Glenn Greenwald

O direito dos animais precisa se tornar prioridade para a esquerda

Nenhum progresso econômico, social ou ambiental pode ser alcançado sem a luta pela causa animal e o combate à pecuária industrial

( Foto: iStock)
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Frases de efeito e hashtags inspiradoras não são provas do compromisso de alguém com os valores que declara publicamente. Uma causa só é autêntica quando se está disposto a agir, a fazer o que é necessário para alcançá-la.

Com isso em mente, não sobra qualquer justificativa para que a esquerda continue menosprezando ou, pior, ignorando a causa animal e os males provocados pela pecuária.

A tortura e o abate diário de bilhões de animais sencientes têm impacto sobre as catástrofes climáticas, o racismo, os abusos trabalhistas, o meio ambiente e outras ameaças à saúde pública. Não há como combatê-las sem enfrentar os males desta indústria. Apesar disso, com muita frequência, a luta pelos direitos dos animais é tratada na política de centro-esquerda como uma causa de luxo, que preocupa apenas a classe média.

A tortura e o abate diário de bilhões de animais sencientes têm impacto sobre o clima, o racismo, os abusos trabalhistas, o meio ambiente e outras ameaças à saúde pública

Essa mentalidade defende que devemos começar a nos preocupar com a maneira como tratamos os animais apenas depois de abordarmos as privações dos humanos. Mas esta é uma falsa e perigosa dicotomia. A pecuária industrial é uma das principais causas do agravamento de cada uma dessas ameaças à felicidade humana e a uma sociedade justa. Enquanto as fazendas industriais continuarem a ser o principal meio de alimentar o planeta, não é apenas difícil, mas impossível fazer um progresso significativo em qualquer uma dessas outras áreas.

Um bom sinal é que essa causa, embora ainda vista em meu setor como menos importante, está começando a atrair apoio em todo o espectro ideológico e demográfico.

Nos Estados Unidos, provocaram muita raiva os horríveis experimentos com cães conduzidos pelo governo sob o comando do Dr. Anthony Fauci, e membros do Congresso de ambos os partidos estão se unindo para investigar. No Brasil, políticos à esquerda — como o vereador carioca Marcos Paulo e o deputado federal David Miranda* [Miranda é caso com Glenn Greenwald, coautor deste texto], ambos do PSOL — e à direita, como o deputado Fred Costa (Patriota-MG) fazem da causa animal uma de suas principais prioridades legislativas. E um das melhores?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> vídeos explicando a centralidade dessa pauta para todos os grandes problemas sociais e econômicos veio de Thiago Torres, o Chavoso da USP, um jovem morador de favela negro que magistralmente mostrou por que nenhum progresso pode ser feito sem abordar os males da agricultura industrial.

Muito mais progresso, contudo, é necessário para elevar essa causa. O imperativo da moralidade por si só deveria ser suficiente para colocar essa causa no topo da agenda da esquerda. As condições cruéis e torturantes impostas a animais altamente inteligentes e socialmente complexos – porcos, por exemplo, são tão inteligentes e socialmente sofisticados quanto cães – provocam dor e sofrimento tão extremos que as gerações futuras, em breve, olharão para trás com horror e perplexidade vendo como toleramos essa tortura industrializada.

Quando assistimos ao vídeo de um segurança mal pago em um supermercado espancando um cachorro até a morte, ou quando ouvimos falar de um ocidental rico que atira e mata um animal majestoso da selva africana por esporte, reagimos corretamente com raiva, exigindo severa punição. Esses atos são vistos como atrocidades morais. No entanto, que argumento racional, ou mesmo justificativa emocional, existe para tolerar ou, pior, apoiar uma crueldade muito maior imposta diariamente a porcos, vacas, patos, galinhas e tantas outras belas espécies – aos bilhões, ao redor do mundo? Só a cegueira intencional nos permite evitar essa indignação.

Muitas pessoas foram criadas sob as virtudes da agricultura familiar. As fazendas industriais, contudo, são uma perversão completa das fazendas familiares. Elas tratam os animais sencientes não como o que são – criaturas capazes de sentir níveis profundos de dor, sofrimento, tristeza e perda – mas como mercadorias e objetos, aos quais temos o direito de torturar à vontade. Não há nada de natural, bucólico ou belo nas fazendas industriais, elas são vetores de doenças e aflição. Os animais são mantidos em minúsculas gaiolas, empilhados uns sobre os outros, em depósitos de metal mal ventilados e cheios de antibióticos para distorcer seus corpos, a ponto de muitos não conseguirem nem mesmo ficar em pé.

Aqueles que acreditam no valor da agricultura familiar deveriam ser os mais ferrenhos opositores da pecuária industrial, uma vez que os gigantes do setor – Smithfield e JBS – estão consumindo toda a cadeia de abastecimento global, escravizando ou extinguindo completamente a agricultura familiar. As fazendas industriais são uma das inovações mais amorais, sociopáticas e dolorosas que a humanidade já criou.

Mesmo para aqueles que ainda não reconhecem a atrocidade moral desta indústria (e para quem continua a crer que não podemos lutar pelo fim do sofrimento animal antes de acabarmos com o sofrimento humano) não há justificativa para ignorar essa causa.

Desmatamento e perda da biodiversidade

Segundo dados do Atlas Florestal Global da Universidade de Yale, a pecuária sozinha é responsável por 80% da devastação da Amazônia. Herança da ditadura militar, a ocupação do território amazônico pelo rebanho bovino fez do gado o principal agente de colonização da região. Segundo o IBGE, a região é hoje habitada por cerca de 85 milhões de bois, o equivalente a cerca de três vezes a sua população humana. Um outro estudo recente afirma que entre 93% e 95% de 14 mil espécies de animais e plantas da Amazônia já foram impactadas pelas queimadas. A floresta, que estava quase intacta no início da década de 70, perdeu cerca de 17% de sua cobertura original, de acordo com o INPE.

Embora possa não parecer muito, cientistas estimam que a maior floresta tropical do mundo precise de cerca de 80% de sua área preservada para manter o equilíbrio. Portanto, se o desmatamento continuar, a Amazônia pode atingir  o “ponto de não retorno”, a partir do qual começará a se transformar em savana. Alguns cientistas afirmam que este processo já teve início.

A criação de animais para consumo alimentar totaliza 14,5% das emissões de CO2 causadas pela atividade humana, de acordo a FAO

Enquanto isso, o Pantanal, maior área úmida tropical do mundo, está secando. O período de cheia que durava seis meses, agora dura apenas dois. Segundo dados do MapBiomas a região perdeu 74% de sua superfície de água e teve 57,5% de seu território queimado pelo menos uma vez nos últimos trinta anos. No mesmo período, houve um aumento de 261% nas áreas de pastagem e lavouras, sobretudo plantações de soja, na região. Um outro artigo estima que no os incêndios teriam afetado 65 milhões de animais vertebrados nativos e 4 bilhões de invertebrados do bioma, inclusive espécies emblemáticas como as onças-pintadas, o tamanduá-bandeira e a arara-azul.

Já o Cerrado, a savana mais rica em biodiversidade do mundo, perdeu pelo menos 50% de sua cobertura original. Segundo dados também do MapBiomas, 44,2% do território foi transformado em áreas de pastagem de gado e lavouras de soja. Engana-se quem pensa que estas são indústrias distintas. Cerca de 80% da soja produzida no Brasil e no mundo destina-se à alimentação de animais explorados pela pecuária industrial, especialmente porcos, frangos, galinhas “poedeiras”, vacas “leiteiras”, e peixes, criados em cativeiro ou confinamento intensivo. Além disso, novo estudo revelou que as áreas de griladas por pecuaristas, que antigamente eram abandonadas apenas depois de terem seus solos e pastagens degradadas, agora são rapidamente vendidas a altos preços para os produtores de soja. Desta forma a produção de soja empurra a criação de animais mata adentro.

Crise climática

A criação de animais para consumo alimentar totaliza 14,5% das emissões de CO2 globais causadas pela atividade humana, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, a FAO. No Brasil, 72% do total de emissões estão ligadas a atividades do setor agropecuário. De forma direta, o setor de proteína animal gera 28% dos gases de efeito estufa emitidos no país. Os outros 44%, se devem a mudanças no uso do solo encabeçadas pela derrubada de floresta amazônica para abertura de pastagens. Os dados são do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, que calculou ainda a emissão por municípios. Sete dentre as dez cidades brasileiras que mais contribuem para o aquecimento global estão na Amazônia Legal. As campeãs são São Félix do Xingu e Altamira (PA), e Porto Velho (RO), que também lideram o ranking do desmatamento.

Segundo um estudo recente publicado na Nature, considerado o mais completo e extenso já realizado, o resultado desse fenômeno é que algumas regiões da floresta amazônica passaram a emitir mais carbono do que conseguem absorver. Além disso, a pecuária ainda lidera as emissões dos dois outros gases do efeito estufa encontrados em maior abundância na atmosfera e muito mais potentes que o carbono. Enquanto animais ruminantes, gado, vacas leiteiras, ovelhas, são os maiores emissores de metano, animais como porcos e aves mantidos em intenso confinamento nas fazendas industriais geram imensas quantidades de dejetos que são a principal fonte de óxido nitroso. Enquanto a produção e processamento de grãos para ração animal totaliza cerca 45% das emissões do setor, alimentos de origem vegetal emitem a metade dos gases de efeito estufa, segundo estudo publicado na revista Nature.

44% do território do Cerrado foi transformado em áreas de pastagem de gado e lavouras de soja (Foto: iStock)

Racismo ambiental

Ainda pouco difundido no Brasil, o conceito de racismo ambiental foi criado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr, líder do movimento de direitos civis norte-americano. O termo descreve a discriminação que pessoas racializadas enfrentam em questões ambientais, gerando conflitos pelo acesso e controle dos recursos naturais, e distribuição desigual dos custos da destruição. Historicamente, descreve qualquer medida, prática, política pública ou corporativa que direcione atividades das quais resultem degradação, contaminação, geração de resíduos tóxicos, para territórios habitados por comunidades negras, colocando suas vidas, saúde, bem-estar e modos de viver em risco.

No Brasil, o conceito se expande para incluir comunidades tradicionais que são vítimas frequentes do agronegócio. Segundo o Atlas dos Conflitos Socioterritoriais na Pan-Amazônia da Comissão Pastoral da Terra, a expansão da pecuária e das monoculturas é responsável por 60% dos conflitos agrários, que em 42% dos casos envolvem pequenos agricultores, seguidos pelas comunidades tradicionais (ribeirinhos, seringueiros, extrativistas) com 29%, indígenas com 17% e quilombolas 11%. Além de invadir terras, a agroindústria degrada e contamina solos, águas e ar com dejetos tóxicos, fertilizantes e agrotóxicos. Esses conflitos violentos não raramente terminam em tragédia, mantendo o Brasil entre os países mais perigosos do mundo para os defensores ambientais, de acordo com monitoramento da entidade Global Witness.

Violações de direitos humanos e trabalhistas

A pecuária industrial é ainda uma das principais atividades responsáveis por violações de direitos trabalhistas e casos de trabalho análogo ao escravo. Um relatório da Repórter Brasil revela que mais de metade dos casos de trabalho em condições análogas à escravidão flagrados no Brasil entre 1995 e 2020 aconteceram no setor da pecuária. Foram 17.253 trabalhadores do setor resgatados no período. Não à toa, a redução de direitos trabalhistas e a descaracterização do trabalho escravo tem sido um dos focos da bancada ruralista no Congresso. Trabalhadores enfrentam condições degradantes tanto na criação de gado, frangos, peixes, e até mesmo ovos livres de gaiola, sem contar as plantações de soja.

Além das fazendas, os frigoríficos onde os animais são abatidos também são focos de violações de direitos humanos. A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), afirma que o trabalho em frigoríficos é a atividade industrial que mais gera adoecimentos no país. Neles, trabalhadores estão expostos a ambientes insalubres, movimentos repetitivos acima do permitido por lei, ao frio, ao ruído excessivo, posturas inadequadas, amputações, umidade, deslocamento de carga em excesso, exposição à amônia, e jornadas exaustivas. Por isso, muitos indígenas descrevem o trabalho em abatedouros como um “trabalho que ninguém mais quer”, ao qual muitos se sujeitam por possuir baixa escolaridade e nenhuma outra opção de renda.

Também são vítimas desse setor outro grupo social vulnerável: imigrantes e refugiados, especialmente haitianos. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) mostram que o setor de frigoríficos é o que mais emprega esse grupo, especialmente no abate de suínos e aves, onde são vítimas constantes de xenofobia e racismo. Frigoríficos foram ainda focos de transmissão do Covid-19, tendo sido responsáveis pela difusão do vírus em muitas comunidades de imigrantes e indígenas que trabalham em suas operações.

Saúde pública e pandemias

Embora pesquisas ainda estejam em curso, há cada vez mais estudos indicando que a origem do Covid-19 esteja relacionada à pecuária industrial e não aos mercados úmidos como inicialmente afirmado. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), cerca de 60% das doenças infecciosas humanas e 75% das doenças infecciosas emergentes como o ebola, HIV, gripe aviária e gripe suína, SARS, zika, Nipah, são zoonóticas.

Segundo eles, a gripe aviária estaria relacionada à criação intensiva de aves, e o vírus Nipah teria surgido devido à intensificação da criação de porcos. Ainda que parte dos vírus seja originada na vida silvestre, o desmatamento e a perda de habitat causam interações atípicas entre animais silvestres e animais “de produção”, especialmente aqueles criados em confinamento intensivo nas fazendas industriais.

São eles que servirão de ponte de transmissão desses agentes para seres humanos. Como demonstrado amplamente pelo biólogo evolucionista Rob Wallace em seu livro Pandemia e Agronegócio, as pandemias proliferam cada vez mais em função da convergência entre a urbanização (que leva perda de habitats), o aumento de demanda por carne e derivados (que leva à criação em escala industrial de animais em confinamento intensivo); e as monoculturas em larga escala para produção de ração (que ocupam quase 80% da área agrícola do planeta).

Se a origem da pandemia está relacionada ao sistema de produção de carne e derivados, o consumo excessivo desses produtos é uma das principais causas de diversas comorbidades como obesidade, diabetes, hipertensão e alguns tipos de câncer. Essas doenças não transmissíveis tornam o vírus mais letal e levam a um maior número de óbitos, sobretudo das populações mais vulneráveis, as maiores vítimas do regime alimentar imposto pelo agronegócio baseado em alimentos ultraprocessados e de origem animal.

Além disso, as fazendas industriais são ainda responsáveis pelo uso excessivo de antibióticos que vêm causando uma epidemia de resistência antimicrobiana, matando mais de 700 mil pessoas todo ano, de acordo com a FAO. Os medicamentos são administrados especialmente para animais criados em confinamento intensivo, como aves e porcos, para que sobrevivam às condições precárias e cruéis em que são mantidos. Esses antibióticos bioacumulados na carne e derivados são consumidos por seres humanos, aumentando o risco de doenças novas ou intratáveis justamente em um momento em que o risco de pandemias também aumenta.

Fome e insegurança alimentar

Um dos argumentos mais comuns em favor da agropecuária industrial é a falácia que ela é necessária para alimentar a crescente população humana. Os dados mostram o contrário: a pecuária fornece apenas 12% das calorias que compõem a dieta humana, mas ocupa 75% das terras agrícolas do mundo — somadas as áreas ocupadas diretamente à criação de animais com as dedicadas à produção de ração para os mesmos.

Embora a fome seja muito mais um problema de distribuição desigual do que de produção insuficiente, estudos sugerem que se essas terras fossem realocadas para produção de alimentos de origem vegetal para consumo humano direto, teríamos benefícios para tanto para segurança alimentar, quando para a saúde pública e para a preservação ambiental. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) mostram que, no final do ano passado, 55,2% dos domicílios brasileiros conviviam com algum nível de insegurança alimentar, e 9% estavam em situação de insegurança alimentar grave. Ou seja, passavam fome.

Enquanto isso, segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, a produção de grãos aumentou 4,5%, a produção de porcos aumentou 9%, e houve ainda crescimento de  12% no volume exportado pelo agronegócio brasileiro e de 4,8% no faturamento correspondente. O resultado desse aumento nas exportações foi um aumento dos preços domésticos: cerca de 46% para grãos e 31% para produtos da pecuária. Somado a um contexto de crise sanitária e econômica, essa alta dos preços vêm aprofundando ainda mais a insegurança alimentar e fazendo proliferar imagens de pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica se alimentando de restos de lixo e ossos.

Embora haja produção suficiente, nas mãos do agronegócio essa produção é de commodities e não de alimentos, configurando uma realidade em que a abundância e prosperidade do agro se dá às custas da escassez e fome de muitos.

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