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O canto da sereia

Bolsonaro prepara uma arapuca aos mais pobres, que deve agravar o endividamento das famílias

O canto da sereia
O canto da sereia
Conversa mole. A despeito da recente queda da inflação, os preços dos alimentos seguem elevados. Guedes agora fala em estender o estado de calamidade - Imagem: Geraldo Magela/Ag.Senado e Gustavo Bezerra/PT na Câmara
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No comando da campanha de Jair Bolsonaro, é grande a expectativa de que as “bondades” econômicas do governo dirigidas às pessoas em situação de pobreza e aos estratos com menos renda da classe média deem o impulso necessário para que o ex-capitão garanta sua ida ao segundo turno contra Lula. Na terça-feira 6, a menos de um mês da eleição, o Ministério do Desenvolvimento Regional confirmou que será autorizado o uso dos recursos do FGTS futuro – baseado na previsão do que o trabalhador ainda vai receber se continuar empregado – para o financiamento de imóveis do programa Casa Verde e Amarela. Aparentemente irresistível, a proposta pode se transformar em cilada para os trabalhadores que decidirem comprometer sua renda futura em um cenário de grande incerteza econômica. Ela vem juntar-se a medidas como a fixação provisória do valor do Auxílio Brasil em 600 reais ou a redução do preço da gasolina e das tarifas de luz, que vêm sendo estrategicamente adotadas desde julho e podem trazer dividendos eleitorais ao candidato à reeleição na reta final da campanha.

Por onde passa, Bolsonaro repete os números “fantásticos” da economia. Estes, de fato, mostram que nos últimos dois meses houve uma ligeira queda no nível de desemprego e também redução da inflação, mas as boas notícias estão longe de significar uma luz no fim do túnel para os brasileiros. Ao contrário, dizem especialistas, tudo indica que os números positivos não devem se manter no ano que vem. A melhora das últimas semanas é pontual e deriva da combinação de uma recuperação econômica natural – após a paralisia de diversos setores causada pela pandemia – com a aplicação de medidas indutivas tomadas pelo governo, como, por exemplo, o corte do ICMS, que fixou um teto de 17% e 18% para os impostos sobre energia elétrica e combustíveis. Dada a absoluta falta de garantias para 2023, a atual sensação de alívio é um canto de sereia que pode levar de vez para as profundezas as finanças de milhões de famílias, sobretudo aquelas que vivem com salário mínimo ou dependem do auxílio emergencial.

Na contramão das promessas de Bolsonaro, a proposta de Orçamento da União para 2023, enviada ao Congresso pelo Ministério da Economia no último dia de agosto, não prevê a continuidade dos 600 reais pagos atualmente pelo Auxílio Brasil. Segundo o documento, a partir de janeiro o valor médio do benefício voltará a 405 reais, embora Bolsonaro tenha prometido “vender estatais para complementar isso daí” e manter o valor atual. O ministro Paulo Guedes, por sua vez, valeu-se da guerra entre Rússia e Ucrânia para sugerir a prorrogação no ano que vem do estado de emergência em vigor no Brasil. “Se a guerra continua, prorroga o estado de calamidade e paga os 600 reais”, vaticinou. Segundo a estimativa do próprio governo, serão necessários 160 bilhões de reais para manter o Auxílio Brasil com o atual valor ao longo de 2023.

Os beneficiários são bombardeados com ofertas de crédito por juros abusivos

Já o salário mínimo, de acordo com a proposta orçamentária, chegará ao último ano de mandato de Bolsonaro sem aumento real, com valor estipulado em 1.302 reais a partir de janeiro. Mais uma vez haverá apenas a reposição para o trabalhador das perdas com a inflação. Para fazer a correção, o governo tomou como base o INPC, indicador que aponta a inflação para quem ganha até cinco salários mínimos e que, segundo estimativas da equipe de Guedes, terminará o ano em 7,41%. Outro compromisso de Bolsonaro que ficou de fora do Orçamento de 2023 foi o reajuste da tabela do Imposto de Renda para pessoa física, defasada em 31,3% desde o início de seu governo. Apesar­ da promessa de elevar a isenção à faixa de cinco salários mínimos, hoje no valor de 6.060 reais, o limite para o próximo ano permanecerá em 1.903 reais mensais.

Diretor técnico do Dieese, Fausto ­Augusto Júnior diz não ter “a menor dúvida” de que as famílias de baixa renda enfrentarão muitas dificuldades no ano que vem. “Estamos diante de um processo de desconstrução de políticas ativas de aumento da renda e redução da pobreza”, afirma. Três pilares que buscam garantir a elevação do padrão de vida da maioria dos brasileiros são atingidos: “Foi deixada de lado a importante política de valorização do salário mínimo. A tabela do IR leva cada vez mais à cobrança do imposto para as camadas da classe média mais baixa, o que retira sua renda. E, por fim, a manutenção do Auxílio Brasil é fundamental para o enfrentamento da extrema pobreza e da fome, a atingir mais de 33 milhões de brasileiros”.

No início de setembro, o governo anunciou a inclusão de mais 804 mil famílias no Auxílio Brasil, elevando a 21 milhões o número de beneficiadas. Para todas elas, a sereia canta com requinte de crueldade ao acenar com a possibilidade de obtenção de empréstimos descontados diretamente na folha da ajuda emergencial. Segundo a proposta, o beneficiário poderá empenhar para o pagamento do empréstimo até 40% do valor mensal que recebe, fixado em 400 reais, uma vez que os 600 reais pagos atualmente só permanecerão até dezembro. O detalhe onde o diabo habita é que o governo não determinou um teto para os juros a serem cobrados pelos consignados. Por isso, operadoras financeiras mais gananciosas caçam clientes nas filas do recebimento do Auxílio Brasil com propostas que preveem juros escorchantes de 4,96% ao mês (78,8% ao ano). A título de exemplo, os juros cobrados pelos grandes bancos nos empréstimos consignados a aposentados e pensionistas é de 2,14% ao mês.

Oportunismo. Operadoras financeiras estão cobrando dos beneficiários do Auxílio Brasil mais que o dobro da taxa de juros cobrada dos aposentados – Imagem: Antônio Cruz/ABR e Renato Luiz Ferreira

O elevado risco de inadimplência e a “preocupação com o endividamento de famílias em condição de vulnerabilidade social” foram alegados por grandes bancos como Bradesco, Itaú e Santander, entre outros, que em conjunto recusaram a proposta de engajamento do governo. Segundo o Ministério da Cidadania, 17 instituições se habilitaram a oferecer o consignado, mas a lista desses bancos não foi divulgada até o fechamento desta edição. Quanto aos riscos, Bolsonaro deixou claro no decreto a intenção de tirar o governo da reta: “A responsabilidade pelo pagamento dos empréstimos e dos financiamentos será direta e exclusivamente do beneficiário. A União não será responsabilizada, ainda que subsidiariamente, em qualquer hipótese”.

Maldade pura, segundo especialistas. Ione Amorim, coordenadora do programa de Serviços Financeiros do Idec, avalia que o crédito consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil representa risco mesmo que se defina um teto de juros: “A arapuca para os pobres está armada em qualquer cenário. Até o fim de dezembro, os recursos destinados à política de transferência de renda para 2023 podem sofrer reduções e comprometer o pagamento do benefício no próximo ano. Neste caso, nem o crédito nem o benefício comprometido com as parcelas de crédito estarão garantidos”, diz. Fausto Júnior acrescenta: “Quando se abre o crédito desse jeito, sem nenhum tipo de mediação, isso vai se transformar lá na frente em uma forma de retirar parte da renda que vem dos programas sociais para pagar uma taxa de juros que é uma das mais altas do mundo e que hoje vem drenando recursos importantes da população brasileira”.

A concessão irresponsável de crédito a quem provavelmente não conseguirá pagar deverá agravar no ano que vem um problema que já atinge em cheio a economia brasileira. Um levantamento divulgado, em agosto, pela Confederação Nacional do Comércio revelou que, até a metade do ano, 80% das famílias tinham dívidas acumuladas e 29% delas se encontravam em menor ou maior grau de inadimplência. “Isso vai reduzir o crescimento econômico no ano que vem porque compromete o consumo. Não há perspectiva de melhora”, diz Izis ­Ferreira, responsável pelo estudo.

Do total de brasileiros endividados, 85,4% devem às empresas de cartões de crédito que praticam taxas de juro ­anuais superiores a 300%. A novidade é a crescente presença de quem ganha salário mínimo, grupo que hoje representa 12,2% dos inadimplentes. “A população de baixa renda sofreu forte redução no poder de compra nos últimos quatro anos, com inflação acumulada, ausência de aumento real do salário mínimo e elevação das taxas de juro. O crédito caro do cartão foi a alternativa de muitas famílias para garantir a sobrevivência, convertendo-se em outra arapuca para a população, que deixou de pagar também os serviços essenciais de água, energia elétrica e gás, além do aluguel de moradia”, lamenta Amorim.

No Orçamento do próximo ano, o governo reservou apenas 405 reais para o programa

O economista Luiz Gonzaga ­Belluzzo, consultor editorial de ­CartaCapital, ­observa que, após um período muito longo de desempenho ruim da economia na geração de renda e emprego, “as famílias têm de se defender de alguma maneira” e recorrem ao endividamento. “Isso se transformará em um obstáculo para que a economia cresça mais rápido, porque impõe um limite para o gasto das famílias que têm boa parte da renda capturada pelo serviço da dívida”, explica. Para o economista, um eventual novo governo terá um abacaxi para descascar: “Supondo que se aumente o gasto público para sanar as várias deficiências que a economia tem na infraestrutura e nas políticas sociais, isso na verdade vai ser convertido em pagamento da dívida”.

Belluzzo diz ser “inevitável” que a fatura seja paga ao longo de 2023, e apresenta uma sugestão ao próximo presidente: “Há que se pensar em um programa de reestruturação da dívida. O governo pode bancar essa reestruturação, sobretudo para os mais pobres. Não é tão difícil de fazer porque o governo tem os instrumentos para isso, como o Banco Central. Esse problema vai se refletir no desempenho da economia no ano que vem, se não houver nenhuma forma de contornar os obstáculos que Bolsonaro está criando para uma retomada do crescimento com mais solidez”.

O experiente economista critica parte da mídia, que só analisa a economia no curto prazo. “Se observarmos em uma perspectiva mais longa veremos que o PIB de 2022 provavelmente não vai sequer sombrear o PIB de 2013”, diz. ­Belluzzo avalia ainda que os atuais efeitos sobre a renda e o emprego, sobretudo das camadas menos favorecidas da população, são tênues: “As coisas não estão boas como alguns estão dizendo. É claro que os estímulos que foram empregados, inclusive com a antecipação do FGTS e o pagamento do auxílio emergencial, têm um impacto no consumo, mas os números ainda estão muito longe dos observados no período entre 2003 e 2013, mesmo levando em conta a desaceleração a partir de 2010. Mas o governo e parte da mídia comemoram qualquer coisa. Daqui a pouco vão comemorar até gol contra”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O canto da sereia “

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