Diversidade

Mulheres em formação política contínua: uma proposta de ocupação do poder

Todas ensinam, todas aprendem, uma acolhe a outra. E todas crescem

No 'Julho das Pretas', organizações sociais prepararam mobilizações pelos direito das mulheres negras Foto: Agência Brasil
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A formação ampla e contínua de mulheres na política é a alavanca menos visível entre os mecanismos de enfrentamento à baixa ocupação feminina nos espaços de poder. É imperativo torná-la evidente. Em confluência com a pressão pelo aperfeiçoamento da legislação de cotas focada na redistribuição partidária das condições de disputa a partir do tripé presença, financiamento e visibilidade (mínimo 30% de candidaturas, de dinheiro para as campanhas e de tempo de rádio e TV) e com as demandas por modificações no sistema político brasileiro, perpetuador de desigualdades. 

O exercício sistematizado, coletivo e permanente da política desloca o eixo da força introduzindo estímulos alternativos à desobstrução do acesso de mulheres negras, indígenas, brancas, LBTs, com deficiência e periféricas ao lugar onde as decisões são tomadas. A ambiência aprendiz (todas ensinam, todas aprendem) enfraquece a lógica individualista ao multiplicar os holofotes e promover um revestimento protetivo às violências incessantes e ao consequente adoecimento mental. 

No pós-eleições o suporte se esvazia: as poucas eleitas vivem a pressão e o desafio de (re)montar mandatos

Essa pedagogia política multiplicadora tem dupla face, a do acúmulo teórico que politiza a compreensão histórica, e a do aprender fazendo. Necessariamente feminista, atenta às desigualdades e visualiza as mulheres como força política. É Paulo Freire e o princípio do saber sustentado na vivência prática, ação e reflexão para autonomia. É o convite de Audre Lorde ao mergulho no caos que precede o entendimento, gerador da transformação. 

Por ausência histórica nos parlamentos (15%) e nos executivos estaduais (4%) e municipais (12%), há um déficit gigantesco de experimentação feminina na atuação institucional. As mulheres plurais estão distantes da cultura mais formal do topo da pirâmide, ainda que há muito façam a política diária das ruas e sustentem o país real.

Não se trata de habilidade ou de interesse, mas de (bem) menos oportunidades de observar e trocar, de vivenciar as entrelinhas dos regimentos das Casas Legislativas ou da mesa principal nas estruturas partidárias. De aprender a antecipar movimentos muito previsíveis para quem opera a máquina diariamente. De agir mais do que reagir nas arenas institucionais trituradoras do feminino, do negro e do diverso, atravessados por estereótipos depreciativos de suas ações. 

Nos últimos anos eleitorais cursos organizados por instituições privadas, movimentos sociais e partidos vêm sendo ofertados a candidatas, especialmente as negras, indígenas e estreantes. Em geral, abordam temáticas orientadoras do metier básico de campanha: coordenação, comunicação, mobilização, etc. São tentativas de reduzir o imenso o desnível entre as estruturas de campanhas masculinas e femininas, especialmente do ponto de vista econômico – já está provada a influência do recurso financeiro no sucesso eleitoral. 

Essas intervenções, no entanto, devem ser compreendidas como emergenciais, um salvamento de naufrágio. No pós-eleições o suporte se esvazia: as poucas eleitas vivem a pressão e o desafio de (re)montar mandatos e as não eleitas se veem atropeladas pela exaustão, dívidas, e a assimilação solitária do traumático processo eleitoral. A violência política de gênero e raça atinge a ambas, em todas essas fases. 

O circuito daquele aprendizado inicial se desfaz, em franco desperdício de investimento financeiro e emocional. É preciso manter o fio na tomada, a política que desejamos se faz na permanência e amadurece no longo prazo. São as entressafras eleitorais que reiniciam ciclos e alinhavam a experiência de campanha a posteriores ações, cultivando uma destreza política específica que só será assimilada no campo de disputas. 

É um letramento que se aperfeiçoa entre as eleitas, acolhe com incentivo as não eleitas e inspira as que virão, num projeto pulsante e permanente de vivência política. É nesta rotação, sem abandono ou interrupção, que candidaturas femininas chegarão mais fortalecidas (seguras, capacitadas) aos ciclos subsequentes, em maior número e com mais condições de acessar o poder.

Há movimentos em curso, mas descontínuos, pouco estruturados e desconectados do fazer político cotidiano. E do orçamento. Há que ter método e convergência com a agenda política, como parte constitutiva de qualquer projeto que verdadeiramente busque equidade e tenha a base da pirâmide social como prioridade. 

Sem romantismos, a jornada é dura e formação alguma substitui a importância máxima dos recursos financeiros e do apoio partidário na reversão da sub-representação. A proposta aprendiz aqui pincelada é de incremento estratégico, uma ação coordenada, qualificadora da ação política plural. Vamos a ela.

O mergulho formativo começa na campanha que busca um mandato e é parte do plano de gestão: projeto político, equipe, orçamento e aprendizado formativo contínuo. Por sua estrutura e manutenção independente, os mandatos constituirão o centro pedagógico. Os partidos também serão convocados e já sabemos que adiarão o engajamento até que a pressão aumente. 

Ressignifiquemos a estrutura da gestão

A composição de “gabinete” será diversa e equilibrada em gênero e raça como ponto de partida. Entre 10 a 15% das mulheres plurais da equipe vivenciarão e multiplicarão os aprendizados ao lado da eleita.

Quem serão elas? Lideranças das campanhas, mulheres dos partidos, de territórios parceiros, do entorno. A um só tempo, atuarão para o mandato e ampliarão sua projeção política. Um Núcleo Interno de Formação deve ser estruturado para estudar estratégias que considerem 8 pontos fundantes: 

  1. A formação é um compromisso político dos mandatos de mulheres eleitas e de mandatos aliados: está entre as cinco prioridades da gestão;
  2. As mulheres plurais aprendizes terão posições de visibilidade, farão articulação política e representarão o mandato com frequência;
  3. A ação deve ser integrada ao jogo partidário, para que elas conquistem autoridade, condições de incidência programática e de pressão por bom uso dos recursos;
  4. É imprescindível fomentar a fala pública das mulheres plurais, em situações distintas, ladeando a eleita, com espaço para planejar e avaliar a performance;
  5. A estrutura do mandato deve estimular a especialização e a formação externa delas e de toda a equipe;
  6. É indispensável promover o intercâmbio do Núcleo de Formação com mandatos aliados, estrutura partidária, movimentos sociais e academia para ampliação e legitimidade das ações; 
  7. É parte constitutiva do processo a sistematização, o planejamento e avaliação dos percursos; 
  8. Cuidar do princípio: todas ensinam, todas aprendem, uma acolhe a outra na diferença e no comum, todas crescem.

Estas breves propostas não foram testadas, são pensamento em voz alta, fruto de muita reflexão e vivência próxima a mandatos feministas, campanhas eleitorais, formações de candidaturas. É uma contribuição para este debate que considero inadiável.  

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