Política

Novatos, de direita e em busca da reeleição: quem são os anti-cotas no Congresso

Uma pesquisa do Observatório da Branquitude analisou propostas parlamentares que propõem a extinção ou alteração de pontos centrais da Lei de Cotas

Jovem com cartaz pedindo cotas na Universidade de São Paulo, em 2019
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De todas as proposições em curso sobre a Lei de Cotas, cerca de 40% sugerem a extinção ou mudanças estruturais na política que facilita a inclusão – sobretudo da população negra brasileira– ao Ensino Superior. Destes projetos, a maioria são de autoria de deputados federais em seu primeiro mandato e que buscam à reeleição este ano. 

É o que mostra a pesquisa “Quem são os anticotas do Brasil?” lançada nesta quarta-feira 24 pelo Observatório da Branquitude (OdB). 

Em 29 de agosto deste ano, a lei completa exatamente uma década de implementação, um período emblemático a qual é prevista uma revisão que não tem data marcada, nem direcionamentos de como o debate pode acontecer no Congresso Nacional. 

Atualmente, o ​​programa garante metade das vagas a alunos da rede pública, pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e população de baixa renda em institutos, universidades federais e públicas para graduação e pós-graduação. Há também uma legislação derivada dela para os concursos públicos estaduais. 

A revisão, por sua vez, não é obrigatória, e nem sugere exclusão da lei caso não seja realizada. Na Câmara, já existem propostas, como o PL 1788/21, que prorroga a sua vigência sem revisão por mais 20 anos. 

Mas apesar da unidade de discussão ser definida a partir dessa atualização, o debate sobre a Lei de Cotas ocorre anualmente nas casas legislativas. Na atual legislatura, das 30 proposições do tema, 12 são de autoria de partidos de esquerda e centro-esquerda (PT, PCdoB, PSB e PSOL), sendo sete consideradas pelos pesquisadores favoráveis à ampliação de cotas (58%) e três contrárias (25%),

Outras 15 proposições são de autoria de partidos de direita, sendo oito são contrárias (53%) e quatro são favoráveis (26%), redigidas majoritariamente pelos partidos PSL, PRB, DEM e PSC. E as três restantes têm caráter neutro. 

Os dados explorados pelo Observatório da Branquitude foram coletados a partir de levantamentos do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB), do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (GEMAA-IESP), e pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e Negras (ABPN). 

‘Cotas para todos, menos para os negros’

O retrato do que a pesquisa chama de “candidatos anti-cotas” é formado, sobretudo, por políticos com agenda conservadora. Entre estes está a deputada bolsonarista Professora Dayane Pimentel, na época do PSL e hoje do União-BA, que apresentou o PL 1531/19, cujo objetivo era eliminar as cotas raciais, mantendo apenas a reserva de vagas social e para as pessoas com deficiência.

Em sua justificativa, a deputada apontou inconstitucionalidade e discriminação no projeto. “Se o disposto na Carta Magna se aplica a todos os casos, não se deve dar tratamento legal diferenciado à questão racial para o ingresso na educação pública federal de nível médio e superior”, indica Pimentel.

A deputada Professora Dayane Pimentel (PSL-BA), ex-bolsonarista e principal entusiasta da candidatura de Moro

O projeto não chegou a ser analisado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, mas voltou a ganhar evidência graças outro parlamentar, o deputado federal Dr. Jaziel (PSL-CE) que anexou uma nova proposição reforçando o pedido pelo fim das cotas raciais nas instituições federais.  

Apesar de reconhecer, na justificativa do PL, que a Lei de Cotas ampliou, na época, a presença de 39% de estudantes negros e indígenas oriundos de escolas públicas. O deputado menciona “caráter racista” por não ter a mesma ampliação do ingresso aos candidatos não-negros pobres. 

Para Carol Canegal Pozzana, cientista social pela PUC-Rio e pesquisadora do Observatório da Branquitude, a visão dos parlamentares é fruto de uma espécie de negacionismo racial, que reafirma que raça não existe.

“É um processo de atualização do mito da democracia racial”, aponta a pesquisadora. “Uma gramática da branquitude que é monocular, fragmentada e que acaba por focalizar em favor pela perpetuação de privilégios e interesses próprios.”

No caso do Dr. Jaziel (PL-CE) a cruzada anti-cotas é mascarada pela suposta defesa são de valores conservadores, patriotas e cristãos, como o candidato à reeleição.

O deputado federal Doutor Jaziel Pereira (PL), com sua esposa, a deputada estadual doutora Silvana Holanda (PL) em viagem com o presidente para a convenção das Assembleias de Deus Ministério Madureira, em Goiânia – Foto: Instagram/Doutor Jaziel

Em seu primeiro ano de mandato como deputado federal, em 2019, Jaziel participou da Frente em apoio ao Homeschooling na Câmara dos Deputados, proposta que regulamenta o ensino domiciliar no Brasil. 

Em geral, um dos questionamentos sobre o modelo é a sobreposição da escolha e valores familiares ao direito básico à educação. Ao defender o voto a favor do homeschooling, o deputado acusou as instituições de ensino a promover “inversão de valores” e mentiu sobre atual modelo, dizendo que as “escolas tendem a doutrinação, aborto e erotização das crianças”. 

Já no ano de 2020, ele foi contra a ratificação de um acordo antirracista da Convenção Interamericana. O texto previa que as nações se comprometessem a prevenir, eliminar e punir toda forma de preconceito e discriminação racial. O Projeto de Decreto Legislativo é considerado equivalente a uma emenda constitucional. 

Neste caso, o acordo foi aprovado em primeiro turno com votos da Câmara e do Senado por 414 a 39; e no segundo turno, por 417 a 42. E em janeiro de 2022, se tornou um decreto constitucional assinado pelo presidente Jair Bolsonaro. Nos dois turnos de votação, o Dr. Jaziel foi contra o acordo. 

‘Cotas para militares e atletas de alto desempenho’

Outra vertente do debate mapeada pela pesquisa são as proposições que sugerem a alteração da Lei de Cotas para inclusão de vagas para outros grupos.

O deputado federal, David Soares (União-SP), filho do pastor R.R Soares e candidato à reeleição, por exemplo, propôs que 10% das vagas em universidades públicas sejam direcionadas para estudantes que cumpriram serviço militar obrigatório. A proposta, contudo, acabou arquivada no final de 2021.

Soares justifica, no PL 285/2020, que devido à “abnegação” desses jovens para a “proteção da República Federativa”, as cotas na universidade seriam um incentivo a entrada de jovens nas Forças Armadas.

Segundo o deputado, a falta de adicionais noturnos e horas extras, a necessidade da disponibilidade integral e a exposição da própria vida para a defesa expressam a importância do Estado oferecer contrapartidas e políticas compensatórias a esse grupo, que nesse caso aconteceria via reserva de vagas nas universidades. 

“Não fica muito claro de onde vão sair essas vagas”, critica a pesquisadora Carol Canegal, “então existe o potencial rebatimento sobre a distribuição de vagas para as populações de racializadas”. 

O deputado David Soares e seu pai R.R Soares durante sua campanha à Câmara – Foto: Reprodução

“A despeito da distinta relevância dos membros do exército para o país – sua condição material não evidencia desigualdade que justifique a reserva de vagas nos vestibulares para o ensino superior público a essa categoria”, completa.

Estreante no Congresso, Soares é discreto em relação ao apoio a Bolsonaro. Ele viajou com o presidente em comitiva para Ásia e é o autor da emenda que perdoa dívidas tributárias de igrejas, valor que já supera 1 bilhão de reais. 

Ainda no que diz respeito à educação, também é de sua autoria um apensado ao antigo projeto do Escola Sem Partido que prevê alteração na Lei de Base e Diretrizes da Educação Nacional para proibir temas de “ideologia de gênero”, orientação sexual e identidade de gênero nas escolas. O projeto foi desarquivado em 2019 e aguarda criação de comissão especial temporária para sua apreciação.

‘De onde saem as vagas?’

Apesar da sugestão de criação de novas cotas, não há uma sondagem para criação de novas vagas nas universidades. 

Sob a mesma ótica, outro PL que vai para votação na Câmara dos Deputados este ano, segue sem especificação da porcentagem de vagas que serão reservadas para a nova cota. 

Trata-se do PL 2493/2019 da senadora Leila Barros (PDT-DF), conhecida como Leila do Vôlei, que determina alterações para apoio de atletas de alto nível, como o abono de faltas para participação de competições.

Para a reserva de vagas, é proposta uma equiparação dos atletas classificados nas seleções nacionais e estaduais de modalidades olímpicas e paralímpicas aos estudantes de escola pública.

Isso significa que os 50% das vagas reservadas aos estudantes de escolas da rede pública, pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e população de baixa renda seriam dividas com mais um grupo, o dos atletas.

Cabe explicar que a divisão desses 50% ocorre por curso, turno e de acordo com a respectiva proporção de estudantes que pleiteiam as vagas no seu distrito e se encaixam nos critérios detalhados acima. Em abril deste ano, o projeto foi aprovado pela Comissão de Educação, na qual Leila é vice-presidente, e segue para análise na Câmara dos Deputados.  

Em discurso à tribuna, senadora Leila Barros (PSB-DF) – Foto: Pedro França/Agência Senado

A senadora atua em seu primeiro mandato desde 2019. A previsão é de que ela seguisse no cargo até 2027, mas hoje ela disputa uma vaga para o governo do estado do Distrito Federal. Anteriormente, foi secretária de Esportes e Lazer de 2015 a 2018, durante sua passagem pelo atletismo brasileiro.

Economia sim, raça não 

A influência de alguns candidatos, como o filho do pastor, na comunicação pública também reverbera a discussão em outros níveis federativos. Foi o que aconteceu com o PL 4125/21,  do deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), que assim como os deputados Dayane e Jaziel, pediu pela retirada da raça nos critérios de redirecionamento de vagas. 

A diferença da proposição de Kataguiri, em seu primeiro mandato como deputado, é que a proposta menciona a exclusão de todos os critérios, permanecendo somente as cotas para população de baixa renda. 

No texto, a exclusividade aparece na criação do seguinte artigo: “Art. 8º-A. É vedado às instituições de ensino de que trata esta Lei, bem como ao Ministério da Educação, à presidência da República ou a qualquer outro órgão que tenha poder regulamentar instituir discriminação positiva para o ingresso nas instituições de ensino federal com base em cor, raça, origem ou qualquer critério, salvo o disposto expressamente nesta Lei”

A proposta aguarda o parecer do relator na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e, se avalizada, a lei entra em vigor na data de publicação.

O deputado Kim Kataguiri (União-SP), candidato à reeleição – Foto: Agência Senado

A equiparação entre raça e relação socioecônomica feita por Kataguiri ao justificar o projeto afirmando que “pobreza não tem cor” desconsidera o impacto histórico da escravidão no Brasil, explica Carol Canegal, pesquisadora do observatório. 

 “O que é rechaçada é a raça”, afirma, “vamos vendo coladinho o negacionismo racial e um certo nome do negacionismo científico”. 

A repercussão das redes sociais que esses grupos atingem também mobilizou a nível municipal, um pedido de retirada das cotas raciais para sociais nos concursos públicos de São Paulo. 

A alteração no Projeto de Lei 497/2021 foi encabeçada pelos vereadores Fernando Holiday (Novo), próximo a Kataguiri, e Rubinho Nunes (PSL). O principal argumento era o uso da heteroidentificação, recurso utilizado para prevenir fraudes no sistema de cotas. Para Holiday, “estes critérios, da forma em que eles estão no projeto atual, são muito subjetivos e podem causar constrangimento em diversas pessoas”. A mudança proposta não entrou em vigor. 

Ainda na seara do debate racial, o líder do MBL foi alvo recente de críticas por afirmar em entrevista a um podcast que seria contra a criminalização do nazismo. Após a repercussão, o deputado pediu desculpas publicamente. Kataguiri é candidato à reeleição na Câmara. 

https://twitter.com/vivireispsol/status/1491031494676316161?s=20&t=XHkYpLxmNG8SN55BAa72ZQ

‘Com cotas, mas sem verificação’

Assim como Holiday em São Paulo, Marcel Van Hattem (NOVO-RS) também questionou a verificação racial contra fraudes nas reserva de vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário. O PL do deputado exige a retirada do mecanismo e está sujeita à apreciação no Plenário.

O deputado federal Marcel Van Hattem, candidato à reeleição – Foto: Agência Senado

A pesquisadora Canegal conclui que as proposições, apesar de não serem numerosas, acendem um alerta de uma possível escalada contra raça nos debates das ações afirmativas. 

“O que está em jogo é o aprimoramento da Lei, existe uma articulação muito grande dos movimentos negros em torno da salvaguarda da lei, que realmente é preciso”, afirma. “Nunca achamos que [a ofensiva contra a Lei de Cotas] ia ganhar a proporção que ganhou e, agora, estamos voltando a discutir essas questões. É um cenário que exige essa cautela.”

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