Política

Nomeações em estatais violam a ética e a Lei de Conflito de Interesses

Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Eletrobras e Petrobras têm sido uma festa para os amigos dos homens no poder

Apoie Siga-nos no

A empresária Letícia Catelani, de 30 anos, é amigona de Eduardo Bolsonaro, de 34, e tinha descolado uma boquinha no governo do pai do amigo. Ganhava uma nota, 43 mil por mês, como diretora na Apex, a agência de promoção de exportações. Não vai ganhar mais. Na segunda-feira 6, perdeu o emprego e a estribeira: “Sofri pressão de dentro do governo pela manutenção de contratos espúrios”. Seriam “espúrios” certos patrocínios da Apex, como o dado ao sindicato paulista do audiovisual. Para Letícia, alguns filmes nacionais são uma afronta à extrema-direita dela e do clã Bolsonaro. O contra-almirante que recém-assumiu a presidência da Apex, Sérgio Segovia, o terceiro no cargo em 2019, não tem o fanatismo da empresária e mandou-a embora. Não se sabe se os contratos a que se referiu Letícia realmente se opõem à ética e são desonestos, definições de “espúrio” no dicionário Aurélio. Mas, que há coisas “espúrias” no governo de Jair Bolsonaro, há.

Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Eletrobras e Petrobras têm sido uma festa para os amigos dos homens no poder e para os homens de negócios do País, especialmente aqueles endinheirados do sistema financeiro. Nas quatro estatais, todas comandadas por pessoas decididas a reduzi-las a pouco mais do que pó, há benefício de amigos e uma acintosa violação da Lei de Conflito de Interesses e da Lei das Estatais. Tudo graças à escolha de assessores, dirigentes e de membros do conselho de administração, órgão em geral de umas dez pessoas que decide os rumos estratégicos de uma companhia. Uma dessas situações acaba de merecer uma requisição ao Ministério Público Federal (MPF) para que seja investigada uma possível improbidade administrativa.

A suspeita é na Caixa. Seu presidente, o economista Pedro Guimarães, de 46 anos, empregou um amigo como consultor. É Cleyton Carregari, personal trainer. Carregari embolsará uns 30 mil por mês na área de marketing esportivo e social. Guimarães queria tê-lo como auditor de contratos de patrocínio esportivo. Botar um personal em auditoria não pegou bem, e o arranjo mudou. Sua função é de colaborador na elaboração de uma nova política de patrocínio. Em uma declaração pública, Guimarães admitiu que o fator “amizade” era essencial. “Ele é meu amigo e preciso de gente de confiança”, disse. Um ato “ilegal e imoral, ensejador, entre outras penalidades, de improbidade”, afirma um pedido de abertura de inquérito levado ao MPF em 24 de abril pela deputada petista Erika Kokay, ex-bancária e ex-presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília.

Guimarães admite: o fator amizade é essencial. “Eu preciso de gente de confiança”

Guimarães arrumou emprego para outro parceiro. É Rafael Pesce, diretor da Caixapar, empresa filhote do banco para atuar com ações, compra de fatias de empresas, essas coisas. Sua relação com Guimarães nasceu no Banco Plural, do qual o presidente da Caixa era sócio até entrar no governo. Em 30 de março de 2018, por exemplo, um fundo criado pelo Banco Plural, o BRPP gestão de recursos, enviou um documento à CVM, a “xerife” do mercado de capitais, com duas assinaturas. A de Guimarães, diretor de administração de valores mobiliários, e a de Pesce, diretor de gestão de risco e controle interno. Pela papelada, Pesce estava no Grupo Brasil Plural desde 2013. Hoje circula na Caixa de maneira furtiva, com o crachá meio escondido, no relato de funcionários.

Ao que parece, ajudará a levar adiante planos para Paulo Guedes nenhum botar defeito. Guimarães quer privatizar tanta, mas tanta coisa da Caixa, a ponto de “massacrar” Bradesco e Itaú, expressão usada em uma palestra em abril. As vendas começaram pela área de seguros, bastante rentável no setor privado. Em uma reunião com entidades de funcionários da Caixa após o Carnaval, disse que até 2022 transformará o banco, que é 100% estatal e não tem ações na bolsa, em uma S.A. E que ele, o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, e o da Petrobras, Roberto Castello Branco, foram os responsáveis por aproximar Bolsonaro do “mercado”, lá pelos idos de 2013, 2014.

O conselho de administração da Caixa está de portas abertas para Luiz Fernando Figueiredo, basta Guedes, o ministro da Economia, bater o martelo. Figueiredo é sócio e principal executivo de uma empresa que pega dinheiro alheio e tenta multiplicá-lo, a Mauá. Havia sido indicado pelo governo para o conselho do Banco do Brasil, uma estatal com ações na bolsa, mas, até agora, não emplacou por lá. O motivo é conflito de interesses. Estaria em posição de obter informações estratégicas e valiosas sobre o BB e botá-la a serviço da Mauá.

Um comitê do BB que opina sobre nomeações e salários foi contra a indicação dele. Para o comitê, “no mercado financeiro não basta praticar a honestidade e a confidencialidade. É preciso demonstrar diariamente que a governança e as estruturas societárias, dentre elas os colegiados, estão integralmente vocacionados a conferir transparência e rechaçar os potenciais conflitos de interesses, ainda que aparentes”. Ser conselheiro, prossegue o comitê, “talvez seja incompatível com a função de gestor de recursos de terceiros”. A CVM, que deveria zelar para não haver o uso de informação privilegiada no “mercado”, foi provocada sobre o caso de Figueiredo e pediu explicações ao BB. O banco admitiu que a situação merecia “um exame acurado”.

Cleyton Carregari, o personal trainer virou assessor na Caixa

O Brasil tem uma Lei de Conflito de Interesses com regras para cargos públicos. É a 12.813, de 2013. Vale para todos os “ocupantes de cargos ou empregos cujo exercício proporcione acesso a informação privilegiada capaz de trazer vantagem econômica ou financeira para o agente público ou para terceiro”. Define o conflito como situação capaz de “comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”. Não precisa haver lesão ao Erário ou suborno. Ainda conforme a lei, informação privilegiada é o que for “sigiloso” ou “relevante” na tomada de decisão do governo, “tenha repercussão econômica ou financeira e que não seja de amplo conhecimento público”.

Usar informação privilegiada para fazer negócios no “mercado” é crime. Está na lei que criou a CVM, a 6.385, de 1976. Dá de 1 a 5 anos de cadeia e uma multa equivalente ao triplo do lucro. É punido igualmente aquele que obtém esse tipo de informação graças ao cargo e passa a informação adiante. Na terça-feira 7, Wesley Batista, da JBS/Friboi, foi denunciado pelo MPF por informação privilegiada. Teria ordenado a compra de dólares às vésperas de sua delação e do irmão Joesley surgir e quase derrubar Michel Temer, em maio de 2017. A Justiça pouco condena por esse crime. Idem a CVM, que impõe sanções não criminais, como multa. Em 2007, Gustavo Guedes, irmão do ministro da Economia, foi condenado pela CVM. Ele e Paulo dirigiam um fundo que lucrou na bolsa com uma informação obtida por um analista do fundo que tinha visitado uma empresa, a Cambuci (uma rolagem de dívida bancária estava a caminho, o que faria subir o preço das ações da Cambuci). Gustavo foi punido com advertência, e nem isso a CVM gosta de fazer. Seu depoimento inocentou o irmão.

O ministro da Economia quer botar um amigo no conselho de administração do Banco do Brasil. É Marcelo Serfaty, outro caso de conflito de interesses. Serfaty é sócio do G5 Partners, empresa que aconselha endinheirados na hora de investir e busca negócios para eles. Trabalhou com Guedes em dois lugares, a Fidúcia, gestora de recursos alheios, e o Pactual, onde era conhecido como “cachorro louco” e do qual o ministro foi sócio. Passou ainda no Bozano, Simonsen, banco acusado em 2018, na Operação Câmbio, Desligo, de integrar uma megarrede ilegal de doleiros. Até entrar no governo, Guedes era sócio do dono do grupo Bozano, o bilionário octogenário Julio Bozano. Na terça-feira 7, o conselho de administração do BB empossou novos membros e Serfaty não assumiu. O comitê de nomeações do banco tem restrições iguais às feitas a Figueiredo. Mas ainda é possível que Serfaty seja empossado, dado o desejo de Guedes.

Pela Lei de Conflito de Interesses, quem está em posição de evitar que surjam conflitos também tem de obedecer às regras. Ou seja: Guedes, que por ser ministro formaliza em nome do governo as indicações de conselheiros da Caixa e do BB. E os dirigentes dos dois bancos, Pedro Guimarães e Rubem Novaes. A própria Lei das Estatais, a 13.303, de 2016, aprovada para barrar sindicalistas nas empresas, proíbe nomear conselheiro em situação de conflito de interesse. Novaes, registre-se, está à frente de uma estatal que gostaria de vender. “Se o Banco do Brasil fosse privado, teria um resultado melhor do que tem hoje”, disse em fevereiro, ao anunciar o balanço de 2018. Um executivo, afirmam funcionários, dado a comentários machistas, que se envolve pouco no cotidiano do BB e que gosta mesmo é de temas que fazem certa cabeça no Palácio do Planalto, como o veto à propaganda de tevê com negros e mulheres que tentaria atrair clientes e aborreceu Bolsonaro. “É um nível de interferência que nunca se viu no banco, e em coisas pequenas”, diz um funcionário.

A Amec é presidida por Cunha e reúne 60 capitalistas, estrangeiros inclusive, com 700 bilhões em aplicações

Para tentar se tornar conselheiro do BB, Figueiredo até mostrou disposição para deixar suas funções na Mauá. Passar pelo setor público valoriza o currículo na volta ao setor privado. Uma volta cheia de informações e relações. São as “portas giratórias” de que fala Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia em 2001. Figueiredo foi diretor do Banco Central na era FHC. Quem topou abrir mão do cargo para tentar desfazer conflito de interesses e assim entrar no conselho do BB é Guilherme Horn. Ele é da consultoria Accenture, onde comanda a área de fintechs, serviços financeiros oferecidos com juros e taxas menores do que bancos. O BB tem parcerias com fintechs. Com Horn, Serfarty e companhia, seu conselho será bem influenciado por homens das finanças privadas.

Na Eletrobras, a influência forte é de Jorge Paulo Lemann, de 79 anos, o segundo homem mais rico do País em 2019, dono de 22 bilhões de dólares. Começou no governo Temer e manteve-se no de Bolsonaro. Lemann é o maior sócio do 3G, empresa defensora declarada da privatização da Eletrobras e que aumentou de 5% para 15% sua fatia na estatal desde 2017. Em 29 de abril, houve uma assembleia-geral de acionistas e estes aprovaram dez membros para o conselho de administração. Um festival de conflito de interesses a ponto de a AEEL, a associação dos funcionários, que tem direito a uma vaga no conselho, ter votado contra vários indicados e feito consignar em ata 19 páginas que esculhambam a situação.Vicente Falconi entrou em 2017 no conselho e foi reconduzido em abril.

É íntimo de Lemann e dos dois sócios deste no 3G, Marcel Telles e Beto Sicupira.

O livro biográfico de Falconi foi prefaciado pelo 3G. Descreve como “simbiose perfeita” a relação do biografado com o trio do 3G e chama de “discípulo” o principal executivo do grupo, Alexandre Behring. Falconi chegara ao conselho como indicado do governo, que é o acionista majoritário, e continua assim. Os minoritários também têm direito a vagas, mas menos. Em 2018, o 3G havia colocado no conselho Elvira Presta. Há três meses, o conselho aprovou, e agora Elvira é a diretora financeira da companhia. E portadora de informações valiosas, já que o governo planeja, desde Temer, deixar de ser o maior acionista e entregar o controle da estatal ao setor privado.

Outro tentáculo do 3G no conselho e situação de conflito de interesses é Mauro Cunha. Este é presidente da Associação de Investidores do Mercado de Capitais. A Amec reúne cerca de 60 capitalistas, inclusive estrangeiros, donos de uns 700 bilhões de reais em aplicações. É o suprassumo da “elite”. O 3G bota dinheiro na entidade, juntamente com BTG Pactual, Itaú, Opportunity, Bradesco, entre outros. O presidente do conselho da Eletrobras é José Guimarães Monforte. Um exemplo de como o governo já delega as decisões ao setor privado. Monforte costuma representar minoritários em conselhos. Foi assim na Petrobras, em 2014. Chegou ao da Eletrobras em 2017 na condição de indicado do governo e assim permanece.

 

Um indicado 100% do governo Bolsonaro no conselho da Eletrobras foi condenado pela CVM em 2018. Professor da Escola Naval de Guerra, Rui Flaks Schneider era conselheiro na Teka Tecelagem, soube de irregularidades contábeis e nada fez. Foi enquadrado na Lei das S.A. Em março, a CVM declarou “irregular” uma nomeação feita no ano passado para o conselho da Eletrobras, um caso descarado de conflito de interesses. Manoel Zaroni era do conselho da Engie, companhia francesa concorrente da Eletrobras. Havia sido indicado não como representante dos minoritários, mas do próprio governo. Violação da Lei das S.A., que proíbe a presença de concorrentes nos conselhos.

“Antes o governo botava no conselho da Eletrobras pessoas com um outro perfil, agora a visão do sistema financeiro prevalece e este não necessariamente tem os mesmos interesses do conjunto do País, da sociedade”, diz um funcionário de carreira da empresa, impressionado com o poder do presidente, Wilson Ferreira Jr., 60 anos festejados dia 3. Este é do time de Guimarães, da Caixa, e de Novaes, do Banco do Brasil, pessoas que gostariam de usar o cargo público que ocupam para acabar com a estatal que comandam. Um quarteto completado pelo septuagenário Chicago Boy Roberto Castello Branco, da Petrobras. “Como liberal, somos contrários a empresas estatais. Petrobras também privatizada e o BNDES extinto, esse seria o meu sonho”, disse em março no evento “A nova economia liberal”, da FGV.

Núcleo Petrobras. Guedes encomendou ao amigo Langoni um plano para vender o setor de gás da Petrobras. E Langoni terceirizou a tarefa a um consultor de petroleiras estrangeiras, Tavares, e a um ex-presidente da associação das empresas do setor, de Luca

Castello Branco acaba de mexer na equipe. Mandou o gerente da área de gás natural, Marcelo Cruz, à BR Distribuidora, e deslocará para outro assunto o assessor Luciano Castro, antes conselheiro para o tema “gás natural”. Cruz e Castro tornaram-se inconvenientes, segundo o noticiário, devido às opiniões quanto a uma reviravolta preparada pelo governo para o setor de gás. Uma reviravolta que também tem conflitos de interesse, Paulo Guedes e seus amigos.

Em novembro, ainda antes de entrar no governo, o ministro encomendou ao economista Carlos Langoni uma reconfiguração do setor de gás para que o preço do combustível caia à metade. Langoni é amigo de Guedes e Chicago Boy como ele. É diretor de um centro de estudos da FGV do Rio. Castello Branco também é diretor de um centro de estudos na FGV. A instituição de ensino foi acusada no início de abril por Sérgio Cabral, ex-governador do Rio, de dar cobertura ao pagamento de propina ao elaborar estudos que justificariam certas obras. Por esse motivo, sofre desde abril uma devassa financeira por parte do Ministério Público do estado do Rio.

Castello Branco: Como liberais, somos contrários a empresas estatais. Petrobras privatizada e BNDES extinto, este é meu sonho”

Langoni recrutou dois ajudantes para cumprir a tarefa dada por Guedes, ambos com interesse no resultado do próprio plano. João Carlos de Luca, dono de uma empresa do setor petroleiro, a Barra Energia, e ex-presidente do instituto das empresas do setor, o IBP. E Marco Tavares, fundador da consultoria Gas Energy, que tem entre seus clientes as gigantes multinacionais Shell, Repson e British Petroleum. Mais do que explicado por que a proposta do trio, fechada em fevereiro, arrase com os negócios da Petrobras no setor.

O general Bento de Albuquerque, ministro de Minas e Energia, opõe-se a certas radicalizações. Guedes o exclui de reuniões com Langoni, Castello Branco e Sallim Mattar

A estatal responde por 75% da produção de gás, 100% das importações, uma penca de gasodutos e é sócia de 20 das 27 distribuidoras estaduais. Pelo plano, teria de vender suas fatias nas distribuidoras estaduais e em qualquer empresa do setor e abrir mão de um monopólio de gasoduto a vencer no ano que vem. Comandado por um militar, o general Bento Albuquerque, o Ministério de Minas e Energia discorda de tal radicalidade. E ficou  fora de uma reunião feita por Guedes dia 3, no Rio, com Langoni, Castello Branco e o secretário de privatizações do governo, Sallim Mattar, em que alguns martelos foram batidos a portas fechadas. Na quarta-feira 8, Castello Branco anunciou que vai vender as participações da Petrobras em dois gasodutos, um no Norte-Nordeste (TAG), outro no Sudeste (NTS). “Um estudo apenas não basta. É preciso colocar no debate público mais amplo, inclusive com envolvimento da agência reguladora e o Cade, para evitar concentração de mercado”, diz o professor Sérgio Lazzarini, especialista em relações entre empresas e governo, autor do livro Capitalismo de Laços, de 2011.

O governo Bolsonaro quer uma reconfiguração total da economia para acabar com o que acha que foi favorecimento de empresários amigos, especialmente na era PT. Paulo Guedes e seu liberalismo ultrarradical têm produzido o efeito inverso. Estatais capturadas pelos interesses do mercado. Um capitalismo de laços.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo