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O apelo de MarIA

Sou da Paz usa Inteligência Artificial em campanha para incentivar a entrega voluntária de armas de fogo

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Arquétipo. A personagem criada com a tecnologia é uma mulher negra, enlutada pela morte do filho, como tantas Marias da vida real – Imagem: Troup/Cyranos e alegria®
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Faltava apenas um dia para Layla Sofia Santos Menezes completar 2 anos de idade, quando um motorista descontrolado atirou contra o carro da família, depois de ter sido ultrapassado pelo pai da criança. O crime aconteceu na cidade de Areia Branca, em Sergipe, dia 24 de junho. O autor do disparo, Alex de Oliveira Nunes, que não tem habilitação para dirigir nem para portar arma, alegou ter atirado para “dar um susto”. O ato irresponsável vitimou a garota na hora. Dias antes, em Rio Verde de Mato Grosso, um menino de 2 anos pegou a arma do pai, que estava sobre uma mesa, e disparou sem querer contra a mãe, que foi atingida no braço e no tórax e morreu em minutos. Toda a cena foi registrada pelas câmeras de segurança da residência e demonstram que os pais não perceberam o momento que o pequeno começou a manipular a pistola, comprada pelo produtor rural com o objetivo de dar mais segurança à família.

Outro episódio chocante aconteceu em Santo Antônio da Alegria, interior de São Paulo, também em junho. Dois amigos CACs, ou seja, cadastrados como Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores, estavam num momento de descontração em casa, bebendo enquanto mexiam na coleção de armas. Sem perceber que uma pistola estava carregada, Gustavo Fornazzari Fernandes disparou acidentalmente contra Gabriel Amaral dos Santos, que morreu na hora. Em choque, Gustavo cometeu suicídio em seguida. Esses casos são apenas alguns exemplos de como uma sociedade com mais armas à disposição de civis torna-se um ambiente mais letal. O ex-presidente Jair Bolsonaro fez mais de 40 atos administrativos e decretos para flexibilizar o Estatuto do Desarmamento e liberar o acesso às armas. O resultado salta aos olhos: entre 2018 e 2022, o arsenal privado dos brasileiros passou de 1,5 milhão para 3 milhões de armas de fogo.

Diante desse cenário, o Instituto Sou da Paz acaba de lançar uma campanha pelo desarmamento voluntário, com foco na proteção de uma parcela específica da população. Em 2023, metade das mortes por agressão de mulheres foram cometidas com armas de fogo, e 72% delas eram negras, revelam dados obtidos pela entidade via Lei de Acesso à Informação. Não por acaso, os idealizadores do projeto decidiram criar uma emblemática personagem com uso de Inteligência Artificial.

A violência armada mata quase 38 mil brasileiros por ano

O publicitário Marcelo Reis, responsável criativo da campanha, explica que MarIA é a “soma de todas as dores”, e carrega o impacto emocional de quase 38 mil mortes anuais por arma de fogo no Brasil. A escolha de IA deu-se por diversos motivos, inclusive porque os autores acreditaram que seria muito difícil compilar tantos casos por meio de uma atriz interpretando o texto. Wal Tamagno, produtor-executivo da peça, destaca que o maior desafio foi “compilar a pesquisa quantitativa dos casos das Marias reais e transformar isso em uma personagem”.

A entrega voluntária de armas é uma política pública permanente no Brasil desde 2003, coordenada pelo Ministério da Justiça. No entanto, a pasta não tem orçamento disponível neste ano para divulgá-la, então o Sou da Paz decidiu bancar a publicidade com contribuições da sociedade civil. O processo permite a entrega de armas legais e ilegais sem penalidade, com um ressarcimento que varia de 150 a 450 reais, dependendo do calibre do armamento. Munições também podem ser entregues, mas sem pagamento.

Para entregar uma arma, o cidadão deve preencher uma guia de trânsito online, que servirá para dar proteção jurídica durante o trajeto, mas ao chegar ao posto de entrega, geralmente unidades da Polícia Civil, Militar ou Federal, não precisa identificar-se ou comprovar a origem da arma.

Mudança. Em 1º de julho, a competência de registrar e fiscalizar os CACs passou do Exército para a Polícia Federal – Imagem: Raphael Alves/Tribunal de Justiça/GOVAM

A diretora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, destaca que, entre 2017 e 2023, o número de peças registradas no Sistema Nacional de Armas, o Sinarm, aumentou 227,3%. Segundo a especialista, as armas viraram uma espécie de “bem de consumo”. “As pessoas não ponderam os riscos ou impactos futuros, compram porque podem, como se estivessem adquirindo um tênis ou um celular. É muito preocupante.” Os maiores entusiastas da posse de armas são homens brancos, das classes média e alta. Eles detêm 96% dos registros, enquanto as mulheres são donas de 4% do arsenal privado. Somente 2% dos CACs são pretos ou pardos. Entre as vítimas fatais registradas em 2023, 78% eram negros.

De acordo com Pollachi, é uma falácia que as armas são eficientes para a defesa pessoal. Pelo contrário, os lares tornam-se mais perigosos, e oferecem mais riscos principalmente para mulheres e crianças. Segundo a especialista, as mortes de mulheres por arma de fogo dentro de casa aumentaram de 19%, em 2019, para 25%, em 2022. Um levantamento no Distrito Federal revelou que mais de 50% dos feminicídios com arma de fogo foram cometidos com armas legais: “Se o agressor tem acesso a um revólver ou pistola, a mulher fica numa situação de vulnerabilidade bem mais elevada, mesmo que o armamento não tenha sido usado na agressão”, explica. O discurso de autodefesa é inconsequente, avalia. “Um cidadão de bem, que nunca fez nada contra ninguém, de repente em uma briga de trânsito ele vai sacar essa arma e se tornar um assassino.”

Pesquisador do Ipea, Daniel Cerqueira alerta que ter uma arma em casa “aumenta dez vezes a chance de alguém na família sofrer uma morte violenta por arma de fogo”. Destaca também que o artefato não é eficaz para autodefesa. “Um indivíduo armado tem 54% mais chances de sofrer um latrocínio se reagir a um assalto.” Coordenador do Atlas da Violência, ele explica que há um consenso nos meios acadêmicos internacionais sobre a correlação entre o número de armas de fogo e homicídios. “A arma é um elemento que contribui para o aumento da violência letal.” Em 2013, durante a elaboração da tese de doutorado, o especialista identificou que o aumento de 1% no número de armas de fogo em circulação numa cidade poderia fazer a taxa de homicídios crescer 2%. Uma análise mais recente, produzida entre 2019 e 2021, demonstrou que “a cada 1% de aumento na difusão de armas nas Unidades Federativas, a taxa de homicídio aumenta 1,1%”.

De 2018 a 2022, o arsenal privado dobrou de tamanho. Chegou a 3 milhões de armas de fogo

Por diversos fatores, nos últimos anos o índice de homicídios caiu no Brasil. Essa queda, porém, poderia ter sido mais expressiva se não tivesse aumentado tanto o arsenal privado, avalia Cerqueira. Ele destaca uma estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “Teria havido 6.379 homicídios a menos no País, entre 2019 e 2021, se não fosse a legislação permissiva de Bolsonaro”. Há ainda um elemento subjetivo que diz respeito ao “empoderamento em conflitos”. Uma pessoa comum, se estiver armada, pode se tornar mais agressiva ao se envolver em desavenças. “Em segundos, o que poderia ter sido uma discussão tola vira uma tragédia.”

Outro problema é o impacto das armas legais no mercado ilegal. “Quanto mais armas houver na legalidade, mais armas vão migrar para os mercados paralelos.” Somente em 2023, mais de 6 mil armas foram desviadas, roubadas ou extraviadas de CACs. O aumento da oferta decorrente desse desvio faz com que o preço das armas ilegais diminua, essa redução torna as armas ainda mais acessíveis aos criminosos. “Antes do Bolsonaro, um fuzil AR15 custava, no mínimo, 55 mil reais no mercado ilegal. Após a flexibilização, o preço caiu para 20 mil reais”, revela.

O quadro preocupante levou a mudanças no processo de registro e fiscalização de CACs, que no dia 1º de julho deixou de ser competência do Exército e passou para a Polícia Federal. Pollachi vê a mudança com bons olhos. “No Exército, havia muitas falhas. A PF, pela natureza de polícia e pelo acesso aos sistemas do Judiciário, tem potencial para fazer essas verificações com muito mais qualidade”, explica. Logo de saída, caberá à PF fiscalizar ao menos 4,8 milhões de armas de fogo. Isso representa aumento de 60% das armas sob a responsabilidade da corporação. Segundo a especialista, “será necessário fazer investimentos estruturais para lidar com essa demanda ou a situação poderá ficar insustentável”. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O apelo de MarIA’

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