Artigo
O bolso ou a vida
A verdadeira polarização se dá entre o capital financeiro e a democracia


O Cavalo de Troia foi construído com os escombros do Muro de Berlim. Sem a ameaça comunista, encerrada a Guerra Fria com a aparente vitória do “mundo livre”, a terceira via nasceu, nos anos 90 do século passado, como uma quimera: prometia domar a selvageria capitalista, o sistema triunfante, e humanizar o inominável. O britânico Anthony Giddens era o Olavo de Carvalho dos “neoprogressistas”. No Reino Unido, Tony Blair, o golden boy do novo trabalhismo, orgulhava-se da sua perspectiva monarquista e antissindical. Fernando Henrique Cardoso venceu duas eleições no Brasil ao cavalgar no sucesso do Plano Real. Bill Clinton aprofundava as relações carnais entre os democratas e Wall Street.
Não demorou para muitos perceberem: a terceira via não passava de uma viela sem saída. Quem se deixou enganar foi obrigado a fazer o retorno e trafegar pela estrada principal e única. Por ingenuidade ou cinismo, os humanistas de casaca do fim do século prometiam conter o tsunami das forças do mercado com uma simples placa de “proibido ultrapassar”. É preciso reduzir o tamanho do Estado, diziam, para que o Poder Público possa concentrar-se nas atividades primordiais, saúde e educação.
Duas décadas e meia se passaram e a terceira via acabou engolfada pelo tsunami, que, enfim, não sabia ler a placa. Os aliados de ontem viraram adversários tão perigosos quanto os burocratas da planificação soviética ou os românticos revolucionários. O comunismo acabou e o anticomunismo tomou outras formas. Os social-democratas foram declarados os hereges a ser queimados em fogo alto. Enquanto isso, as barreiras continuaram a ser derrubadas. Saúde, educação, futebol, até a morte é medida e mediada pelo lucro. Dispensaram a ladainha da eficiência do setor privado. As privatizações de estatais – vide o caso da Enel em São Paulo – limitam-se a uma equação financeira. A economia na mão de obra e na prestação de serviços é o motor dos ganhos dos acionistas. Os clientes que reclamem ao bispo. Ou, pior, à Inteligência Artificial das centrais telefônicas diabolicamente treinada para matar de raiva quem está do outro lado da linha.
É um duelo de armas desiguais. De um lado, uma bazuca. Do outro, um bodoque
Em setembro, durante a discussão do orçamento de Portugal, um deputado da Iniciativa Liberal, variação lusitana do Partido Novo brasileiro, descreveu o modelo de Estado sonhado pela agremiação. Nenhuma menção a escolas ou hospitais. Caberia ao Poder Público cuidar da segurança interna e das fronteiras. Citar um parlamentar de uma legenda obscura de um país periférico tem apenas um caráter ilustrativo. Não surpreenderia se tais ideias integrassem o manual da “Internacional Fascista” articulada nos últimos anos. A galopante desigualdade e a insatisfação crescente de uma maioria mantida à margem do progresso exigem cada vez mais o uso da força, contra os inimigos externos e internos.
A redução do Estado às funções de polícia talvez não seja o último estágio de consolidação do tecnofeudalismo. Em muitos países, o número de seguranças privados ultrapassa o conjunto das forças oficiais. A multiplicação de bitcoins alimenta um mercado paralelo que corrói as moedas nacionais ou continentais. Na Idade Média, suseranos tinham o direito de manter um Exército particular e cunhar o próprio dinheiro. As semelhanças não são meras coincidências.
A ilusão acabou. Enquanto a democracia serviu de contraponto à cortina de fumaça, não de ferro, das repúblicas soviéticas, era conveniente associar capitalismo e liberdades. Os donos do dinheiro nunca dependeram, porém, de qualquer sistema político. Atuam em simbiose, ocupam o hospedeiro mais conveniente às circunstâncias. Nessa quadra da história, as autocracias se oferecem como o modelo ideal para garantir sua sobrevivência. Eis a verdadeira polarização: o capital financeiro contra os regimes democráticos. Os bilionários a caminho de virarem trilionários, um grupelho turbinado pela revolução tecnológica, decidiu que se trata de uma questão de vida ou morte. O bolso ou a vida. Desenha-se um duelo no pôr do sol em Tombstone. Um detalhe: a equivalência de armas não é a mesma. De um lado, uma bazuca, do outro, um bodoque.
Progressistas de modo geral tendem a resumir a concentração de renda a um problema moral. Às vezes, econômico. Expressam indignação com o fato de uma centena de super-ricos deter um patrimônio maior do que aquele de bilhões de outros seres humanos. E lembram: para a dinâmica do PIB, melhor mil indivíduos com mil do que um com 1 milhão. Mas concentração de renda significa, acima das iniquidades, concentração de poder e esse é o maior risco à existência das sociedades modernas. Ou da humanidade. Quem poderá deter as aspirações mais delirantes de alguém, e Elon Musk é a caricatura, que acumula uma riqueza superior àquela de muitas nações? Quem imporá limites a magnatas globais, acostumados a operar acima e à revelia das leis nacionais?
Com um rebranding, Marte até se torna habitável – Imagem: iStockphoto
A bazuca do capital financeiro são as big techs. Também neste caso, os progressistas têm dificuldade em entender o mecanismo. Há quem lamente o despreparo da esquerda para se comunicar nas redes sociais, como se circulassem em uma ágora grega, uma praça pública. Alexa, perdoe-os, eles não sabem o que pedem. As plataformas, na melhor das hipóteses, são uma praça de alimentação de um shopping. As escolhas são limitadas pelo espaço e pelo tamanho do investimento. É uma batalha perdida diariamente, em uma guerra que só pode ser vencida por meio de uma intervenção estatal equiparável ao desmembramento dos oligopólios nos Estados Unidos no início do século XX. Atenção: o advento da IA é outro passo adentro da mina escura e funda.
O capital financeiro advoga a liberdade, carajo… Para os seus. Quanto à patuleia, chicote no lombo. Subjugar os sem-poder, controlar o corpo das mulheres, matar os infiéis, destruir a fauna e a flora. A ordem é eliminar todo e qualquer obstáculo. Se der errado, pena. Até o limite do possível, os bilionários se refugiarão nos arranha-céus, atrás dos muros, em carros blindados e em cidades exclusivas. Quando o ar se tornar irrespirável, os voos e estações espaciais operados por empresas privadas os livrarão da vingança da natureza e dos deserdados. Ver o fim da aventura humana na Terra de cima será mais um serviço vip, espetáculo reservado a poucos. Marte não está assim tão longe. Um plano de negócios bem concebido e uma operação estruturada certamente irão viabilizar a sobrevivência em um ambiente até agora hostil. Bastariam alguns retoques, a começar pela cor. Nosso (novo) planeta nunca será vermelho. Convoquem um gênio dos efeitos especiais. Se é para mudar a decoração, por que não vender o naming rights? Quem sabe assim os sobreviventes venham a prosperar no Planeta X, sob as diretrizes da projeção holográfica do Supremo CEO Musk. •
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O bolso ou a vida’
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