Política

No Rio Grande do Sul, uma disputa entre dois entusiastas de Bolsonaro

Estado segue toada conservadora em segundo turno entre Sartori e o tucano Eduardo Leite. Próximo vice-presidente do País será gaúcho

A exemplo do "Bolsodoria", Sartori criou o "Sartonaro". Leite também apoia o ex-militar
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A quatro dias do segundo turno, os gaúchos já tem a certeza de ter pela frente mais quatro anos de neoliberalismo e de arrocho, modelo aplicado desde a vitória em 2014 do governador José Ivo Sartori (MDB), que tenta a reeleição inédita no estado contra o tucano Eduardo Leite, ex-prefeito de Pelotas.

Outra garantia, relativa ao cenário nacional, é de que o próximo vice-presidente do Brasil será do Rio Grande do Sul. O contraste não poderia ser maior do que o existente entre Hamilton Mourão (PRTB), integrante da chapa de Bolsonaro e Manuela D’Ávila (PCdoB), companheira de Fernando Haddad (PT).

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O primeiro turno demonstrou a hegemonia do campo conservador junto ao eleitorado registrado nas votações de Sartori e Leite, ambos com mais de 30% dos votos – na corrida presidencial, seguindo a lógica, o preferido foi Jair Bolsonaro (PSL), dono de 52% dos sufrágios.

Do outro lado, a incapacidade de reunião do polo progressista dividido entre as candidaturas de Miguel Rosseto (PT), Jairo Jorge (PDT) e Roberto Robaina (Psol) deixou o caminho aberto aos representantes da elite, repetindo o fenômeno de outros estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Amazonas, em mais um confronto da direita contra a direita.

A situação ainda revive o que já havia ocorrido na capital Porto Alegre em 2016 quando PMDB e PSDB enfrentaram-se na disputa pelo executivo municipal com vitória de Nelson Marchezan Junior (PSDB), atualmente um dos mais criticados prefeitos das grandes cidades brasileira – o alto custo do transporte público e a travada interação com o funcionalismo estão entre as reclamações prioritárias.

“Quando a esquerda perdeu as eleições de Porto Alegre em 2016 ficando de fora do segundo turno me senti na mesma situação que estou agora, com a diferença de que não estava disposta desta vez a votar nulo para ficar em dia com meus princípios republicanos. Qual não foi a minha surpresa quando o atual desgovernador foi a público anunciar apoio a Bolsonaro, aquele monstro covarde. Com essa declaração, Sartori perde pelo menos 20% dos votos dos gaúchos que não se sentem representados nem por um, nem por outro candidato, representantes da elite racista, preconceituosa e misógina daqui”, diz Lanna Campos, produtora cultural, ao sintetizar o sentimento de muitos outros eleitores. 

O apoio do emedebista a Bolsonaro rendeu uma das mais vexatórias composições desta eleição ao misturar o nome dos candidatos em uma única palavra: “Sartonaro”. Entre os que alinharam-se destaca-se ainda a figura do ex-governador e ex-senador Pedro Simon (PMDB), que pautou sua atuação, especialmente em seu fim de carreira, em um pretenso e verborrágico combate à corrupção sem revelar até então o viés autoritário de suas posições.

“Nessa hora de tanta dificuldade e dúvidas, Sartori é uma certeza. Já fez, vai continuar fazendo. Sartori é o homem”, defendeu Simon na propaganda de seu correligionário.

Receoso de ceder espaço a seu adversário, Leite não chegou a sugerir uma dobradinha com o presidenciável nos moldes de Sartori, mas ratificou seu apoio à extrema-direita, mesmo apresentando algumas ressalvas em tom constrangido durante sua propaganda eleitoral.

Mesmo colocando a rejeição ao PT na prioridade de suas agendas, nenhum dos concorrentes conquistou o apoio de Bolsonaro, que anunciou neutralidade em solo gaúcho, frustrando seus cabos eleitorais de plantão.

Além disso, a onda de notícias falsas que inundam os celulares e a internet respingou no tucano, que gravou vídeos desmentido boatos sobre a infundada ideologia de gênero, assunto recorrente de seus aliados no âmbito nacional. “Eu falei em igualdade de gênero. Homens e mulheres em condições iguais, sem distinção”, afirmou em vídeo rodeado por líderes evangélicos, todos homens.

Outro nome que atua pela eleição de Bolsonaro localmente é o já anunciado Ministro chefe da Casa Civil, em caso de vitória do PSL, Onyx Lorenzoni (DEM), reeleito deputado federal com expressiva votação, apesar da concordância com as propostas na área econômica de Michel Temer (PMDB) cujos resultados afetaram a produtividade industrial e a agricultura familiar gaúchas.

Com o lema que apregoa “endireitar o Brasil”, o deputado pouco acresce ao debate sobre o desemprego na metade sul a partir da paralisação das plataformas da Petrobras, a mendicância crescente nas ruas de Porto Alegre e omite-se acerca do corte de investimentos nas universidades públicas, como a de Santa Maria, Pelotas e da região do pampa.

Ao passo que desconsidera temas relevantes à vida dos cidadãos, o parlamentar aparece em vídeos convocando os apoiadores a realizarem marchas pelo Parcão, área dos moradores da classe rica da capital, muitas vezes de chimarrão em punho e com a bandeira do Brasil nas costas, apropriando-se dos símbolos da cultura local e nacional.

Sobre a realidade territorial, o apoiador de Sartori repete incansavelmente o discurso de mão pesada contra a criminalidade e elogia renegociação da dívida estatal, condicionada a uma agenda de privatizações de inúmeros ativos do estado.

“Faremos uma oposição consequente. O Estado não é para dar lucro, portanto sou contra a venda do bens público. Defendemos que empresas estratégicas, como as do setor de energia, são essenciais para o desenvolvimento e para o povo. Vamos trabalhar para que o patrimônio dos gaúchos continue sendo de toda a população”, garante o ex-presidente da Assembleia Legislativa deputado estadual mais votado da esquerda, Edegar Pretto (PT), de forte ligação com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

A primeira mulher na vice presidência ou a volta dos militares

Se a eleição estadual define-se entre nomes da farinha do mesmo saco, como são chamados pelo críticos nas ruas, a corrida nacional coloca um militar e uma política de esquerda no centro do cenário nacional por vias opostas.

Manuela D’ávila, atualmente deputada estadual, construiu sua trajetória sendo recorrentemente a mais votada nas eleições parlamentares que disputou, tendo relevante papel na articulação de projetos na Câmara dos Deputados ao longo dos governos Lula e Dilma. Como rememora a candidata a vice, as bandeiras levantadas à época do movimento estudantil exigindo a qualificação da educação e melhores oportunidades de acesso aos alunos, especialmente aos que necessitavam de assistência estudantil, foram em boa medida realizadas pelo então ministro da Educação Fernando Haddad.

“A democracia e a liberdade são o ponto de partida para as soluções dos problemas do Brasil. O segundo turno vai além de uma disputa entre dois projetos, são dois rumos diferentes para educação, saúde, economia, mundo do trabalho. A discussão é se seguiremos na toada democrática ou entraremos na barbárie, na perseguição aos que pensam diferente. Não temos o direto de desistir, de sair das ruas, de nos apequenarmos diante da ameaça.  Enfrentamos de frente a campanha da mentira e o melhor lugar para isso são os debates, mas Mourão não aceitou debater comigo porque cada vez que ele fala Bolsonaro desmente, ao contrário de mim e do Haddad que trabalhamos juntos desde que eu era da União Nacional dos Estudantes (UNE) e ele estava no ministério”, lembra Manuela, em ato na Esquina Democrática de Porto Alegre.

O entrosamento é de fato mais truncado entre os colegas de caserna que lideram a coligação na qual cabe ao Coronel Hamilton Mourão o dever de prestar contas ao capitão Jair Bolsonaro, o inverso da ordem militar.

As divergências explicitadas em momentos da campanha sugerem que exista uma disputa entre grupos da estrutura militar pelo poder que viria com a eleição de “um dos seus” ao posto máximo da república pela via do voto popular. O espaço destacado que possuem no governo de Temer deverá ser aumentado a partir de 2019 a depender do resultado das urnas.

“A atividade militar nada tem a ver com o exercício da democracia. Os princípios são a disciplina e a hierarquia, o superior manda e o subordinado obedece, é uma lógica de guerra. Na sociedade democrática todos são iguais e devem respeito à constituição. A chapa que se apresenta como militar para levar os princípios da caserna à esfera pública promove o retrocesso por representar princípios antidemocráticos”, define um ex-integrante do exército que pediu para não ser identificado.

Fora da ativa, Mourão chefiava o clube militar de Brasília antes de filiar-se ao PRTB, seguindo com esmero a linha política do presidente da sigla, Levy Fidelix, preterido em sua tentativa de tornar-se deputado federal por São Paulo. Candidato presidencial em 2014, Fidelyx ganhou fama pela proposta da construção de um trem bala entre Rio e São Paulo, contribuindo para jogar no ridículo e no descrédito a política nacional e o exercício democrático.

“O exército, onde vivi alguns anos, precisa de uma revisão do seu papel, em geral percebo que a instituição não assimilou a democracia e isso passa pela falta de uma ampla comissão da verdade que prendesse os torturadores e modificasse os conteúdos de formação, desde os oficiais e sargentos até os soldados, incluindo os direitos humanos na pauta. Nossas Forças Armadas ainda estão presas a uma lógica de inimigo interno” opina o mesmo militar da reserva.

Enquanto apenas um dos vices alcançará o posto, dois antagonistas terão convívio no senado pelos próximos oito anos. Reeleito pela terceira vez, o senador Paulo Paim (PT), um dos poucos negros do parlamente brasileiro, comprovou sua resiliência ao conquistar a cadeira, mesmo enfrentando a perda de capital político do partido no estado, cujo resultado mais evidente foi a não passagem da chapa majoritária ao segundo turno, algo que não acontecia desde 1998.

Também como contrapeso à derrota ao governo, as reeleições de bancadas numerosas para a Assembleia e Câmara, incluindo os mandatos de Paulo Pimenta e Maria do Rosário, asseguram a manutenção de lideranças progressistas para os próximos embates dentro e fora das casas legislativas.

Na trincheira à direita, contrariando as pesquisas que indicavam o triunfo do ex-senador José Fogaça (MDB), o eleitorado elegeu para Câmara Alta o deputado federal Luiz Carlos Heinze (PP), pertencente à bancada do agronegócio e um conservador nos costumes sempre lembrado pela frase em que classificou as minorias dos quilombolas, homossexuais e ativistas sociais como “tudo que não presta”.

O pepista, muito votado em localidades do interior, substituirá Ana Amélia Lemos (PP), uma das mais estridentes vozes a dar corpo ao antipetismo. A jornalista, que saiu derrotada da eleição depois do pífio resultado obtido por sua coligação cujo titular era o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), obviamente manifestou o desejo de que Bolsonaro chegue à presidência.

“Ana Amélia já foi tarde. Usava a tribuna para estigmatizar a Venezuela e espalhar o ódio sendo uma das responsáveis pelo clima de violência política que se vive desde a caravana de Lula pelo estado, marcada por agressões, e casos como a jovem que foi tatuada com uma suástica por estar com um adesivo Ele Não. Além disso, somos explorados diariamente pelo custo de vida, esse sim de padrões que podem lembrar a europa. Nesse ano a passagem do trem dobrou, passando de 1,80 para 3,60”, critica Estefânia Everalda, durante trajeto na região metropolitana entre Canoas e São Leopoldo, cidade de aproximadamente 230 mil habitantes, a mais populosa governada pelo PT no Brasil tendo à frente o prefeito Ary Vanazzy.

No panorama que mistura previsibilidade com polarização, a divisão entre a experiência e o tradicionalismo encarnado por Sartori e a juventude  do liberal Eduardo Leite tem data para acabar em 28 de outubro quando o campo conservador gaúcho deve convenientemente reunir-se no novo governo, da mesma forma que esteve ao longo dos últimos anos.

A emoção da reta final será em virtude da apuração presidencial, com a expectativa pelo lado vermelho de que a conhecida força da militância tenha efeito nas urnas para conforme sempre menciona o militante símbolo das lutas da esquerda no estado, o ex-governador Olívio Dutra (PT), “o povo ser sujeito e não objeto da política”.

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