Política

Na volta do recesso parlamentar, o pensamento já está nas eleições de 2022

Na reabertura do Congresso, será tudo como dantes no quartel de Abrantes

Bolsonaro na Índia (Foto: Alan Santos/PR)
Apoie Siga-nos no

Ninguém se entende em Brasília na reabertura do Congresso, arena principal do jogo político. Quais as prioridades da turma no poder? O governo Jair Bolsonaro e seu “Posto Ipiranga”, Paulo Guedes, acham uma coisa. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, ambos do DEM, acham outra. No Supremo Tribunal Federal, igualmente de volta, o presidente, Dias Tofffoli, e o vice, Luiz Fux, brigaram silenciosamente no recesso de janeiro, graças a uma liminar da lavra de cada um. A oposição coleciona desavenças também. Lula e o PT atritam-se com o governador do Maranhão, Flávio Dino, e o partido dele, o PCdoB, por causa da distante eleição de 2022, em vez de buscarem conexão com as massas. E são essas, os trabalhadores brasileiros, que se veem ameaçados mais um ano, apesar das querelas no establishment.

Se depender de Maia e Alcolumbre, a reforma tributária será a estrela parlamentar de 2020. “É a mais importante para o crescimento econômico e para destravar a economia”, disse o primeiro, em janeiro. Em 2019, deputados e senadores debateram projetos separados, agora trabalharão juntos, com a instalação, em breve, de uma comissão especial conjunta. Esta terá à frente um senador, Roberto Rocha, do PSDB do Maranhão, e um deputado na relatoria, encarregado de dar feição final a um texto, Aguinaldo Ribeiro, do PP da Paraíba. Segundo Ribeiro, a ideia é votar até junho nas duas casas legislativas. Depois disso, Brasília ficará esvaziada pelas eleições municipais de outubro.

 

Há convergência nas propostas nascidas na Câmara e no Senado. As duas simplificam a legislação dos tributos cobrados em cima do consumo, ao unificar PIS, Cofins e IPI, federais, com o ISS, municipal, e o ICMS, estadual, em um Imposto sobre Valor Agregado (IVA). O projeto do Senado sugere ainda federalizar a taxação das heranças, hoje em mãos estaduais, para aumentar a arrecadação, e cobrar IPVA de jatinhos e iates.

Lula e Dino, relação incerta. Foto: Ricardo Stuckert

Com tais mudanças, o sistema tributário ficaria “levemente menos regressivo”, conforme os pesquisadores Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea. Os mais pobres pagariam um pouco menos, pois a alíquota do futuro IVA, estimada em 26,9%, seria menor do que a cobrada de ICMS na luz, no telefone e na gasolina em certos estados. Já os ricos pagariam um pouco mais, com alterações na tributação de heranças, jatinhos e iates. Melhor que nada. Mas cosmético. O País tem um dos sistemas mais injustos, por privilegiar a taxação do consumo, punitiva dos mais pobres, que gastam tudo para viver. Mundo afora, cobra-se mais da renda e do patrimônio: uns 40% da receita nasce daí, o dobro daqui. No Brasil, o consumo responde por cerca de metade da arrecadação. Nas ações mais desenvolvidas, por um terço. Seis partidos da oposição progressista (PCdoB, PDT, PSB, PSOL, PT e Rede) propuseram, em outubro, uma reforma tributária bem mais radical, destinada a mexer na injustiça do sistema. Criar um imposto sobre grandes fortunas (acima de 15 milhões de reais), eliminar a isenção de IR na distribuição de lucros e dividendos a acionistas de empresas, uma jabuticaba, e ampliar o “IPTU das fazendas”, o ITR, que em 2019 rendeu ridículo 1,7 bilhão de reais. A chance de a reforma oposicionista ir adiante é tão ridícula quanto, em um Congresso dominado por empresários (uns 40% do total, segundo o Diap) e fazendeiros (uns 20%).

O governo pretende propor alguma reforma também, agora no início do ano. Em Davos, o ministro Paulo Guedes comentou que estudava um “imposto do pecado” sobre doces, bebida e cigarro. Bolsonaro disse não. E desfez ilusões: em reforma tributária, todo mundo quer ganhar e ninguém quer perder, um tabu histórico. A prioridade de fato da equipe econômica neste ano é mudar a Constituição para tomar grana dos funcionários públicos e usá-la em investimentos, falta saber se os parlamentares vão concordar com isso em pleno ano eleitoral.

Alcolumbre e Maia, contra o Posto Ipiranga. Foto: Roque de Sá/Ag. Senado

A tunga foi proposta pelo Palácio do Planalto ao Congresso em novembro. Com a chamada “PEC da Emergência”, o governo poderia cortar até 25% do salário dos servidores (a jornada de trabalho cairia em igual proporção) e segurar promoções, caso se veja obrigado a violar a “regra de ouro” fiscal. Esta proíbe Brasília de pegar empréstimo no “mercado” para pagar despesas com pessoal, luz, água (só pode para quitar dívida ou investir). A violação é caso de impeachment, por crime de responsabilidade. Bolsonaro escapou do risco em 2019, graças a uma autorização especial pedida ao Parlamento para gastar 248 bilhões. O ritmo de tartaruga da economia impediu o governo de coletar mais impostos e bancar suas obrigações no ano passado. Houve um rombo fiscal de 95 bilhões, e outro buraco é esperado em 2020. Com a PEC da Emergência, Bolsonaro estaria a salvo de impeachment até 2022.

O time de Guedes calcula que, com a medida, arranjaria 12 bilhões de reais este ano e 26 bilhões até 2022. Um quarto iria para investimentos, o que incentivaria o PIB e a campanha reeleitoral de Bolsonaro. A proposta está no Senado, aos cuidados de Oriovisto Guimarães, do partido Podemos do Paraná. Como um milionário (239 milhões em bens na eleição de 2018) economista defensor do Estado mínimo, ele é a favor. Soltou em dezembro um relatório pela aprovação. Com um mimo aos servidores: se o governo tiver contas no azul, 5% do saldo seria rateado com eles. Donos de contracheques de marajás, certas categorias de servidores, como policiais federais, auditores da Receita, advogados da AGU, diplomatas, gestores, até que merecem o tranco sonhado por Guedes. Na eleição, Bolsonaro teve 70% dos votos em Brasília. O problema é que professores, médicos do SUS, atendentes do INSS etc. vão pagar o pato junto.

Guedes queria um “imposto do pecado”. Bolsonaro disse não. Foto: Isác Nobrega/PR

A equipe econômica tem no forno outro ataque ao funcionalismo, mas aí Bolsonaro tem dito que valerá apenas para quem entrar no serviço público futuramente. É a reforma administrativa.O governo deve propor o fim da estabilidade dos servidores, hoje protegidos de demissões; a criação de um período de avaliação de uma pessoa aprovada em concurso antes de ela ser contratada em definitivo, para testar sua aptidão; e a extinção da aposentadoria compulsória remunerada como punição a servidores. A reforma deve ir ao Legislativo em fevereiro. Era para ter sido enviada em novembro, mas na época o caos social no Chile ganhavas as manchetes, e o governo teve medo de algo parecido aqui.

O ânimo dos funcionários públicos está azedo. Para eles, corte de 25% do holerite, mesmo com jornada menor, fere o princípio constitucional da irredutibilidade salarial. Dia 12 eles farão uma manifestação no Congresso em defesa do serviço público, ato que dará início a uma campanha por reajuste. Mais: marcaram um protesto nacional em 18 de março, contra os planos de Guedes e Bolsonaro. Tentam arrastar as centrais sindicais para uma greve geral naquela data. O Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos, entidade à frente das articulações do funcionalismo, mandou, em 10 de janeiro, uma carta às centrais, com uma proposta de aliança. “Para impedir que o governo consiga levar esse pacote de maldades contra os serviços públicos e o conjunto dos trabalhadores, é preciso organizar um forte e unitário processo de mobilização, com um calendário de atividades e lutas que culmine na construção de uma nova greve geral”, diz o texto.

Moro e Fux estão afinados.

Na terça-feira 27, dirigentes das centrais discutiram em São Paulo a proposta de greve geral, entre outros assuntos, mas sem decisão a respeito. Por ora, o que toparam fazer foi um protesto na porta da Fiesp, a federação das indústrias paulistas, na segunda-feira 3, contra a política econômica e a “bolsonarização” do presidente da entidade, Paulo Skaf, namorador do partido linha-dura que o ex-capitão tenta criar. Bolsonaro será recebido pela Fiesp naquele dia, em um almoço. Os sindicalistas também resolveram aproveitar o caos no INSS, repleto de filas, para desgastar o governo. Promoverão no dia 14 atos em agências do órgão, a fim de chamar a atenção do povo para a crise. Se essas ações derem certo, diz um deputado petista, ficará menos complicado resistir à votação de medidas governistas no Congresso. Do contrário, a oposição seguirá na toada de “redução de danos” contra o rolo compressor neoliberal.

Na visão das centrais, o grande desafio no ano é a qualidade do emprego gerado na era Bolsonaro. Vagas precárias, “uberizadas”, com direitos e salários diminutos. A taxa de desemprego, que fechou na casa dos 11% em 2019, não pode mais ser a principal medida de análise do mercado laboral exatamente por causa do quesito “qualidade”, conforme recente relatório da Organização Internacional do Trabalho. No ano passado, o Brasil entrou pela primeira vez na lista do 10 piores países para a classe trabalhadora, conforme o Índice Global de Direitos, um indicador das Nações Unidas. Uma situação agravada por uma Medida Provisória baixada por Bolsonaro em novembro e que o Congresso tem de votar até abril.

Os funcionários públicos estão de mau humor com o corte do holerite. Preparam protestos, até uma greve geral

A MP 905 cria uma carteira de trabalho verde-amarela, a fim de incentivar a abertura de vagas para jovens, faixa etária em que o desemprego é de 25%. Desde janeiro, empresa que contrata, por até dois anos, trabalhador de 18 a 29 anos e remuneração máxima de um salário mínimo e meio, paga alíquota de Fundo de Garantia de 2% (não de 8%) e multa de 20%(não de 40%) de FGTS em caso de demissão e não precisa recolher contribuição previdenciária sobre a parte da remuneração que for “salário-educação”. A MP promove ainda um libera geral de trabalho aos domingos e cobra contribuição previdenciária de quem recebe seguro-desemprego. A medida está sob relatoria do deputado Christino Aureo, do PP do Rio, um veterinário milionário que torce o nariz para a ideia de taxar o seguro-desemprego. Diante de tantas investidas contra o trabalhador, Aureo examina um número recorde de propostas parlamentares de mudar a MP, 1,9 mil emendas.

O Supremo recebeu quatro ações anulatórias da MP 905, duas levadas por partidos (PDT e Solidariedade) e duas por confederações de trabalhadores (CNTI, da indústria, e CNTC, do comércio). Não há motivo para esperança dos trabalhadores. Três ações estão com Cármen Lúcia, que, quando comandou o tribunal, de 2016 a 2018, organizou reuniões com empresários para debater alterações nas leis trabalhistas. A outra está com Luís Roberto Barroso, um milionário neoliberal que defende em público mudanças na CLT, convicto de o Brasil possuir uma legislação laboral indesejada.

Corre alegre Luciano Huck, de mentor fiel, Fernando Henrique. Foto: Marcelo Justo/Globo

A corte volta à cena com bate-cabeça interno também. Nas férias, Dias Toffoli suspendeu a aplicação do “juiz de garantias” por 180 dias, mas, quando o plantão passou a Luiz Fux, este cassou a decisão e cancelou o dispositivo por tempo indeterminado. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, atritado com Bolsonaro devido à próxima eleição presidencial, exultou com Fux. Claro: o “juiz de garantias” foi concebido para evitar que um magistrado se porte como ele na Operação Lava Jato, acusador e julgador ao mesmo tempo. Moro, a propósito, tem suas próprias prioridades neste ano. Primeirona: forçar o Congresso a liberar a prisão de condenados em segunda instância, proibida pelo Supremo em novembro, um julgamento que libertou Lula.

O ex-presidente começou 2020 com exposição midiática e, numa dessas oportunidades, deu umas declarações que trouxeram à luz uma crise latente entre o PT, maior partido da oposição, e o governador Flávio Dino, do PCdoB. Em entrevista à TVT em 15 de janeiro, Lula disse que gosta de Dino, mas que “o PT é um partido muito grande comparado ao PCdoB”, que é difícil eleger um presidente progressista no Brasil que não seja do PT, e mais difícil ainda que seja por uma sigla comunista, e que “o Luciano (Huck) está sendo discutido pelo dono da Ambev, que é o novo formador de quadros políticos no País, possivelmente ele queria conquistar pobres e o Nordeste”.

Gleisi Hoffmann: Dino candidato? Quem sabe… Foto: Fabio Rodrigues-Pozzerbom/ABR

O petismo incomoda-se com os movimentos de Dino e gostaria de mantê-lo por perto, a fim de evitar surgir um novo Ciro Gomes (PDT), agora antipetista. Ao Valor, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse que o partido poderia até apoiar Dino em 2022. Em 2019, o governador colocou-se no xadrez eleitoral com gestos na direção de quem rejeita a polarização PT-Bolsonaro. Namorou o PSB, conversou com Huck, dono de ambições presidenciais estimuladas por Fernando Henrique Cardoso. Esteve com o global em dezembro, na Casa das Garças, um think tank econômico liberal no Rio, a convite do articulador político de Huck, Paulo Hartung, ex-governador capixaba. Foi a FHC em 20 de janeiro, dois dias após encontrar Lula. Tem dito que o Brasil está numa enrascada tal, que é preciso juntar todos os que se oponham ao autoritarismo de Bolsonaro. E que é melhor Huck conversar com ele do que com o ex-capitão.

A entrevista de Lula detonou contrariedades no PCdoB, vocalizadas pelo deputado Orlando Silva. Para ele, o ex-presidente deu “caneladas” nos comunistas, foi descortês com Dino. Silva mostrou que há risco, sim, de o PCdoB desgarrar-se dos petistas. “O PT é o maior (partido), mas é o mais rejeitado também, perdeu para um minúsculo do PSL”, disse. O petismo tem fé na própria força, porém, e não vê espaço para terceira via em 2022, como não houve desde 1989, primeira eleição pós-ditadura. “Vai ser outra campanha polarizada”, afirma Rui Falcão, antecessor de Gleisi. Um cenário traçado pela consultoria global Eurasia, em análise a clientes há alguns dias: “Olhando adiante, Bolsonaro está bem, é o centro que está encrencado, de novo espremido entre o bolsonarismo e o PT”, diz o texto.

Dauto da Silveira: as lideranças da “esquerda” encaram a situação como normal

As rusgas de Lula-PT com Dino-PCdoB mostram como a “esquerda” está “totalmente perdida”, sem “bússola”, “horizonte” e um “diagnóstico correto do Brasil”, na avaliação do sociólogo Dauto da Silveira, dedicado a estudar o campo progressista. Para ele, as lideranças da “esquerda” encaram o País como se houvesse “normalidade” e tentam retomar a democracia liberal desenhada na Constituição de 1988, promotora de direitos sociais. A retomada seria impossível, pois, desde a deposição de Dilma Rousseff, em 2016, houve uma reconfiguração do sistema político, coroada com a eleição de Bolsonaro. “Toda a burguesia está unida em torno de um projeto de uma república rentista”, afirma Silveira. “A classe dominante decretou uma guerra contra o povo, é o povo que paga a conta da saída da crise”, prossegue ele, vide o congelamento de gastos públicos por 20 anos, a reforma da Previdência, as mudanças nas leis trabalhistas.

Para o sociólogo, a “esquerda” deveria resgatar o figurino pré-golpe militar de 1964. Propor transformações profundas. Pregar sem rodeios a repartição de renda no país vice-campeão de concentração no 1% mais rico (28% do PIB), a distribuição de terras mantidas nas mãos de poucos fazendeiros, a nacionalização do petróleo, cada vez mais aberto a estrangeiros, a valorização do salário mínimo. “A radicalização, no sentido de ir à raiz dos problemas, é o caminho mais seguro para a esquerda. A esquerda era radical até 1964, agora é liberal, muito mansa. Não dá mais para apostar na luta parlamentar, é preciso ir às ruas, criar um movimento de massa”, diz Silveira. “O Bolsonaro radicalizou à direita, mas faz o governo que não tem conexão com as necessidades materiais do povo. Quem nasceu para ser antissistêmica é a esquerda.”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.