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Não somos iguais

Nas eleições, os evangélicos progressistas lutam para provar que nem todos os fiéis são reacionários

Engajados. Ailce Moreira, do PSOL de Pernambuco, e Wesley Teixeira, do PSB do Rio de Janeiro, disputam vagas nos legislativos estaduais - Imagem: Redes sociais e Fernando Frazão/ABR
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Eles são evangélicos, mas não defendem a posse de armas, tampouco impulsionam a intolerância religiosa e o preconceito contra outros grupos sociais. Os fiéis progressistas não integram a bancada da Bíblia, hoje com 181 deputados e oito senadores, integrada, sobretudo, por homens brancos, ricos e reacionários. Vindos, em sua maioria, das periferias e ligados a movimentos sociais de base, os candidatos cristãos filiados aos partidos de oposição, como PT, PSOL, PCdoB e PSB, têm nestas eleições o desafio de furar o bloqueio fundamentalista nos templos e disputar um eleitorado decisivo para a definir o pleito.

Os evangélicos representam cerca de 30% do eleitorado e Jair Bolsonaro conta com o respaldo de Silas Malafaia, Edir Macedo e outros pastores midiáticos na desonesta tática de demonizar os adversários políticos. Por isso, tem sido cada mais difícil afastar a preconceituosa visão de que os fiéis constituem um bloco monolítico, absolutamente coeso na ideo­logia e na visão de mundo. “Existe uma expressiva parcela evangélica que entende o contexto social, que luta por justiça social, contra a desigualdade e contra a fome”, observa Ailce Moreira, candidata a deputada estadual em Pernambuco pelo PSOL. “Jesus pregou o amor, a justiça, a dignidade humana. Quando vemos os vendilhões do templo falando tanto em dinheiro, em violência, em posse de armas, isso contradiz os ensinamentos bíblicos.”

A jornalista e fundadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Nilza Valéria Zacarias, ressalta que, se hoje Lula está em apuros para conquistar esse eleitorado, não foi por falta de aviso. “Os evangélicos estão no centro da disputa eleitoral ainda que a campanha petista não tenha considerado essa uma pauta importante, pois não incluiu esse segmento como estratégico desde o início”, critica. “Diversos coletivos evangélicos têm pressionado por uma mudança radical nessa postura.”

A dificuldade de diálogo é antiga. Por muito tempo, os partidos do campo progressista não se empenharam em conversar com os evangélicos, talvez por acreditar que o segmento é conservador por natureza e todos os fiéis pensam da mesma forma. Nada mais enganoso. “Foi na Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito que me encontrei como evangélica e militante de esquerda ao mesmo tempo”, conta Moreira. “Sempre brinco que cresci sendo evangélica demais para ser de esquerda, e de esquerda demais para ser evangélica. A gente se acostuma a levar lapada de todo lado, sabe? Agora, está um pouco diferente. A esquerda está começando a entender que é preciso dialogar com todos e expandir a nossa militância.”

“Somos os mais aptos para fazer o contraponto às bancadas da Bíblia”, diz Wesley Teixeira

A displicência da campanha petista não impediu, porém, que esses evangélicos se organizassem para virar o jogo e atuar na defesa da democracia. Em 18 de agosto, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito formalizou apoio à candidatura de Lula. O movimento, presente em 20 estados do Brasil, é apartidário, mas entende ser preciso assumir um lado nestas eleições, devido “às ameaças diuturnas das forças reacionárias sustentadas pelo governo federal e pelo próprio Bolsonaro”.

Além do apoio formal ao ex-presidente, centenas de evangélicos progressistas disputam vagas no Congresso Nacional e nos Legislativos estaduais para se contrapor às bancadas da Bíblia. De acordo com um levantamento do Instituto de Estudos da Religião, conhecido pela sigla Iser, foram registradas no Tribunal Superior Eleitoral 916 candidaturas com inscrição religiosa associada ao nome que aparecerá na urna eletrônica. Destas, 101 são ligadas aos partidos de “centro” e à “esquerda”. E a maioria dos candidatos é evangélica. O número real é, provavelmente, muito superior, pois nem todos usam termos como “pastor” ou “reverendo” nas urnas, explica a pesquisadora Christina Vital. “Dessas candidaturas progressistas, muitos estão ligados aos movimentos sociais, como a Bancada Evangélica Popular, ou os Cristãos Contra o Fascismo, e são, na maioria, pessoas mais jovens, de periferias, negras e negros.”

Na avaliação de Wesley Teixeira, candidato a deputado estadual no Rio de Janeiro pelo PSB, os evangélicos progressistas são os mais aptos a fazer um contraponto aos fundamentalistas, pois conhecem de perto as necessidades e a linguagem que precisa ser usada ao se dirigir ao público que frequenta as igrejas. “Se a gente parar para pensar, o Lula já teve muito apoio nesse segmento. Bolsonaro conquistou a maioria dos evangélicos recentemente”, observa. “Depois das eleições, ainda teremos um longo caminho de ­disputa. Por isso é tão importante eleger representantes que, além de progressistas, sejam evangélicos. Eles serão fundamentais para se contrapor ao discurso reacionário de algumas lideranças e mostrar à sociedade que não somos todos iguais.”

Autor do livro O Reino: a História de Edir Macedo e Uma Radiografia da Igreja Universal, o jornalista Gilberto Nascimento aponta a existência de três grupos bem definidos e muito distintos entre si no cenário evangélico brasileiro. São os protestantes, os pentecostais e os neopentecostais. Os megatemplos, a Teologia da Prosperidade e o discurso de intolerância está presente, de forma majoritária, entre as denominações neopentecostais. Já as outras duas, mais antigas no País, se caracterizam por serem mais moderadas e, em certa medida, menos conservadoras.

Fuja de rótulos. Dona Tereza e Alexya Salvador estão muito distantes do estereótipo atribuído às evangélicas – Imagem: Redes sociais

“Os evangélicos são pintados como tudo que há de mais conservador no Brasil, e isso não é verdade”, protesta Zacarias. “A questão do divórcio, por exemplo, já é uma pauta vencida entre nós. O aborto, as liberdades sexuais são temas em que estamos avançando. Mas gostam muito de acusar os evangélicos de serem conservadores, quando, na verdade, a sociedade brasileira que é assim, não é uma característica só dos cristãos.”

Quando a Teologia da Prosperidade começou a ganhar fôlego no Brasil, vinculando a bênção divina à generosidade nas ofertas às igrejas, imediatamente surgiram grupos evangélicos para se contrapor a esse discurso, acrescenta ­Moreira. “Entendemos que essa interpretação não vem para aprofundar o Evangelho. Ao contrário, ela está alicerçada no discurso neoliberal, com a manutenção de privilégios a quem pode pagar mais”, diz. “A gente sabe que existe uma narrativa em torno da palavra ‘prosperidade’ que faz com que o fiel associe aquilo que de mais sagrado ele tem, que é a crença num Deus abençoador, o que não está errado, a uma agenda econômica e social que no fim das contas mais oprime o fiel do que o liberta. Essa agenda econômica serve para a manutenção de uma estrutura hierárquica patriarcal e elitista, mais presente nas igrejas neopentecostais.”

Já Teixeira é incisivo ao criticar esse segmento religioso. “Na minha avaliação, a Teologia da Prosperidade é diabólica. Não tem outra palavra. Em nenhum momento, ela tem base nos fundamentos de Jesus”, dispara. “Deus não está nesse sistema capitalista que transforma tudo em dinheiro e mercadoria. Pelo contrário, Jesus ensinou a repartir, sempre fez um ataque frontal ao acúmulo de riquezas. E quando a gente vê esses coronéis da fé defendendo a Teologia da Prosperidade, isso é uma idolatria, uma adoração ao dinheiro. São aqueles que nos textos bíblicos aparecem como o Deus Mamon (do hebraico, a palavra ‘mamon’ significa literalmente ‘dinheiro’), os que se venderam ao dinheiro e são falsos profetas.”

Não é difícil desmontar o falacioso discurso de que os evangélicos são todos iguais. Dona Tereza, candidata a deputada estadual em Minas Gerais, pelo PT, é um exemplo do que há de mais avançado na sociedade brasileira. Mulher preta e periférica, ela se apoia na fé e no Evangelho para defender o fim do encarceramento em massa e o fim da guerra às drogas, o que, nas palavras dela, é “uma guerra aos pobres”.

“De um lado, tenho os fundamentalistas me atacando. De outro, a desconfiança dos LGBTs”, lamenta reverenda travesti

Oriunda de família cristã, Dona Tereza teve um filho preso e passou a se dedicar à luta contra o encarceramento em massa da juventude negra e periférica, além de assumir uma bandeira antiproibicionista em relação às drogas. “Estou organizada nessas frentes desde 2007 e minha maior dificuldade é fazer o povo cristão entender que esse encarceramento é uma política de Estado. E uma dificuldade maior ainda é fazer os evangélicos entenderem que não existe uma guerra às drogas, e sim uma guerra contra a periferia, contra o povo pobre”, afirma. “Hoje, temos robustas evidências de que a maconha é uma erva medicinal, que auxilia no tratamento de várias doenças. Se uma pessoa faz o uso abusivo dessa ou de outras substâncias, ela não precisa ser presa, deve ser encaminhada para o SUS e receber tratamento para a dependência. É por isso que precisa legalizar. Dessa forma, é possível até aumentar a arrecadação de impostos e usar esse dinheiro para investir na periferia, na educação, na saúde”, enumera.

Quem ouve o discurso da candidata imagina que ela tem dificuldade para dialogar com outras evangélicas. Ledo engano. Dona Tereza tem bom trânsito e costuma ser acolhida pelas mulheres religiosas, até porque várias delas têm filhos com problemas relacionados às drogas, seja pela dependência química, seja porque estão encarcerados. Essas mães não se sentem, porém, confortáveis em abordar o problema na igreja. “As famílias cristãs escutam o que eu falo porque grande parte da juventude que hoje está presa em algum momento da vida frequentou a igreja evangélica. E muitas mulheres sentem vergonha de falar que têm um filho preso porque as igrejas são punitivistas”, afirma. “Mas a mensagem de Cristo é o perdão. Esse tempo que estamos vivendo, de ascensão bolsonarista, deixa claro para mim que muitos pastores perderam o sentido da palavra de Deus. Se um pastor defende as barbaridades de Bolsonaro, ele fala de coração vazio, porque Jesus nunca foi a favor da tortura nem das armas.”

Amor e acolhimento, por sinal, são os princípios que movem a reverenda ­Alexya Salvador, candidata a deputada estadual em São Paulo pelo PT. Mulher negra e travesti, ela atua como líder religiosa há mais de dez anos em uma comunidade que atende essencialmente pessoas pobres e em situação de rua. Sua missão é levar a palavra do Evangelho aos grupos marginalizados, os quais nem sempre os evangélicos conseguem acessar.

Reação. Um coletivo de mulheres evangélicas processa Malafia por transfobia – Imagem: Isac Nóbrega/PR

A trajetória da reverenda é marcada pelo preconceito. “Se é difícil para uma pessoa hétero-cis-normativa romper o estereótipo de que nem todos os evangélicos defendem a mesma política, quando a minha candidatura chega nesse contexto de uma travesti reverenda, a coisa é muito pior”, conta. “De um lado, eu tenho os fundamentalistas me atacando, proferindo todo tipo de ofensa e discurso de ódio. No meio LGBTQIA+, também tem uma desconfiança porque eu sou evangélica.”

O maior desafio, acrescenta a reverenda, é desconstruir a ideia de que todo dirigente religioso, se eleito, vai legislar em favor de sua fé. “A minha proposta é justamente fazer oposição à bancada da Bíblia. Minha bandeira é antifundamentalista, eu trago como meta aquilo que vivencio e, por isso, minha luta é pelo Estado laico. Somente assim a liberdade religiosa vai ser, de fato, garantida. Além disso, minha atuação se desdobra em outras pautas, como a defesa da comunidade LGBTQIA+ e do Magistério Público, porque eu sou professora há 17 anos.”

Alexya integra o coletivo Mulheres Evangélicas pela Igualdade de Gênero, e uma das ações de impacto mais recentes do grupo foi processar o pastor Silas Malafaia por transfobia. O líder religioso é réu e tem uma audiência de instrução de julgamento agendada para 12 de setembro. Segundo a reverenda, não se pode usar a liberdade religiosa como justificativa para práticas criminosas. A ação busca denunciar a intolerância, uma vez que o pastor, ao atacar a comunidade LGBTQIA+, provoca um “óbice à convivência social da pessoa transexual e incita a discriminação contra essa comunidade”.

Para a fundadora da Frente dos Evangélicos pelo Estado de Direito, o tempo é o maior inimigo do campo progressista nestas eleições, pois restam menos de 30 dias para o primeiro turno e a esquerda demorou muito para despertar sobre a necessidade de falar com o público evangélico. “A campanha de Lula precisa fazer um trabalho intenso na tevê para chegar aos lares dos cristãos brasileiros”, alerta. “E nós, da Frente, estamos lançando a campanha ‘Não É Pecado Votar em Lula’, que vai ter material segmentado com uma linguagem direcionada ao público evangélico. Nesse tempo que falta, precisamos correr, porque do outro lado eles têm uma máquina que vai ser usada em toda a sua estrutura.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Não somos iguais”

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