Política

Nem uma a menos

Sub-representadas na política, as brasileiras prometem reagir nas urnas

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Preconceito. “As mulheres que entram na política sem tutor sofrem toda sorte de violência”, denuncia Cirne. “A política é um espelho da sociedade”, emenda Salabert - Imagem: Lucas Avila e Redes sociais
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Elas são maioria da população (51,1%) e do eleitorado (53%) e têm uma vida partidária atuante, representando 47% das pessoas filiadas às agremiações políticas. Os números, no entanto, estão longe de ser passaporte para as mulheres chegarem aos espaços de poder, seja nos próprios partidos, seja nos cargos eletivos. Dos 513 deputados federais, apenas 77 são mulheres (15%), porcentual um pouco maior que os 12% que elas representam no Senado, com apenas 14 dos 81 assentos. Os dados colocam o Brasil na 132ª colocação entre 193 países analisados pela Women in Parliament, plataforma que contabiliza a representação feminina nos Parlamentos em todo o mundo. O País fica atrás de quase todos os vizinhos da América Latina. Nem mesmo a Arábia Saudita, uma monarquia hereditária regida pela lei islâmica, possui uma disparidade tão grande. A sub-representação das brasileiras, associada ao avanço do conservadorismo com ataques sistemáticos às pautas das mulheres, tem provocado uma reação do movimento feminista, que promete, nas eleições de outubro, eleger suas representantes e aumentar a bancada do segmento no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas.

“No ano em que o voto feminino completa 90 anos de um percurso ainda incompleto de garantia de direitos políticos para as mulheres, convocamos todas as eleitoras e cidadãs a darem seus votos de confiança e apertar o verde para uma feminista, reordenando a fotografia do poder, com mais deputadas estaduais e federais, senadoras e governadoras.” A orientação consta no manifesto lançado pela campanha “Meu Voto Será Feminista”, com a adesão de mais de 120 candidaturas, cuja finalidade é contribuir para a formação de bancadas progressistas e feministas nos Legislativos. O projeto nasceu nas eleições de 2018 e tem como foco estimular mulheres a atuarem no campo político, dar visibilidade às candidaturas femininas e conscientizar eleitoras a votarem em mulheres que defendam uma pauta progressista.

Se, historicamente, a agenda feminista sempre encontrou dificuldades no Brasil, com o avanço do conservadorismo a situação piorou. O debate de temas como aborto e direitos reprodutivos está interditado e quem ousa pautar a discussão está sujeito ao linchamento público, motivo de alguns coletivos se organizarem para formar bancadas feministas Brasil afora. “Nossa estratégia é fomentar a participação das mulheres na política institucional e reduzir as desigualdades de condições de disputa entre homens e mulheres, buscando inserir no projeto negras, indígenas, quilombolas e formar um campo plural e progressista”, explica a jornalista Juliana Romão, uma das gestoras do Meu Voto Será Feminista. Na plataforma, é possível acessar um mosaico com o perfil e as propostas de todas as candidatas comprometidas com o projeto, que assinaram uma carta de compromisso na defesa da agenda feminista.

Fonte: Pnad/IBGE e TSE
* Os números podem sofrer alterações, caso a Justiça Eleitoral indefira alguma candidatura.

Para Marlise Matos, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG, o pluralismo na representação é um princípio democrático estruturante. “Se você tem um Parlamento com 85% de homens, quase todos brancos, eles estão lá a partir de um lugar e decidem orientados pela sua perspectiva de mundo. E quem vai defender mulheres negras, indígenas e trans? É urgente que no jogo democrático também tenha a perspectiva das mulheres na sua diversidade, para que outras visões de mundo compareçam nas tomadas de decisão.” Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foram registradas para a disputa eleitoral deste ano 9.604 candidaturas femininas, de um total de 28.697, ou seja 33,47%. Os números mostram um leve aumento em relação ao pleito de 2018, quando 32% dos registros foram de mulheres. “A gente tem uma história de domínio masculino na política que é um problema em si para a democracia”, diz Flávia Biroli, cientista política da UnB e membro do Observatório das Eleições.

Vereadora do Recife no primeiro mandato e candidata a deputada federal pelo PT, Liana Cirne afirma que os homens não estão dispostos a perder seus espaços de poder e que as “mulheres que ingressam na política sem um ‘tutor’ sofrem toda a sorte de violência política de gênero”. Ela mesma se diz vítima desse tipo de prática, quando policiais militares, que agiam de forma violenta contra um protesto que acontecia no centro da capital pernambucana, dispararam spray de pimenta diretamente nos olhos da parlamentar, a uma distância de um palmo do seu rosto. “Não há registro de uma violência física tão brutal contra um parlamentar eleito identificado como tal. Não é coincidência que essa violência tenha ocorrido contra uma mulher”, dispara. O caso se passou durante a dispersão de uma manifestação pacífica contra o governo Bolsonaro, em 2021, quando a PM pernambucana atirou com balas de borracha contra os manifestantes, atingindo o rosto de dois homens que terminaram perdendo a visão com tamanha brutalidade.

Nem mesmo a Arábia Saudita tem tão poucas mulheres no Parlamento

Violência de gênero é algo constante também na vida de Duda Salabert, mulher trans, candidata do PDT a uma vaga na Câmara Federal por Minas Gerais. Eleita com mais de 37 mil votos em 2018 para vereadora de Belo Horizonte, a parlamentar tem sido alvo frequente de grupos neonazistas que ameaçam ela e sua família com todos os tipos de violência. Para a parlamentar, os ataques partem de grupos que se sentem ameaçados com o aumento da participação de minorias sociais em todos os espaços. “Isso é parte e um espelho da sociedade, que é machista e preconceituosa. A legislação é importante para começarmos a garantir alguma paridade na disputa eleitoral, mas é preciso muito mais. A política deve ser um ambiente efetivamente democrático, em que haja representação de todos os setores da sociedade, com igualdade de condições para competir”, salienta a vereadora.

Flávia Biroli chama atenção para o cumprimento da legislação eleitoral, que determina às legendas e federações o mínimo de 30% de reserva de vagas a candidaturas de um dos sexos, o que, na prática, esse porcentual termina ficando para as mulheres. Também consta na lei a destinação de, no mínimo, 30% dos fundos eleitoral e partidário para aplicação em campanhas femininas, mesma proporção que as mulheres devem ocupar no programa eleitoral gratuito de rádio e televisão e nas inserções anuais a que as legendas têm direito. A lei não deixa claro, no entanto, se os índices contemplam todas a candidaturas, para o Legislativo e o Executivo, nem se é permitido utilizar a cota do fundo para financiar chapas majoritárias. Segundo a professora da UnB, os partidos passaram a registrar candidaturas femininas para o cargo de vice, como aconteceu em 2020 nos cargos de vice-prefeita. “A lei não é clara, não diz se esses recursos não podem ser aplicados nesses cargos. Diz só que precisam ser aplicados às mulheres.” Este ano, foram registradas 90 candidaturas para vice-governadora e cinco para vice-presidente. Ainda sobre as chapas majoritárias, há 38 candidatas a governadora, 54 a senadora e 4 mulheres disputando a Presidência da República.

Em toda a história do Brasil, apenas uma mulher sentou na cadeira de presidente, Dilma Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014. Mesmo assim, teve seu segundo mandato abreviado, cassado no golpe de 2016 por, em sua maioria, parlamentares homens. Este ano, Simone

Barreira. Tebet e Thronicke figuram entre as poucas mulheres que lideram chapas para o Executivo. Bezerra foi a única governadora eleita em 2018 – Imagem: Redes sociais e Geraldo Magela/Ag.Câmara

­Tebet, do MDB, Vera Lúcia, do PSTU, ­Soraya ­Thronicke, do União Brasil, e ­Sofia Manzano, do PCdoB, disputam a vaga com oito homens e praticamente sem chance de sucesso, segundo as pesquisas eleitorais. ­Tebet aparece estagnada com 2% das intenções de votos, Vela Lúcia com 1% e as outras duas ficam abaixo desse ­porcentual. “Minha candidatura não é importante apenas para nós, mulheres, mas para o Brasil. Sou uma alternativa à polarização, e isso independe se o candidato é homem ou mulher”, explica Thronicke, candidata pouco conhecida do eleitorado, que substituiu Luciano Bivar na disputa no fim de julho, na reta final para a realização das convenções partidárias.

A sub-representação nos estados também é grande. Dentre as 27 unidades da federação, as urnas de 2018 elegeram apenas uma governadora, a petista Fátima Bezerra, no Rio Grande do Norte, que disputa a reeleição. “As mulheres não ­veem incentivo na vida partidária, dada toda a dificuldade que encontram nesse meio ambiente. Os grandes partidos de esquerda não elegem muitas mulheres, assim como os de direita. A gente passa anos fazendo campanha e nessa hora vê que a maioria dos nomes da esquerda é masculina. Não vai mudar isso só fazendo militância, mas disputando votos. É uma vergonha que as mulheres estejam ainda votando em homens”, opina Débora Thomé, doutora em Ciência Política e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense.

Este ano, o maior número de candidatas é para cargos proporcionais: 3.611 tentam se eleger deputadas federais, 5.453 ­deputadas estaduais e 205 deputadas distritais. Há ainda 59 nomes postos para a vaga de primeira suplente de senadora e 85 para segunda suplente. “Os movimentos feministas têm um papel crucial na organização dessas mulheres, investindo na formação política para ajudá-las a pensar qual é o seu papel na representatividade e na sociedade, observando os contextos e as estruturas de uma forma mais ampla”, salienta Rosa Marques, da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e membro do coletivo “Eu Voto em Negra”. Ela defende que, nos Parlamentos, as mulheres atuem de forma coletiva, independentemente de partido, religião, classe social ou raça.

“O Legislativo precisa ser representativo. Se, antes, o entendimento era de que política se fazia por homens, sobretudo os brancos, hoje as pessoas têm buscado cada vez mais se identificar com os candidatos. E quem representa as mulheres são as mulheres. Se somos maioria na vida, precisamos ser maioria na política também”, destaca Divaneide Basílio, vereadora em Natal pelo PT e candidata a deputada federal.

Ainda que as mulheres sejam minoria na disputa de outubro, é possível um esforço por parte de alguns partidos em eleger uma bancada feminina representativa, até porque vão poder engordar os cofres das legendas. Isso porque a legislação diz que serão contabilizados em dobro os votos conquistados por mulheres e negros, para efeito de cálculo para repasse do fundo partidário nas eleições seguintes. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Nem uma a menos “

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