Política

Notáveis arrependidos abandonam o barco de Jair Bolsonaro

Celebridades diversas desfilam seu arrependimento, enquanto carregam na testa o inevitável adereço: ‘Eu avisei’

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“Arrepender”, ensina o pai dos burros, é vocábulo que data do século XIII. O arrependimento, no entanto, é da cepa da Grécia antiga, onde o vocábulo “metanoia” já dava conta de certas conversões, mudanças de rumo e de atitude que fatalmente levariam à evolução. A botar palavra na boca de João Batista, reza a Bíblia que o pregador da Judeia teria dito o seguinte: “O tempo está cumprido, e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”. Com suas conjugações verbais um tanto anacrônicas, o próprio Jesus deu o alerta: “Se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis”. E 2019 anos depois, arrepender-se é a última moda no Brasil. Celebridades diversas desfilam seu arrependimento, enquanto carregam na testa o inevitável adereço: “Eu avisei”.

Um historiador radialista, uma apresentadora de televisão, dois cantores, um cineasta, dois atores (um pornô), um jornalista, dois deputados, além do Tio Rei. Tais personagens encontravam-se até outro dia embarcados no Titanic de um golpe de Estado, a vergar o esporte fino da CBF e bailar a musiquinha do impeachment: “Fora Dilma, fora Lula, fora PT”. À louvável exceção do último, só perceberam a aproximação do iceberg quando se deram conta de que a aventura deu no que deu: sob Bolsonaro, o transatlântico transmutou-se numa nau de loucos. Com a economia em maré seca, os ratos optaram por abandonar o navio. Execrados como “comunistas” pelos que seguem a bordo, são bem-vindos do lado de cá, embora o comunismo já tenha sido mais bem frequentado. 

Marco Antônio Villa: historiador, ex-Jovem Pan

O historiador Marco Antônio Villa notabilizou-se por dar tons acadêmicos ao direitismo tosco. A partir dos protestos de 2013, sua persona furibunda de fala razoavelmente articulada achou-se no papel de um dos tantos coadjuvantes necessários à ficção do impeachment. Primeiro ladeado por Tio Rei no site de Veja, depois em caudalosa produção de asneiras na Rádio Jovem Pan, tornou-se figurinha batida no álbum da direita chucra. Satisfeito com o reconhecimento que a academia jamais lhe conferiu, nadou de braçada nesse pântano. Há pouco mais de um ano, comemorava o “mesversário da prisão de Lula”. Ao pular do barco com críticas a Bolsonaro, a terra firme custou-lhe a cabeça depois de quase cinco anos na velhaca Jovem Pan. Posto na geladeira durante os últimos 30 dias, pediu demissão esta semana. “Não é agradável o que estou passando, não sou moleque, tenho história, compromisso com a história.” Sei.

Rachel Sheherazade: apresentadora do SBT

Se Bolsonaro pediu a cabeça oca de Villa, “não posso dizer que ‘sim’ nem que ‘não’”, falou o decapitado ao portal UOL. Pública foi a sugestão da guilhotina para outro pescoço arrependido, o da apresentadora do telejornal SBT Brasil Rachel Sheherazade. “O jornalismo da grande mídia está todo contaminado com ideologias comunistas. Parabéns Sílvio Santos”, escreveu Luciano Hang, o dono das Lojas Havan, em comentário feito no fim de semana passado a respeito de demissões nas equipes de imprensa da emissora. “Ainda falta mais gente para você demetir (sic). Raquel (sic) é uma delas”. As Lojas Havan patrocinam programas do SBT. “Já está registrado! Empresário chantageia a emissora onde trabalho e ainda vem a público pedir minha cabeça de jornalista”, respondeu a egressa da barca furada. “Vai ter processo.”

Oriunda da Jovem Pan, essa incubadora de serpentes, Sheherazade despontaria para o anonimato não tivesse o fracasso lhe subido à cabeça. Aboletada em posição de destaque na banana boat dos coxinhas, surfou a onda que levaria ao golpe e à consequente eleição de Bolsonaro dois anos depois. Era aquele tipo que lembrava José Dirceu sob o crivo de Roberto Jefferson, “vossa excelência desperta em mim os instintos mais primitivos”. Jogou-se do bote pouco antes das eleições, quando o vice Hamilton Mourão disse que famílias sem pais e avôs são “fábricas de desajustados”. “Sou mulher. Crio dois filhos sozinha. Fui criada por minha mãe e minha avó. Não. Não somos criminosas. Somos HEROÍNAS!”, tuitou, a arrematar com o cartão de desembarque: “#EleNão”.   

Deram-se conta de que o Titanic transmutou-se numa nau de loucos

Lobão: cantor

Fagner: cantor

Lobão, cantor e compositor de O Rock Errou, foi outro a se evadir. Em entrevista ao Valor Econômico, há pouco mais de um mês, disse que o governo Bolsonaro “é um desastre”. Um dos maiores influenciadores das redes sociais da direita sertaneja, com mais de 650 mil seguidores, declarou apoio a Bozo em setembro de 2018, depois de se dizer desencantado com as propostas do Partido Novo. Nove meses depois, acha que o presidente “se afunda em delírio persecutório e paranoico”, algo de que deve ser entendedor por experiência própria, já que via nas políticas petistas um caminho para o Brasil se tornar a Coreia do Norte. A repetir Lobão, Fágner, cantor e compositor de Deslizes, chamou de “amador” o governo que ajudou a eleger. “Se você fizer uma pesquisa de campo com os que votaram no Bolsonaro, 90% das pessoas estão decepcionadas”, diz o Lobo Mau. “E não podia ser de outra maneira, porque isso está uma novela mexicana de quinta categoria, um melodrama horroroso e brega.” (A lembrança das canções dos dois compositores é do escritor Fernando Morais, que escalou um Arrependidos Futebol Clube em seu blog Nocaute.)

O DataLobo, sejamos honestos, está a inflar as estatísticas. Segundo a última pesquisa do Ibope, os eleitores arrependidos de Jair Bolsonaro somam “apenas” 19 milhões de brasileiros. São, em um perfil médio, homens de 35 a 44 anos, com renda mensal de dois a cinco salários mínimos, escolaridade até o Ensino Médio e moradores das periferias das grandes cidades, com destaque para aquelas da Região Sul do País. O pobre de direita, coitado. Este foi o grupo que deixou de avaliar o governo como bom ou ótimo. 

José Padilha: cineasta

Pobre de espírito, o cineasta José Padilha é outro notável entre os arrependidos. Padilha é o diretor da série O Mecanismo, da Netflix. Aquela em que o personagem inspirado em Lula aparece dizendo ser necessário “estancar a sangria”. Certa vez afirmou que o então juiz Sérgio Moro era um “samurai ronin”, referência elogiosa à “independência política que balizava sua conduta”. Prestes a lançar a segunda temporada da série, o também diretor de Tropa de Elite e Ônibus 174 diz agora ter feito um “erro de julgamento” sobre Moro e que sua atitude de “ajudar a acusação” é “claramente estúpida”. Sobre Lula, no entanto, “considero-o um picareta”. A julgar pela primeira temporada, é possível que 39 quilos de cocaína surjam no avião do ex-presidente em O Mecanismo 2

Thiago Lacerda: ator

Ainda na seara do audiovisual, temos um arrependido novo, o ator Thiago Lacerda. Antes empedernido defensor de Super-Moro, enxerga agora o “batom na cueca” de seu herói. Heróis costumam usar cueca em cima das calças e não o contrário (vide o Super-Homem), isso as torna bastante visíveis. Lacerda, no entanto, precisou das revelações de conversas entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol, pelo site The Intercept Brasil, para enxergar a marca comprometedora do juiz parcial. Há duas semanas pediu a renúncia do superministro e a soltura imediata de Lula. A ficha do jornalista Gilberto Dimenstein, do site Catraca Livre, caiu um mês antes, quando Bolsonaro revelou a promessa de vaga no STF ao mesmo Moro que o ajudaria nas eleições. “E pensar que eu arrumei briga com amigos por defender esse sujeito. E escrevi que ele era um dos heróis nacionais. Desculpa, desculpa, desculpa.”

É possível que 39 kg de cocaína surjam no avião de Lula em O Mecanismo 2

Gilberto Dimenstein: jornalista

Alexandre Frota: deputado federal/ator pornô

Kim Kataguiri: deputado federal/MBL

No campo político, os deputados federais Alexandre Frota, do PSL, e Kim Kataguiri, do DEM, ensaiam um claudicante rompimento com o governo. São, vamos dizer, arrependidos de meia-tigela. Frota deixou-se chatear ao saber-se persona non grata no próprio partido, rompeu com Olavo de Carvalho, 01, 02, 03. Kim Kataguiri concluiu tardiamente que “Bolsonaro não consegue administrar nem a própria casa”. Em áudio vazado pelo Intercept, o então juiz Moro chama os integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), que catapultou Kataguiri ao Congresso, de “tontos”. Bingo! Resta ainda Janaina Paschoal, a deputada estadual do PSL de São Paulo e uma das autoras do pedido de impeachment de Dilma, que não tem poupado críticas ao desgoverno. Quando Janaina Paschoal se torna uma pessoa razoável, acende uma luz amarela.

Janaina Paschoal: deputada estadual

Por fim, o mais louvável dos arrependidos: o Tio Rei, apodo que buscava prejudicar a imagem do comentarista político Reinaldo Azevedo antes que este virasse a casaca. Parido como celebridade por Veja e, claro, Jovem Pan, é o criador do termo “petralha”. Contudo, dedica-se há mais de ano a apontar as manobras e falta de provas na condenação de Lula. É também feroz adversário do bolsonarismo. Pelo conjunto de sua obra recente, trata-se do primeiro a receber do público dito de esquerda o título de Arrependido Que A Gente Gosta. “Se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis.” Ao que tudo indica, Tio Rei vai para o céu.

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