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Não era só por 20 centavos?

Dez anos depois das jornadas de junho de 2013, os avanços e desafios da tarifa zero nos transportes

Não era só por 20 centavos?
Não era só por 20 centavos?
Um movimento controverso – Imagem: Romerito Pontes
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Passados dez anos, as jornadas de junho de 2013 seguem a ser um dos fenômenos mais marcantes – e ­disputados – da década. Nos termos de Rodrigo Nunes em Do Transe ao Caos, foi um trauma coletivo, série de nós a serem desatados. Muitos ainda veem naqueles dias convulsivos a abertura da Caixa de Pandora que levou à gestão Bolsonaro, o poço mais fundo do País desde o fim da ditadura. Há outros que veem ali a entrada em cena de uma nova geração de personagens do campo transformador, uma nova esquerda. Há também os pragmáticos, que simplesmente desistiram de dar conta da complexidade do evento, mas extraem dele seus potenciais.

Os últimos anos nos deixaram ver que junho não pode ter levado tout court ao bolsonarismo, porque este remonta às feridas mal curadas da ditadura. A sanha autoritária tem resquícios do escravismo de séculos. Como lembra Camila Rocha em Menos Marx, Mais Mises – O Liberalismo e a Nova Direita no Brasil, o bolsonarismo também é fruto de outro fenômeno, uma nova direita desavergonhada que se organizava em redes descentralizadas desde o início dos anos 2000. Sem nos alongar, o Brasil profundo esperava há muito dar feições aos anseios regressivos dos quais o capitão é síntese. Isso não significa negar que a indignação difusa, sobretudo no que ficou conhecida como a terceira fase dos protestos, foi condição fundamental para uma direita reativada e mais massiva, com novos pontos de apoio e novo repertório de ação.

Fonte: Dados públicos organizados por Paolo Colosso

Acerca da leitura segundo a qual em junho se formou uma nova esquerda, esta é acertada na medida em que insere o fenômeno na chave do que David ­Harvey denominou “cidades rebeldes”, o ciclo de lutas deflagrado em 2011 nas praças de todo o mundo, de onde saíram forças importantes como o Podemos espanhol, o Siryza grego e a França Insubmissa. Mas é fato também que as forças mais projetadas posteriormente, como o MTST, em 2013 detinham um cinturão de lutas consolidado em periferias de São Paulo e sua nacionalização ocorreria, de todo modo, por outros fatores. O próprio Movimento Passe Livre tivera vitórias importantes em Salvador e Florianópolis anos antes. Os movimentos de juventude vinham em crescente desde a mudança no perfil das universidades, em meados dos anos 2000.

Este texto é pragmático no sentido de não buscar resolver a complexidade do fenômeno, mas avaliar seus desdobramentos e potenciais, com atenção à pauta central da tarifa zero. Não sem antes defendermos que, desde a explosão de junho até a atualidade, há certo déficit explicativo das análises políticas: a persistente incompreensão das contradições específicas da produção do espaço, um significativo desinteresse pelas cidades e o poder local.

Acerca dos antecedentes de junho, dentre as poucas análises que conseguiam transitar em escalas – entre o fenômeno urbano e a conjuntura nacional –, foi o artigo “É a questão urbana, estúpido”, de Ermínia Maricato. Neste, a urbanista atentava para o fato de que o crescimento econômico distributivo não foi suficiente para mitigar a espoliação urbana e a periferização. Nas grandes cidades, os mercados aquecidos, alavancados pela liberação de grandes somas via política habitacional contracíclica, levaram a um boom imobiliário inédito e ao aumento significativo no custo de vida. A alta no aluguel se dava muito acima da valorização de salários. No caso do valor de compra, a alta era mais que o dobro da inflação em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte.

De utópica, a medida passou a ser adotada em várias cidades, por prefeitos de diferentes espectros

Em 2023, um ponto fundamental a ser incluído em qualquer balanço sobre junho é o seguinte: a tarifa zero deixou de ser o ponto utópico e irrealizável para figurar como um fator não só perfeitamente passível de ser implementado, mas estruturante e matricial ao avanço de outras pautas.

Um primeiro aspecto a ser destacado é o de que, nos últimos dez anos, houve um aumento expressivo do número de prefeituras, em todas as regiões do País, que implementaram a tarifa zero. Até junho de 2013, eram 15 cidades. Atualmente são 74 municípios, totalizando 3,8 milhões de habitantes beneficiados.

Nas grandes cidades os desafios são maiores. Em Volta Redonda (RJ), há um ônibus elétrico circulando com tarifa zero. A maranhense São Luís avançou por meio do projeto piloto “Expresso do Trabalhador”, para profissionais do comércio após as 9 da noite e áreas específicas da cidade.

Interessante perceber como a tarifa zero foi politicamente ressignificada. Se há dez anos ela representava o elemento mais utópico – e considerado irrealizável – de junho de 2013, os últimos anos têm mostrado não apenas que é viável, mas considerada capital político para governantes de todos os espectros. Na fluminense Maricá, a medida foi adotada em 2014 pelo PT. Na paulista Assis, onde houve tarifa zero apenas durante a pandemia, e na gaúcha Parobé, foram prefeitos do PDT. Em Ibaiti (PR) e em Silva Jardim (RJ) foi implementada por prefeitos do Republicanos. Pragmáticos das mais diversas posições têm se aproximado no seguinte: a mobilidade é uma política matricial, fator gerador de outras diversas garantias e oportunidades. Nos termos do especialista Daniel Santini, trata-se de uma “tecnologia social”.

Houve aumento expressivo da implementação da tarifa zero nos últimos anos, não somente porque se elevou a consciência pública sobre o direito à cidade. Outra mudança ainda mais substancial na curva da implementação deu-se ao longo da pandemia, pois no período de isolamento o uso do transporte diminuiu muito, o pagamento por passageiro, sistema tarifário mais usual, passou a ser deficitário e os empresários do setor buscaram sensibilizar prefeitos, que logo passaram a achar outras saídas.

Na fluminense Maricá, a tarifa zero é política consolidada. Em São Luís do Maranhão, a prefeitura testa o sistema – Imagem: SMTT/Prefeitura da São Luís/GOVMA e Prefeitura de Maricá/GOVRJ

Em Vargem Grande Paulista, as empresas locais isentam-se de pagar vale-transporte a seus funcionários e transferem tais recursos para um fundo de mobilidade da prefeitura. Em Maricá, que aplicou a medida no pós-junho, os recursos vêm de royalties do petróleo. Em Caucaia, segunda maior cidade do Ceará, o programa “Bora de Graça” utiliza 3% dos recursos do orçamento regular da prefeitura e há estudos para estender a medida para cidades da região metropolitana.

Seja por boa vontade política, oportunismo ou só arranjo com setores empresariais, o fato é que a tarifa zero saiu da zona das utopias e ganhou o território do pragmatismo justificado.

Alguns benefícios são bastante conhecidos e esperados. Garantir mobilidade aumenta o uso do transporte coletivo. Em Caucaia, a demanda passou de cerca de 500 mil passageiros para mais de 2 milhões mensais. Com isso, há melhora nas condições de tráfego, desafogando congestionamentos, redução considerável na emissão de poluentes e, ainda, em acidentes diários. Em suma, é um elemento estruturante para a superação do rodoviarismo e para a transição energética.

O mais interessante é perceber que, longe de ser uma medida custosa sem retorno (como costumam ser interpretadas as utopias), a tarifa zero tem efeitos multiplicadores diversos na economia local: primeiro, porque representa uma redução significativa no custo de ­vida das famílias. O Mapa da Desigualdade 2022, realizado pela Rede Nossa São Paulo, mostra que o transporte está entre os itens de maior impacto nos orçamentos familiares, atrás somente de habitação, na frente até da alimentação. Segundo, porque garantir o acesso livre à cidade tem efeitos positivos para o consumo no comércio e nos serviços locais. Esta pode ser uma saída promissora para a reabilitação de áreas centrais, talvez mais eficiente do que as conhecidas e discutíveis políticas de embelezamento e “revitalização”.

Outro impacto fundamental é na participação política e pode ser percebido nas eleições presidenciais de 2022. No primeiro turno, foram 136 municípios, um estado e cerca de 40 milhões de beneficiados. No segundo turno, ao menos 393 cidades e oito estados aboliram as cobranças no transporte municipal e intermunicipal, beneficiando mais de 100 milhões de usuários. Porto Alegre foi uma das cidades que aderiram ao passe livre apenas no domingo do segundo turno. No primeiro turno foram em torno de 5,6 mil viagens e 303 mil passageiros transportados. Para o segundo, foram, aproximadamente, 6 mil viagens, com estimativa de transportar 360 mil indivíduos, mas capacidade para 500 mil. Comparado a um domingo típico, o incremento representou cerca de 50%. Na Grande Recife, a demanda aumentou 115% em relação aos domingos comuns e 59% na comparação com o primeiro turno. Em Belo Horizonte, o aumento foi de 60% e 23% nas mesmas bases de comparação, conforme balanços divulgados à época.

É fato, trata-se de uma pauta que tem futuro, as construções ­continuam.  Nos debates da equipe de transição de Lula apareceu a ideia de um “SUS da mobilidade”. Luiza Erundina coleta assinaturas para apresentar a PEC da Tarifa Zero. Aparecem formulações cada vez mais transversais: coalizão triplo zero – zero tarifa, zero poluentes, zero mortes no trânsito.

A tarifa zero tem efeitos multiplicadores na economia dos municípios

O fenômeno junho, certamente, ainda renderá muitos debates, nosso papel aqui foi tão somente desfazer algumas leituras caricatas. A tarifa zero deixou de ser o ponto mais utópico de junho para se tornar uma política matricial e ­estruturante de outros direitos. Torna-se mais claro que a mobilidade urbana é condição necessária da mobilidade social, ou mais, da ampliação democrática. A mobilidade urbana garante melhorias diversas nas condições de vida cotidiana, pode diminuir os abismos entre o centro e a periferia.

Chega a ser óbvio: serviços públicos não ocorrem num etéreo de abstração, mas num espaço urbano em que suas sedes se inscrevem. O mesmo para a participação em processos decisórios ou ainda para o gozo do tempo livre. Todo bem-estar social está ancorado na ­capacidade de acessar os espaços e participar dos lugares onde tais atividades se desenvolvem. Se pensarmos nas populações cujas espoliações se sobrepõem – pensemos numa mulher negra periférica, subempregada e mãe –, a política de mobilidade universal chega a contribuir como reparação histórica. Na expressão de Lúcio Gregori, a tarifa zero está entre as pautas que baralham reforma e revolução. As análises políticas precisam chegar nessa escala do espaço urbano vivido. •


*Paolo Colosso é urbanista e filósofo, professor na Universidade Federal de Santa Catarina; Ísis Detomi é arquiteta e urbanista, tem especialização em Mobilidade e Cidade Contemporânea; Gabriela Mallmann é arquiteta e urbanista pela UFSC.

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não era só por 20 centavos?’

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