Política

O caixa 2 e o cheiro de fezes de gato

É inaceitável normalizar a corrupção e generalizar os políticos. O que precisamos é mudar as regras

O plenário da Câmara: as regras do sistema eleitoral precisam mudar
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Morei durante alguns meses num prédio que cheirava muito mal. Era francamente insuportável. A vizinha que morava no quarto andar do prédio ao lado, que dividida o pátio de fundos com o meu, era colecionadora de gatos. Não dois ou três… mais de cem. Eu poderia dedicar todo este artigo a contar a história, que daria um filme, mas não vou. Eu só menciono porque tem algo nela que se relaciona com a situação política do Brasil: o cheiro pode ser insuportável, mas depois de um tempo, você quase se acostuma.

Nunca dá para se acostumar por completo – eu acabei procurando outro apartamento –, mas depois de duas, três semanas, o cheiro parecia menor, menos intenso, e por momentos eu não me lembrava dele, mesmo que estivesse sentindo. A gente tem outros problemas, preocupações, atividades para fazer, e acaba desenvolvendo estratégias para lidar com aquilo: umas janelas fechadas, as outras (as da rua) abertas, desodorante de ambientes, etc. E a vida continua. Você sente um desconforto, uma coisa chata, mas não pensa nisso o tempo todo. 

Nos últimos anos, a política brasileira se parece cada vez mais a meu antigo prédio: tem cheiro de fezes de gato. Caixa-dois aqui, propina acolá, desvio de dinheiro público, políticos milionários, empresas nos paraísos fiscais, contas na Suíça.

E ocorre o mesmo que aconteceu com os gatos da minha antiga vizinha: se fossem dois ou três, talvez a gente identificasse claramente, mas quando são cem, duzentos, o cheiro de um se mistura com o do outro e tudo vira uma nuvem gasosa que já não dá pra saber de onde vem, e que, depois de um tempo, acaba se integrando ao cotidiano, como se fosse da natureza. Mas não é. 

Falo isso porque a corrupção política, como o cheiro de fezes dos gatos da minha vizinha, acabou se naturalizando. As pessoas não apenas acham que é normal, que sempre foi e será assim, que não tem jeito, que não dá pra ser diferente, como também não conseguem mais distinguir de onde vem aquele odor desagradável.

É como se todos os apartamentos do prédio estivessem cheios de gatos, como se fosse a regra do condomínio. Você pode não ter gato nenhum, mas quando um amigo vem pra jantar, ele desconfia, encara você com um olhar acusador e depois comenta pros outros que teu apartamento cheira mal. 

Algumas atitudes de alguns políticos ajudam a fazer essa naturalização equivocada. Nos últimos meses, houve várias tentativas de aprovar alguma lei para legalizar ou anistiar o caixa 2. Houve até um deputado que disse que “tem caixa dois, caixa doois e caixa dooooooois”. O argumento é que não dá pra tratar a corrupção pessoal (aquele que recebe dinheiro ilícito para si próprio para enriquecer) e a corrupção eleitoral (aquele que recebe dinheiro ilícito para sua campanha) como se fosse o mesmo.

Há, de fato, uma diferença do ponto de vista individual: tem aquele que se rendeu às “regras de jogo” do sistema e pegou dinheiro que não deveria ter pegado para pagar a campanha, mas vive do salário e não se enriqueceu nem usufruiu desse dinheiro para sua vida privada (sim, tem esses casos), e tem aquele que usou o dinheiro para comprar a casa, o carro, abrir conta na Suíça e viver como um emir.

Não é a mesma coisa, mas ambas são ilícitas e prejudicam à população, porque quando você recebe dinheiro da Odebrecht ou da Samarco, seja para tua campanha ou para comprar um apartamento no West Side de Manhattan, quem acaba pagando é a população: serviços mais caros, leis feitas à medida das empresas, obras superfaturadas, dinheiro que falta nas escolas e nos hospitais, falta de fiscalização que às vezes termina em tragédias, etc.

Há dois efeitos perversos da naturalização da corrupção. O primeiro é a igualação: todo o mundo tem cheiro de fezes de gato, que não importa de onde vem (ou: “Todos os políticos são iguais”).

Para quem faz política de forma honesta, isso é injusto e ofensivo. Eu não sou igual a Eduardo Cunha e conheço muitos políticos (não apenas do meu partido; inclusive alguns com os quais discordo em quase tudo) que também não são.

O segundo efeito é a justificação, a ideia de que a política é assim mesmo e quem faz, afinal, não tem culpa, porque são as regras do jogo. É isso que está por trás das tentativas de perdoar o caixa 2: “Olha, não tem como fazer campanha sem ela, não tem como se eleger sem ela, vamos ser sinceros, é necessária….”. 

Não é.  

A gente se acostumou a que uma campanha para deputado pudesse custar 7 milhões de reais, como a de Cunha, como se isso fosse necessário. Mas olha só: eu tive quase 145 mil votos, fui o 7º mais votado do RJ e a minha campanha custou pouco mais de 70 mil reais, arrecadados pela internet, por pequenas doações de pessoas físicas (eleitores, simpatizantes, amigos, militantes do partido), sem grana de empreiteiras, bancos ou coisa do tipo. Dá sim pra se eleger sem caixa 2.

É mais difícil, porque a gente concorre com candidatos milionários, mas é possível. E é melhor para a democracia. Não naturalizemos o que não é natural. Há países onde as campanhas são mais baratas, transparentes, sem dinheiro não declarado, honestas, e a democracia nesses países funciona bem melhor. E os índices de desenvolvimento humano também, porque uma coisa tem a ver com a outra.  

Eu me recuso a aceitar que todos os políticos sejamos colocados no mesmo saco e obrigados a assumir o cheiro de fezes de gato como se fosse nosso. E me recuso a conceber que a solidariedade corporativa nos leve a fazer de conta que tá tudo limpo e perfumado.

O que precisamos mesmo é mudar as regras de jogo – campanhas mais baratas, melhor fiscalização, sem financiamento de empresas e com equidade na distribuição dos recursos públicos do fundo partidário e do tempo de TV, exatamente o contrário que a contrarreforma de Cunha contra o PSOL e os partidos de esquerda fez –, em vez de nos adaptarmos a essas regras que já fizeram tanto mal ao Brasil.

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