Política

O dia em que derrubamos o presidente

Foi em silêncio, sem dispararmos um tiro sequer

Apoie Siga-nos no

Foi um dia comum, uma sexta-feira, primeiro de março de 1974. A primavera já mostrava sua cara, o céu estava azul, as asessipis lilases já estavam brotando no Jardin des Plantes e a meteorologia prometia sol. Acordei às seis horas da manhã e caminhei até o restaurante universitário onde trabalhava todos os dias, de segunda a segunda, preparando o café da manhã para os universitários.

Abri a porta, acendi as luzes, liguei as máquinas. Eram muitas. A de lavar louça, a de esquentar o leite, a de fazer o café, a de cortar o pão. Preparei as mesas, colocando em cima de cada uma, o pote de manteiga, o vidro de achocolatado, a geleia, as cestas de pão. Era dia de pamplemouse e o trabalho de cortar cada fruto em dois, deixava marcas de nódoa no meus dedos.

Derrubamos o presidente no final da tarde, numa pequena sala de um apartamento na Avenida des Gobelins, com vista para o trânsito intenso lá fora. Faltavam ainda quinze dias para ele deixar o poder, quando decidimos afastá-lo do cargo sumariamente, ao som do vinil de Manduka rodando Pátria Amada Idolatrada, Salve Salve. Não éramos muitos, uns seis ou oito, e ele foi derrubado sem que precisássemos disparar um tiro sequer.

Quando ainda morava em meu país, tinha um ódio quase que mortal desse presidente. Na calada da noite, saia pelas ruas de Belo Horizonte colando nos postes folhas de papel A4 cheirando a álcool do mimeógrafo que usávamos clandestinamente na Faculdade de Filosofia da UFMG.

Médici ou Mude-se!

Foi no governo dele que dois policiais me abordaram na Praça da Savassi, confundindo-me com o terrorista Alemão.

Foi no governo dele que brasileiros e brasileiras foram torturados, mortos ou sumiram pra nunca mais. Foi um regime marcado pela repressão, pela censura e por cinquenta tons de cinza chumbo.

Foi no governo dele que a guerrilha urbana, suburbana e rural foi aniquilada.

Foi no governo dele que construíram a Transamazônica, que a seleção canarinho conquistou o caneco no México e que os militares criaram o slogan:

Ninguém segura esse país!

Em Paris, escrevíamos cartas anônimas para o Palácio do Planalto e carimbávamos nos envelopes nossas palavras de ordem, devidamente copidescadas:

Ninguém segura esse país porque ninguém quer pegar em merda!

Poucos dias antes de derrubarmos o presidente, o Edifício Joelma ardeu em chamas, queimando 14 dos 26 andares e matando 188 pessoas.

Patty, filha do milionário barão da impressa William Randolph Hearst, sequestrada pelo Exército Simbionês de Libertação, estava pronta para mudar de lado e assaltar um banco na América do Norte

A União Soviética expulsava do país o escritor Alexander Soljenistin, o autor de Arquipélago de Gulag.

A nave Pionner 10 mandava, aos pouquinhos, para nós terráqueos, as primeiras fotografias nítidas do Planeta Júpiter.

A derrubada do presidente aconteceu por volta das seis horas da tarde, quando o céu ainda estava claro em Paris.  Foi depois de comermos um pão integral com geleia de laranja amarga, acompanhado de um chá de gengibre e biscoitinhos LU.

Resolvemos, por conta própria, que aquele general no poder já não era mais o nosso presidente. Morávamos a 10 mil quilômetros do Brasil e decidimos que ele não era mais nada, não era mais coisa alguma pra gente. Talvez só pra gente, tão longe, e agora brindando com uma taça de Beaujolais, um vinho que cotizamos porque tínhamos muito pouco dinheiro.

Sai dali aliviado. Fui andando à pé até a Rue Paillet, no coração do Quartier Latin, onde morávamos num quarto emprestado por uma amiga do coração. Abri a porta, acendi a luz, fechei a janela para impedir a entrada das abelhas que sempre apareciam na primavera.

Preparei uma sopa Knorr com sabor de cogumelos pretos do Vietnã e acabei de ler as últimas páginas de Chroniques de Jazz, de Boris Vian, apesar do meu francês ruim. Fui dormir porque, no dia seguinte, precisava acordar às seis horas para preparar novamente o café da manhã para os universitários.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar