Lucinda, Aderbal Freire, Conceição Evaristo e tantos outros, não foram em vão. Agora, elas se encontram com uma nova geração, tão bem representada pelo rapper e pelo professor universitário.

*É professor do departamento de Ciências Sociais da PUC-RJ

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