Política

Nós, os acomodados

Aqui, reclamamos da nossa “acomodação”, mas somos conservadores e apoiamos o poder estatal sempre que a agitação nos parece “perigosa”

Muros de Santiago, onde a mobilização é quase cultural
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Era um casal de classe média alta. Simpáticos, educados, cerca de 45 anos ambos. Sentaram ao meu lado no avião no voo que nos trazia de Santiago do Chile. Voltávamos do mesmo lugar, mas em poucos minutos de conversa percebi que havíamos estado em dois países diferentes.

Enquanto o marido cochilava, a mulher me mostrou, no iPad, as fotografias da viagem. Belos prédios, restaurantes, fotos de comida, da ida à cordilheira dos Andes para conhecer a neve, das degustações de vinho. Ela me contou alegre da tarde que passaram no maior shopping center de Santiago, que por pouco não haviam pago excesso de bagagem. Somos a quinta economia do mundo e adoramos fazer compras. A gente trabalha pra caramba. A gente merece.

Nossa conversa me deu a impressão de ter estado em outro país. Minhas fotografias eram em grande parte de grafites e pichações de cunho político estampados nos muros da cidade. Cartazes que lembravam os recém-completados 40 anos de golpe militar, faixas de protesto de trabalhadores na fachada de lojas ou pendurados na beira do rio Mapocho, em cujas margens trabalhadores rurais permaneciam acampados. Uma passeata feminista pelo centro comercial contra o assédio sexual nas ruas (também conhecido como cantada). Uma pracinha construída em 12 horas com caixotes de feira e garrafas pet por um movimento de ocupação urbana. As casas de Pablo Neruda, Nobel de literatura, falecido dez dias após o golpe de Estado que deu origem a uma das ditaduras mais sangrentas do continente sul-americano – e cujo funeral constituiu um dos primeiros atos de resistência contra o regime militar naquele país.

Assim como eu, o casal simpático que sentou ao meu lado havia adorado o Chile. Tudo muito bonito, muito organizado, me disseram. Contaram que estiveram na sede do governo, o La Moneda, para assistir à troca da guarda.

Eles não sabiam que há 40 anos aquele lugar havia sido bombardeado pelos militares em outro 11 de Setembro; que neste dia o presidente, prestes a morrer, resistia ao golpe e convocava a população em um discurso pelo rádio para que defendessem o palácio de governo. Que, naquele dia, cinco mil pessoas foram feitas prisioneiras políticas no Estádio Nacional; que muitos foram fuzilados e que, em 15 anos de ditadura, houve um saldo de 40 mil desaparecidos políticos; que há inúmeros monumentos em Santiago em memória dessas pessoas que não são mencionadas como vítimas, mas como seres humanos que resistiram politicamente.

Comentei sobre tudo isso muito empolgada, não sem motivos. Sou cientista política e havia ido a Santiago para participar de um congresso na área. Meus companheiros de viagem, comerciantes, consideravam os chilenos muito politizados, um povo muito consciente de seus direitos, um povo muito diferente de nós, brasileiros. Comentei com eles que fiquei impressionada com o fato de que todos os dias, fossem nas inscrições nas paredes ou nas pequenas manifestações de rua, tinha visto alguma movimentação política em Santiago.

E foi neste momento que percebi, nesse simpático casal de classe média o quanto nós, brasileiros, estamos distantes das demandas – e das lutas – populares. Política é uma coisa muito complicada. Sim, é importante. “Mas sabe como é, a gente já trabalha tanto…”

Embora confessassem não entender muito sobre história e processos políticos, meus companheiros de viagem possuíam algumas convicções bem arraigadas. Sobre o povo brasileiro ser acomodado, embora eles mesmos não se vissem como parte do povo. Porque protestar tudo bem, mas fazer “bagunça”, aí já é vandalismo. Daí a justificar a violência policial contra os manifestantes não demorou muito. Disse a eles que mesmo nos casos de transgressão à lei, não é o papel da polícia bater ou atirar na população desarmada, que a punição é responsabilidade do Poder Judiciário. Mas aparentemente isso, para eles, não era um problema.

Enquanto estava em Santiago, acompanhei pela Internet as notícias sobre uma nova onda de protestos que parece estar começando nas grandes cidades brasileiras e que, tal como as manifestações de junho, foram alvo de forte repressão brutal policial. Isso me faz pensar na necessidade de se olhar o Chile para além da cordilheira dos Andes.

Como um lugar que também passou por anos sangrentos e que desde 2011 tem sido palco de intensas agitações sociais, semelhantes às que começam a tomar corpo no Brasil. Como naquele país, caminhamos para um processo de criminalização dos movimentos sociais, na evocação de leis antiterrorismo criadas durante a ditadura para enquadrar presos políticos. A repressão, ao que tudo indica, deve piorar, sobretudo com a criação de novos dispositivos legais para tipificação de crime de terrorismo.

Foi quando a aeromoça anunciou que em breve pousaríamos. Pensei nesse descompasso de nós, brasileiros, em relação aos países da América do Sul. Não conhecemos a história do continente, não conhecemos a produção cultural e, quando saímos do país, pela primeira vez nossos destinos preferidos são os Estados Unidos ou a Europa.

Reclamamos e nos desculpamos pela nossa suposta acomodação em relação à política, mas somos conservadores e nos posicionamos ao lado do poder estatal sempre que a agitação social nos parece minimamente perigosa. Não buscamos a experiência de alteridade: queremos consumir, queremos fotos para postar nas redes sociais. Nós até gostaríamos que as coisas fossem diferentes. Mas desembarcamos para retornar às nossas rotinas sem muita resistência, não sem antes dar uma passadinha no free shop. Sabe como é: política é uma coisa complicada e depois, a gente já trabalha tanto.

 

Fhoutine Marie é cientista política

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