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No banco dos réus

O Estado brasileiro terá de prestar contas à Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo assassinato do agricultor Antonio Tavares em 2000

No banco dos réus
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Impunidade. Passados 22 anos do crime, nenhum agente estatal foi responsabilizado pelo homicídio - Imagem: Márcio Machado/Folhapress
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Quem passa pelo quilômetro 108 da BR-227, que liga o município de Campo Largo à capital Curitiba, não imagina que aquele local foi palco de uma das mais sangrentas ações de repressão da Polícia Militar do Paraná. Na manhã de 2 de maio de 2000, a tropa atacou uma marcha do MST, causando a morte do camponês Antonio Tavares e deixando 185 feridos. O que restou para marcar a tragédia é o monumento idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Até hoje nenhum agente estatal foi responsabilizado pelo crime, o que levou o Estado brasileiro novamente para o banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à OEA.

“Foi um verdadeiro massacre, um horror”, recorda o agricultor Nei Orzekovski, à época com 26 anos. Ele era um dos 2 mil manifestantes, dentre homens, mulheres e crianças, que se dirigiam a Curitiba para participar de uma marcha pela reforma agrária. Eram 4 da madrugada quando os ônibus que seguiam em comboio vindos de Bituruna, no sudoeste do Paraná, foram parados em uma praça de pedágio, a apenas 40 quilômetros da capital paranaense. Os policiais, fortemente armados, entraram nos ônibus, verificaram os documentos pessoais e fizeram revistas. “Tivemos que descer. Obrigaram que ficássemos de costas, com as mãos na lataria para sermos revistados”, conta Orzekovski.

A operação durou duas horas. Já era dia quando eles se aproximaram de outro comboio, com cerca de 50 ônibus estacionados na entrada de Curitiba. Desta vez, os manifestantes foram impedidos de prosseguir. A tropa, composta por 1,5 mil homens fortemente armados, estava espalhada pelas pistas da rodovia. Atiradores de elite acomodaram-se em barrancos laterais e nos canteiros centrais, em posição de tiro. No ar, helicópteros davam voos rasantes. Os militares deram ordem para os ônibus retornarem para suas cidades. Os agricultores decidiram completar o trajeto a pé.

Não havia ordem judicial alguma que impedisse a entrada dos manifestantes na cidade. Tratava-se de determinação pessoal do então governador Jaime ­Lerner. Para obstruir a chegada dos agricultores, a PM usou indevidamente um interdito proibitório expedido pela Justiça, que proibia o acesso dos sem-terra apenas aos prédios públicos. Foi a partir desta discussão que o clima azedou. “De repente, os policiais começaram fazer ameaças. Tínhamos razão e só queríamos fazer valer nossos direitos”, relata Orzekovski. Foi quando um policial disparou o tiro que matou Antônio Tavares. Dali em diante, a tensa negociação se converteu em uma verdadeira batalha campal, que resultou em dezenas de prisões e 185 feridos. Tavares tinha 38 anos quando foi assassinado. Deixou a esposa e cinco filhos. Era assentado da reforma agrária no município de Candói, sul do Paraná, e fazia parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

O lavrador foi baleado na violenta repressão da PM do Paraná a uma marcha do MST

Dois dias após o massacre, iniciou-se a batalha judicial. Foram instaurados dois inquéritos para investigar o homicídio do lavrador. O primeiro conduzido pela Delegacia de Homicídios de Curitiba e o segundo, pela Polícia Militar do Paraná. No Brasil, ainda perdura a competência da Justiça Militar para processar e julgar os crimes cometidos por militares, no exercício de sua função, ainda que as vítimas sejam civis.

No âmbito castrense, apesar das provas inequívocas de autoria, o processo foi arquivado e o policial Joel de Lima Santa Ana, indiciado como o autor da morte de Tavares, acabou absolvido. No Auto de Exibição e de Apreensão de Armas de Fogo e no laudo de Exame de Arma de Fogo e Munição, elaborados pelo Instituto de Criminalística do Paraná, restou comprovado que “o fragmento do projétil que se alojou no corpo de Antonio Tavares e lhe causou a morte proveio da arma então utilizada pelo soldado do 12º Batalhão da Polícia Militar, Joel de Lima Santa Ana”.

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por meio de habeas corpus impetrado pelo réu, pôs fim ao processo criminal com base no argumento de que o caso havia sido arquivado pela Justiça Militar. A Procuradoria de Justiça não recorreu desta decisão. Em relação aos ferimentos causados nos demais trabalhadores, sequer houve qualquer investigação, muito menos a instauração de ação penal respectiva.

O Inquérito Policial Militar para apurar a morte de Tavares atribui especial importância aos danos sofridos pelas viaturas da PM, que foram objeto de perícia, com direito a minuciosos laudos e fotos, além de colher depoimentos dos próprios soldados que participaram da missão. Nenhum integrante da marcha foi ouvido. Todos os elementos que pudessem demonstrar a “inocência” dos policiais foram exaustivamente citados e mencionados pela PM, pela Promotoria da Justiça Militar e pelo juiz, que se limitou a ratificar o parecer emitido pelo Ministério Público.

Diante da omissão do Judiciário brasileiro, diversas organizações sociais, a exemplo da Terra de Direitos, da Comissão Pastoral da Terra, da Justiça Global e do próprio MST, apresentaram uma denúncia, em 2004, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Somente em outubro de 2009 a entidade recepcionou o caso e, em fevereiro de 2021, o remeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica.

Passados 22 anos do assassinato, o tribunal realizou as primeiras audiências em 27 e 28 de junho último, na sede do órgão, em São José. “Foi um fato importante para instrução do caso. Embora já existisse farta documentação comprobatória de provas, a audiência foi o momento que a Corte ouviu presencialmente algumas vítimas e peritos”, comenta a advogada Camila Gomes, assessora jurídica da Terra de Direitos.

“Durante a audiência o Estado Brasileiro, réu do caso Antonio Tavares, não contestou que houve grave violação aos direitos humanos na forte repressão da Polícia Militar na marcha pela reforma agrária de 2 de maio de 2000”, diz um trecho da nota conjunta divulgada pelas entidades que levaram o caso à Comissão Interamericana. “A não discordância reforça a denúncia das organizações representantes da família do camponês assassinado e dos 185 feridos no dia do massacre aos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”.

Agora, abre-se o prazo para que as partes apresentem suas alegações finais. “Esperamos que a Corte reconheça, de fato, que essas violações ocorreram, e que o Estado Brasileiro repare a viúva, Maria Sebastiana, e seus filhos, além de todas as outras vítimas que sofreram inúmeras violações dos seus direitos”, afirma Darci Frigo, coordenador da Terra de Direitos e presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos. A expectativa é que a decisão dos magistrados seja proferida em 2023. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “No banco dos réus “

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