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O coronel do capital

Arthur Lira sacode Brasília com ameaças e chantagem. Seu poder está a serviço do lobby empresarial contra Lula

Imagem: Pablo Valadares/Ag.Câmara
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Em 9 de março, Lula e Arthur Lira comeram churrasco e tomaram cerveja em um jantar às escondidas na casa do ministro da Comunicação Social, Paulo Pimenta, em Brasília. Três dias antes, Lira, presidente da Câmara, havia dito na Associação Comercial de São Paulo que o governo não tinha votos para aprovar leis no Congresso. Até a noite do churrasco, Lula e Lira haviam se encontrado em duas ocasiões. A primeira, na residência oficial do deputado, em 9 de novembro, pouco depois da dura eleição do petista contra Jair Bolsonaro. A outra, em 18 de dezembro, um domingo, no hotel em que Lula morava antes da posse. No jantar, o presidente da República queria entender a cabeça do parlamentar e quebrar o gelo. Até ­convidou-o para a viagem à China, adiada em razão de uma pneumonia do mandatário.

Quando Lula e Lira tiveram o ­quarto tête-à-tête, em 24 de março, no Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência, havia fogo no lugar do gelo. E não exatamente por causa de um entrevero específico entre os dois. A chama espalhava-se por Brasília graças a uma crise criada pelos pendores imperiais do deputado. Pendores apontados publicamente por Lula em maio do ano passado, ocasião em que Lira, do PP, reagira assim: “Ele não me conhece, nunca conversou comigo, nunca tomou um café, nunca bateu um papo, nunca tive o prazer ou o desprazer de estar com ele”. Com Bolsonaro, afirma o senador Rogério Carvalho, do PT de Sergipe, “não havia governo, e Lira mandava. Agora tem governo, e ele quer continuar mandando. Não vai”. Vontade de mandar que tem a “chantagem” como método, segundo outro senador, o emedebista Renan Calheiros, desafeto de Lira em Alagoas.

O deputado luta para não abrir mão dos poderes “imperiais” conquistados durante o governo Bolsonaro

Em uma espantosa entrevista coletiva em 23 de março, Lira deixou claro que não quer seguir a Constituição e que o governo pagará o pato, se sua vontade não for feita. “A Constituição lá de 2002 não atende as práticas de evolução do sistema de votação”, disse. O incêndio gerado por ele tem como ponto de partida o modo de votação das medidas provisórias, normas que o governo baixa para valer de imediato, antes do aval parlamentar. Há 20 anos a Constituição determina que as MPs sejam examinadas primeiro numa comissão com deputados e senadores, em número igual, e depois nos plenários da Câmara e do Senado. A pandemia fez o Congresso abandoná-las, para evitar aglomeração. Tudo chancelado pelo Supremo Tribunal Federal. As MPs seriam votadas apenas nos plenários: no da Câmara e em seguida no do Senado. Lira ganhou poder, pois escolhe o relator que cuidará da medida até quase o fim do prazo de validade. O Senado vota, não raro, na bacia das almas. O deputado quer que o trâmite continue assim.

Um dia antes da entrevista de Lira, o presidente do Senado e também do Congresso, Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas Gerais, tinha decidido que o rito antigo voltaria a valer. Como a pandemia acabou, era o lógico a se fazer. A proposta tinha partido de Calheiros. A decisão, disse Lira, “não vai andar um milímetro na Câmara dos Deputados, e o prejuízo vai ser para o governo”. Sem votação de MPs, estarão em risco o Bolsa Família de 600 reais e o renovado programa de moradias Minha Casa Minha Vida, entre outros. Quando foi a Lula pela última vez, Lira queixou-se de Pacheco e do governo. O senador também foi ao petista, em 28 de março, antes de bater o pé: as comissões das MPs voltarão. Desde fevereiro, ele tentava convencer o colega a aceitar o rito antigo. O deputado repete que os líderes partidários na Câmara não aceitam.

Lula tem no senador Rodrigo Pacheco um aliado na batalha das MPs – Imagem: Jefferson Rudy/Ag.Senado

Em uma viagem com Lula à fluminense Itaguaí em 23 de março, Calheiros disse ao presidente que ele precisa conversar mais, pois, no Congresso, quem é lulista de verdade nota forças contrárias dispostas a criar dificuldades. De acordo com o senador, a declaração de Lira de que o governo não tinha voto para aprovar leis era uma maneira de enfraquecer o governo, para que o deputado pudesse “achacar mais”, ou seja, cobrar mais cargos e favores. Na bancada do PT na Câmara, alguns deputados avaliam como um erro o presidente da República ter lavado as mãos na reeleição de Lira, apoiada pelo partido. Calheiros e o senador Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá, ambos acusados pelo presidente da Câmara de serem os cérebros por trás de Pacheco, topavam articular um bloco partidário para enfrentar Lira na eleição. A ideia não prosperou à época. Um bloco desse tipo, com 142 deputados, incluí­dos os parlamentares do Republicanos, sigla que apoiara Bolsonaro na campanha, acaba de vingar. Derrota de Lira.

Os articuladores políticos do Palácio do Planalto tentam agir com frieza diante do poder do alagoano. O governo, diz um deles, irá pouco a pouco disputar com o deputado para ver quem tem mais ascendência na Câmara. Uma guerra fria que ficará visível quando houver votações importantes nas próximas semanas. Nesse cenário, serão fundamentais os ministros nomeados para contemplar certos partidos, como o União Brasil de Alcolumbre, à frente de três pastas. “Não vai ser o Arthur Lira que vai ajudar o governo”, afirma esse articulador.

O senador Renan Calheiros, desafeto de Lira, alertou Lula sobre as “forças contrárias” que se fortalecem no Congresso

Não é que Lira não vai ajudar. Em alguns temas caros ao Palácio do Planalto, como Banco Central, Eletrobras e leis trabalhistas, o parlamentar estará na trincheira oposta. Idem em um assunto sensível para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o “tribunal dos impostos”, o Carf. Lira é um coronel do capital, da mesma escola de Eduardo Cunha, algoz de Dilma Rousseff. Cunha ganhou poder ao encampar no Congresso todo tipo de interesse empresarial contrariado pela petista. Tornou-se, na prática, lobista do setor privado, em troca de, digamos, recompensas. Lira é igual. “O Arthur é um craque. A gente conheceu o Eduardo Cunha, mas ele é melhor”, comentou no fundo do plenário da Câmara o deputado Vanderlei Macris, do PSDB de São Paulo, com o colega paulista Adilson Barroso, do PL, às 16h50 de 29 de março, conforme testemunhou CartaCapital.

Lira é escudeiro do inimigo público n° 1 de Lula, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Deputado e banqueiro são praticamente uma coisa só. A lei da independência do BC foi um cartão de visitas de Lira ao “mercado”, modo de firmar uma aliança com a turma. Ele elegeu-se para chefiar a Câmara pela primeira vez em fevereiro de 2021, ao bater o candidato de Rodrigo Maia, à época presidente da Casa. Maia é egresso da banca, agora está à frente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (em 16 de março, reuniu-se com o chefe de gabinete de Lula). Nove dias após a vitória de Lira, os deputados aprovavam a independência do BC.

O alagoano fala com frequência com Campos Neto. Quando surgiu na mídia, em 21 de março, a notícia de que o governo teria escolhido os substitutos de dois diretores do BC cujos mandatos acabaram em fevereiro, o banqueiro ligou para o ­deputado para se queixar de que não tinha sido ouvido. Estava bravo em particular com o suposto escolhido para a estratégica Diretoria de Política Monetária, o economista Rodolfo Fróes. Este, aliás, desagradou gente no PT, por ter doado dinheiro ao Partido Novo em 2018 e ter sido sócio dos bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, acionistas majoritários da caloteira Lojas Americanas. Lira relatou o telefonema de Campos Neto a um congressista petista.

Se depender de Lira, a privatização da Eletrobras não será revertida. O Palácio do Planalto prepara um processo para mudar as regras que limitam a ação do Estado na empresa – Imagem: Eletrobras

Depois de Lula lançar a campanha contra o presidente e os juros altos do BC, aliados do petista ensaiaram convocar Campos Neto para prestar contas à Câmara. Lira reclamou da iniciativa com o líder da bancada da legenda, Zeca Dirceu, a quem pediu para o governo maneirar nas críticas. Em uma palestra em 15 de fevereiro no banco BTG, condenou a forma “incisiva” com que o governo tratava o neto de Roberto Campos e deve ter emocionado a plateia ao declarar: “Não vejo nenhuma possibilidade de mudança com relação à independência do Banco Central”.

O BTG e um dos sócios do banco, André Esteves, ilustram as relações de Lira com a Faria Lima. Em 21 de outubro de 2021, quatro auxiliares do então ministro da Economia, Paulo Guedes, demitiram-se, Lira ligou para Esteves, a fim de saber o que o “mercado” achava. Em maio de 2022, o deputado participou de um evento do BTG em Nova York. Lá, comentou que a disputa entre Lula e Bolsonaro na eleição não mudaria uma coisa: “O Congresso que for eleito em outubro, eu não tenho dúvidas, será um Congresso de centro-direita”. Acertou. Esse mesmo Parlamento não vai rever a reforma trabalhista, Lira avisou também, ao contrário da promessa eleitoral de Lula.

Um analista político em Brasília de uma dessas firmas do “mercado” diz que o sistema financeiro gosta de Lira porque ele é um freio liberal aos planos do lulismo, embora não confie no deputado. O alagoano topa dar rapidez à votação do plano de controle de gastos preparado por Haddad, pois a banca quer. E também à reforma tributária que tratará de impostos cobrados no consumo, outra bandeira do ministro da Fazenda. O que não significa estar ao lado de Haddad na batalha contra o “tribunal dos impostos”. Ao contrário: faz lobby pelo empresariado.

O método do presidente da Câmara é a chantagem, diz Calheiros. Padilha terá um teste de fogo – Imagem: Gil Ferreira/SRI e Edilson Rodrigues/Ag.Senado

O Carf é um paraíso para grandes empresas devedoras. As confederações patronais indicam metade dos árbitros, uma jabuticaba centenária (a outra metade são auditores fiscais nomeados pelo governo). Em 2020, uma lei garantiu que, em caso de empate nos julgamentos, a vitória automaticamente é de quem deve. E o governo não pode recorrer à Justiça. Essa regra fez explodir os litígios de 600 bilhões para 1 trilhão de reais, graças às causas de gente graúda. O dispositivo teve o dedo de Lira. Foi na votação de uma medida provisória do governo Bolsonaro em 18 de março de 2020. Naquele dia, o deputado Hildo Rocha, do MDB do Maranhão, emplacou na MP a norma que diz que “o empate é do caloteiro”. Lira era o líder do “Centrão” e exigiu do governo a promessa de não a vetar. O deputado Major Vitor Hugo, do PL de Goiás, era o líder de Bolsonaro, ligou para o capitão e obteve o compromisso.

Em 12 de janeiro deste ano, Lula e Haddad assinaram uma MP para acabar com a vitória automática do devedor em caso de empate. Um auditor fiscal terá o voto de minerva nestes casos, conforme a regra ­pré-2020. Com isso, o governo espera arrecadar 50 bilhões de reais neste ano e 15 bilhões anuais a partir de 2024. No dia seguinte à publicação da MP, começava o lobby contrário. Lira foi acionado pelo grupo empresarial Esfera Brasil, comandado por João Camargo, hoje à frente da CNN Brasil. O mesmo grupo ofereceu um jantar ao deputado em Brasília em 3 de fevereiro para celebrar sua reeleição à presidência da Casa. No convescote, a filha de Camargo, Camila, discursou em defesa do “interesse nacional” e listou o Carf.

Lira abriu as portas da Câmara a grandes entidades patronais para que digam o que quiserem sobre o “tribunal dos impostos”. Foi o que comentou duas semanas após o jantar, naquela palestra no BTG: “O Carf, sim, vai ter uma discussão própria, o Congresso tem algumas alternativas para que não haja o empate. Tem algumas associações de grandes empresas que têm tentado subsidiar com as alterações legais”. Ele quer ir além e amordaçar o “leão” na cobrança de multas.

A Eletrobras é outro tema caro a Lula no qual Lira joga pelo capital. O deputado espalha em Brasília que o Congresso não reverterá a privatização. Na campanha, Lula prometia, se eleito, desfazer a venda, classificada por ele de “crime de lesa-pátria”. O petista inclina-se pela via judicial. Em 7 de fevereiro, contou em um café da manhã com jornalistas que a Advocacia Geral da União “possivelmente” entrará na Justiça contra dois pontos da lei da privatização (“bandidagem”, segundo o presidente). Um impede o governo de ter mais de 10% dos votos na empresa, mesmo com 40% das ações. O outro diz que se o governo quiser recomprar ações terá de pagar o triplo do preço. O advogado-geral, Jorge Messias, deve concluir em abril uma proposta. Foi o que contou ao deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, em 2 de março. A propósito: Lira tentou cassar Braga no Conselho de Ética após um bate-boca no plenário no ano passado.

Está marcada para 27 de abril uma assembleia de acionistas da Eletrobras. Entre estes, há um fundo, o 3G, controlado por Lemann, Telles e Sicupira. Investidores como eles agradecem cada dificuldade criada por Lira ao governo. Na assembleia, os acionistas vão votar a proposta de aumento dos ganhos dos diretores e integrantes do conselho de administração da companhia. Uma farra, segundo documento obtido pela reportagem. Um diretor embolsou no ano passado, entre salários, bônus e quejandos, 363 mil reais por mês, seis vezes mais do que antes da privatização. Poderá ganhar 570 mil se os acionistas deixarem. Um conselheiro recebeu 33 mil, agora levará 187 mil.

Dias Toffoli mantém Lira livre de um processo. O deputado supera Eduardo Cunha em esperteza. Nascimento é um parceiro. Camargo recorre ao presidente da Câmara – Imagem: Luís Macedo/Ag.Câmara, Redes sociais, Toninho Barbosa/União Brasil e Carlos Alves Moura/STF

Na “bandidagem” citada por Lula na Eletrobras, há digitais de Lira. Quem cuidou da lei da privatização na Câmara foi um neo-aliado, o deputado baiano Elmar Nascimento, líder do União Brasil, por designação, aliás, do presidente da Câmara, em março de 2021. Lira elegera-se um mês antes para comandar a Casa, e Nascimento havia sido útil na campanha. O baiano era filiado ao finado DEM (hoje União Brasil), sigla que apoiava o oponente de Lira, Baleia Rossi, do MDB. Rossi havia sido lançado por Maia, então no DEM. Nascimento puxou a fila de traição do partido a Maia. Desde então, Lira escala-o para missões especiais. Em dezembro passado, o baiano relatou a mudança na Constituição que permitiu a Lula dispor de alguns bilhões extras para o Bolsa Família, saúde e educação, mas cortou pela metade o prazo das despesas. Não vale em 2024. Só se houver nova votação, com todos os “custos” que a negociação envolve.

Em outubro, entre o primeiro e o segundo turno da eleição, Nascimento concedeu uma entrevista ao diário O Estado de S. Paulo para ameaçar o Supremo, caso a corte acabasse com o famigerado orçamento secreto, uma das fontes de poder de Lira. “E quem faz o orçamento do STF? Aí ele vai tirar o orçamento da gente e a gente vai aceitar? Se tirar o nosso, a gente tira o deles.” A corte derrotou Lira e o segredo em dezembro, por 6 a 5. O voto decisivo partiu de Ricardo Lewandowski, magistrado afinado com Lula e prestes a se aposentar. O deputado ficou furioso, por achar que o julgamento era obra do petista (era da presidente do Supremo, Rosa Weber, na verdade). Em um papo por telefone com o ­deputado Aguinaldo Ribeiro, que é do PP, mas se dá bem com o PT (foi ministro de Dilma), esbravejou. E ouviu: “Aceita. Eles são profissionais”. O telefonema foi relatado pelo paraibano Ribeiro, relator da reforma tributária, a interlocutores.

Lira opõe-se à agenda econômica do governo. Entre outras, Defende a independência do BC e a privatização da Eletrobras

Lira não tem, porém, muita razão para se queixar dos tribunais. Está para ser convertido em réu por corrupção no Supremo desde novembro de 2020, mas um pedido de vistas do ministro José Dias Toffoli o mantém a salvo. É um processo nascido após um então assessor parlamentar ter sido pego com 106 mil reais cash em um aeroporto em 2012. Se virar réu, o deputado responderá a uma ação penal e não poderá assumir a Presidência da República na ausência de Lula e Geraldo Alckmin do País. Mais: Lira concorreu a deputado federal por Alagoas nas duas últimas eleições graças a uma liminar que suspendeu sua condição de ficha suja. Ele foi condenado em 2016 pela Justiça de Alagoas por ter, como deputado estadual, pagado despesas pessoais com verba da Assembleia Legislativa. O caso está desde 2020 parado no Superior Tribunal de Justiça.

O coronel e o capital agradecem. •

Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O coronel do capital’

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