Política

O direito (e o dever) de informar

A minha remoção não intimida. Ao contrário, reafirma a necessidade de discutir os rumos do Brasil de forma aberta e crítica

Palácio do Itamaraty, em Brasília
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O texto desta semana seria, sem ironias, sobre a relevância ou não da escrita hoje. Apenas o iniciei, soube de minha exoneração, seguida de uma intensa semana de discussões, inclusive públicas, envolvendo meu caso. Aquele texto é já obsoleto: escrever segue importantíssimo.

O direito de informar é garantido pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso IV, que afirme ser livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimado, e logo em seguida, no inciso IX, que afirma a liberdade de expressão intelectual, artística e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Já o inciso XIV do mesmo artigo assegura a todos o acesso à informação. A Carta de 1988 procurou garantir amplos diretos tanto aos produtores de informação como a seu público. Imagino o quanto haveria de coincidência, quanto de ironia histórica, que os constituintes tenham atribuído o mesmo número 5, o do funesto Ato Institucional, ao artigo mais generoso da nova constituição.

No quadro infraconstitucional, ou seja, o das leis e regulamentações, a orientação tem sido a mesma. Consultei formalmente a assessoria de imprensa do gabinete do Itamaraty, antes de publicar minha primeira coluna, e obtive resposta condizente com os artigos citados, com a adição de um esclarecimento que diga tratar-se de minhas opiniões, e não as do Itamaraty. O disclaimer segue no canto superior direito da coluna, desde o primeiro dia.

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Por ora, basta de Direito. Se houvesse base legal para punição, as vias formais, como a abertura de um processo administrativo, teriam sido acionadas. Não foram. Pois não se trata aqui do direito que tenho de expressar minhas opiniões, mas de um suposto dever de lealdade canina à instituição e ao governo do momento que permitiria a expressão apenas da opinião elogiosa, como se tem observado.

Nada mais nefasto aos princípios constitucionais que ainda nos regem, no que toca ao acesso à informação. Uma razão do mal-entendido, ou da má-vontade, é enxergar no perfil do diplomata a rigidez de quem apenas cumpre instruções sem questionamentos e de cuja boca não saem senão notas oficiais do Ministério das Relações Exteriores. O burocrata vive, no entanto, uma tensão entre a hierarquia, que deve ser respeitada, e obrigações morais de que não pode se eximir. O caso mais extremo dessa tensão passou-se nos julgamentos de nazistas em Nuremberg, em desfavor daqueles que cometeram atrocidades “por ordem superior”.

Muito mais mundana é minha situação. Como funcionário público, sempre desempenhei as instruções recebidas dentro das minhas melhores capacidades. Nunca descumpri uma orientação das chefias. Nem todas foram agradáveis. Tive o desprazer de lidar com notórios corruptos, políticos que envergonham o país no exterior (não é opinião: pesquisa internacional recente considera os políticos brasileiros os piores do mundo). No entanto, das nove às cinco, e às vezes em horários esdrúxulos, sempre cumpri com minhas funções.

Não somos, ou talvez não devêssemos ser, apenas nossos empregos. Pessoa escreveu, por meio do heterônimo-engenheiro Álvaro de Campos, que “sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo direito a sê-lo”. Seja um diplomata, um funcionário de prefeitura, de banco ou de qualquer outra profissão, todos temos o direito à loucura, à divergência, em nossas vidas fora do expediente. E isso inclui expressar-se.

O caso dos funcionários públicos tem, entretanto, suas idiossincrasias. Mais do que um direito, muitas vezes é dever moral do funcionário tratar publicamente de questões que fazem parte de seu dia a dia. A imprensa brasileira não tem nem o interesse nem os meios para cobrir todas as decisões que afetam a vida dos brasileiros. Ao nos expressarmos publicamente, estamos apenas cumprindo o artigo 5º da Constituição, que garante o acesso à informação.

Tive o privilégio, ao longo dos meus estudos e da carreira no Itamaraty, de conhecer excelentes profissionais que acabaram nas mais diversas áreas, sobretudo no governo. Foi a partir de conversas com essas pessoas, nos corredores do ministério e em mesas de bar, além dos livros, é claro, que aprendi e sigo aprendendo como funciona e o que acontece com o Brasil.

A cobertura da imprensa sobre assuntos de que tenho algum conhecimento é pífia, geralmente incompleta e seletiva. A população tem direito a opiniões informadas, não somente àquela filtrada pelas redações do oligopólio midiático brasileiro. Trata-se de um princípio fundamental para o exercício do debate e da democracia: a informação correta, crítica, a informação que não é propaganda deveria ser um direito de todos e não privilégio de uma casta.

A decisão do ministro Aloysio Nunes, ao remover-me desta cidade como punição, não intimida, pelo contrário, reafirma para mim a validade e a necessidade de discutir criticamente os rumos do País.

Se quero saber da educação, espero que um funcionário do MEC ou um diretor de escola escreva seu texto. Política indigenista, prefiro ler alguém da Funai do que o editorial do Estadão.

Com a exceção dos militares, que deveriam abrir a boca somente para pedir desculpas, a participação dos envolvidos em questões públicas no debate é fundamental. Colegas, vamos escrever!

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