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O apoio está nas ruas

Lula erra ao construir a governabilidade pelo alto, sem mobilizar o povo, alerta a deputada Luiza Erundina

O apoio está nas ruas
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Mal menor? ”Ouso dizer que Lira prejudicou mais o País que o próprio Bolsonaro”, avalia a parlamentar do PSOL, que participou da fundação do PT ao lado de Lula - Imagem: Redes sociais e Sergio Lima/AFP
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A sétima de dez filhos do artesão de selas e arreios de couro Antônio Evangelista de Sousa e de Enedina de Sousa Carvalho, Luiza Erundina começou a trabalhar ainda na infância, vendendo bolos feitos pela mãe em Uiraúna, no Sertão da Paraíba. Graduada em Serviço Social pela UFPB e militante das Ligas Camponesas, migrou para São Paulo em 1971, unindo-se ao movimento de resistência à ditadura. Em 1980, participou da fundação do PT, dando início a uma longa trajetória política. Pelo partido, elegeu-se vereadora, deputada constituinte e prefeita da capital paulista, primeira mulher a governar a cidade mais rica da América Latina.

Aos 88 anos, Erundina cumpre o sexto mandato como deputada federal. Filiada ao PSOL, participou ativamente da campanha pela eleição de Lula, mas se declara preocupada com o futuro da nova gestão. Teme que o antigo parceiro de lutas insista em construir a governabilidade apenas por meio de negociações – e “concessões inaceitáveis” – com o Legislativo, sem mobilizar o povo para defender o programa que o elegeu nas ruas. “Foi vexaminoso ver Arthur Lira reeleito presidente da Câmara com recorde de votos e apoio do Executivo. Ouso dizer que ele prejudicou mais o País que o próprio Bolsonaro”, lamenta, ao comentar a insólita aliança com o parlamentar que arquivou mais de cem pedidos de ­impeachment contra o ex-capitão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida a CartaCapital, na qual alerta Lula sobre os erros cometidos pelo PT no passado, analisa a emergência da extrema-direita no vácuo deixado pelas esquerdas nas periferias e aponta as carências de nossa “democracia manca”.

“Foi vexaminoso ver Arthur Lira reeleito presidente da Câmara com recorde de votos e apoio do Executivo”

O pesadelo Bolsonaro
Foi um período de medo, insegurança e autoritarismo. Muitos não se sentiam confortáveis nem sequer para discutir política em ambientes públicos. Na pandemia, muita gente adoeceu. Havia um sentimento de infelicidade, o temor de perder o emprego, de não conseguir levar comida à mesa. O Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, mas chegou a 33 milhões de famintos. As desigualdades se agravaram, com o crescimento vertiginoso da população em situação de rua. Sem falar do obscurantismo do governo no trato de questões como educação, cultura e ciência. Todas as reformas realizadas foram na direção de destruir direitos conquistados a duras penas pelos trabalhadores. Definitivamente, não foi um período de normalidade.

Governar com o povo
A eleição de Lula representou um alívio, pelo fim do pesadelo Bolsonaro, mas também esperança de mudanças mais profundas. Só que o novo governo é de reconstrução, fruto de uma aliança política muito ampla. A governabilidade está sendo construída em torno de um amplo conjunto de forças, que vai de A a Z, e meu maior receio é que muito do projeto original se perca para contemplar tantos interesses, como ocorreu em gestões anteriores do PT. No passado, a correlação desfavorável de forças no Congresso fez com que Lula e ­Dilma Rousseff deixassem de lado reformas estruturais, como a criação de um sistema tributário capaz de redistribuir renda. Agora, antes mesmo de assumir o cargo, o presidente precisou fazer concessões ao Centrão para aprovar a Emenda da Transição e viabilizar o pagamento de 600 reais aos beneficiários do Bolsa Família. Espero que, desta vez, ele busque governar sem abrir mão daquilo que é essencial em seu programa. Para não ter de fazer concessões inaceitáveis, precisa contar com apoio popular. Deve submeter as decisões estratégicas mais importantes ao crivo da sociedade civil organizada, estimular a mobilização popular.

Vácuo. Os evangélicos ocuparam o espaço deixado pelas esquerdas, mas com proposta política radicalmente distinta – Imagem: Mauro Pimentel/AFP

Aliado inconfiável
Foi vexaminoso ver Arthur Lira reeleito presidente da Câmara com recorde­ de votos e apoio do Executivo. Ouso dizer que ele prejudicou mais o País do que o próprio Bolsonaro. Todas as pautas do governo anterior ou de interesse dele próprio eram impostas sem consulta ao colégio de líderes. No curso de uma votação importante, ele não hesitava em alterar o entendimento do regimento interno da Casa, de forma a favorecer os seus apaniguados. Com o controle do “orçamento secreto”, Lira praticamente governou como uma espécie de primeiro-ministro informal, e deu enorme contribuição para os graves desequilíbrios econômicos e sociais vistos nos últimos anos. A Câmara recebeu mais de cem requerimentos de impeachment, para apurar os crimes cometidos por Bolsonaro. Lira engavetou todos. É um déspota, não tem escrúpulo algum. Lula deixou uma raposa cuidando do galinheiro.

A remissão de Salles
É inadmissível ver a movimentação de algumas lideranças para que Ricardo Salles assuma a presidência da Comissão de Meio Ambiente da Câmara. Quando ministro, ele aparelhou os órgãos de fiscalização e adotou uma série de iniciativas para afrouxar a legislação ambiental. Tornou-se alvo de uma investigação da Polícia Federal por facilitação ao contrabando de madeira extraída ilegalmente da Amazônia. Então ele se elege parlamentar e é promovido a uma condição privilegiada na área em que cometeu crimes? Veja o desastre causado pela mineração em Terras Indígenas, que Salles tanto defendia. O Brasil começa o ano no noticiário internacional como promotor de um crime de lesa-humanidade, com centenas de crianças do povo Yanomâmi morrendo por desnutrição e doenças tratáveis.

Pautas inegociáveis
No governo, o PT não pode abrir mão de repor as perdas no salário mínimo, de aumentar o quadro e melhorar as condições de trabalho dos servidores públicos, de recompor os orçamentos da saúde, da educação, da assistência social, da ciência e tecnologia. Ou seja, precisa recuperar o papel do Estado como formulador de políticas públicas, capaz de trazer o mínimo de dignidade para a população brasileira. Deve perseguir esses objetivos ao mesmo tempo que estimula o crescimento da economia e a geração de empregos de qualidade. Outro ponto central é reforçar os mecanismos de participação popular, por meio dos conselhos, das audiências públicas, do orçamento participativo. Tudo isso foi extinto nos últimos anos.

“Nas periferias, várias igrejas assumiram a feição de um movimento reacionário, com projeto de poder”

Banco Central independente
Os juros altos são realmente um entrave ao desenvolvimento, mas é forçoso reconhecer que eles estiveram nas alturas em outros períodos, quando o BC ainda era subordinado ao governo. De uns bons anos para cá, banqueiros e financistas se revezam no posto, em flagrante conflito de interesses. Eles ditam a política monetária do País e, depois de curto período de quarentena, retornam aos bancos para os quais trabalhavam antes. Isso é inadmissível, pois as instituições financeiras são diretamente interessadas nas decisões do BC. O próprio Lula cometeu o desatino de trazer Henrique Meirelles do BankBoston para assumir a presidência do Banco Central. Logo depois, ele voltou a operar no mercado financeiro. Como é que pode um negócio desses?

O retorno à base
Nas gestões petistas, muitos sindicalistas e lideranças de movimentos sociais foram cooptados pelo governo, trocaram a base pelos gabinetes em Brasília. Esse é um descuido recorrente das esquerdas, que prega a democracia, defende o protagonismo político do cidadão, mas não zela pela relação com a sociedade civil e com os eleitores em geral ao chegar ao poder. Em certa medida, a emergência da extrema-direita deve-se a essa falta de empenho na politização dos trabalhadores, dos moradores periféricos, como se fez logo após o fim da ditadura. As igrejas evangélicas ocuparam esse espaço. Elas sempre existiram nas periferias, só que numa proposta singela, no nível do indivíduo ou da família. As ações assistencialistas promovidas por elas não emancipavam a população, mas traziam algum alívio. De alguns anos para cá, o cenário mudou. Várias denominações assumiram a feição de um movimento reacionário, com claro projeto de poder. Essas igrejas passaram a eleger parlamentares, depois prefeitos, e a coisa foi crescendo, atingindo as massas. Não há como resistir a isso sem o retorno ao trabalho de base.

BC. “Lula cometeu o desatino de trazer Meirelles do BankBoston” – Imagem: Arquivo/ABR

Extremistas fora do armário
Fiquei assombrada com a guinada reacionária da população paulista. Após a desastrosa gestão do tucano João Doria, havia grande expectativa de que a esquerda finalmente conquistaria o governo estadual. Vimos, porém, a eleição de Tarcísio de Freitas, assumidamente bolsonarista. Apareceu uma direita radical que nunca vi tão açodada em toda a minha vida. Antes, não havia a defesa de posições tão extremistas ou ao menos ela não se pronunciava tanto, a turma parecia ter vergonha de assumir certas posições publicamente. Agora, não. Esse pessoal tem orgulho. Fui do período de resistência à ditadura e, depois, da construção do poder popular na periferia da cidade de São Paulo. Naquela época, a população acordou para a necessidade de defender os seus direitos, se organizou e lutou por eles. As conquistas sociais se deram à custa de muita luta, muito suor. Os governos Lula e Dilma tiveram os seus desacertos, até pela correlação de forças desfavorável no Congresso, mas houve alguma evolução social. É difícil entender como ocorreram tantos retrocessos em tão pouco tempo.

Democracia manca
Em uma sociedade tão desigual como a nossa, sem a garantia de direitos, sem acesso a serviços essenciais como saúde e educação, a democracia é inviável. Nem mesmo o direito à vida tem sido respeitado no Brasil, como vimos, agora, com o extermínio do povo ­Yanomâmi. Nos países com democracia madura, é comum o povo ser chamado para opinar sobre políticas públicas ou decisões que impactam a vida da maioria. Aqui, não. Os referendos e plebiscitos são raríssimos. Esses mecanismos estão previstos na Constituição, mas os governantes os ignoram. É uma democracia manca. Só temos a dimensão da democracia representativa, em um quadro partidário distorcido. Temos mais de 30 legendas e inventaram essa história de federação, que une alhos com bugalhos e compromete a identidade ideológica. Ao cabo, temos siglas, e não partidos. Perdoe-me a franqueza, mas tenho certa impaciência com a demora das mudanças no País. Mas, como Paulo Freire dizia, devemos nutrir uma “esperança histórica”. Estamos habituados a medir o tempo por anos de vida, mas a história envolve processos que levam décadas, séculos, às vezes milênios. Provavelmente, eu não verei o Brasil democrático dos meus sonhos e pelo qual tanto lutei. Quem sabe as próximas gerações tenham essa oportunidade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O apoio está nas ruas “

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