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Morde e assopra

A ambiguidade na manifestação na Avenida Paulista soou como uma estratégia premeditada dos bolsonaristas

Morde e assopra
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Canarinhos. Enquanto Bolsonaro implorava por uma anistia ampla, geral e irrestrita, o pastor Malafaia praguejava contra os “infiéis” – Imagem: Nelson Almeida/AFP
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A manifestação bolsonarista na Avenida Paulista, no domingo 25, revelou também sua estratégia. Tanto o resultado do ato quanto o que ele revelou mostraram um jogo de ambiguidades. Por um lado, o evento foi defensivo, veio imantado pelo medo das investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre a tentativa de golpe de Estado. Medo também dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal acerca dos atos e iniciativas ligados a essa tentativa. O risco de prisão da cúpula cívico-militar dessa conspirata e do próprio Jair Bolsonaro é real. Por outro lado, a magnitude da manifestação, independentemente das controvérsias sobre o número de participantes, indica a força política e mobilizadora mantida pelo bolsonarismo. Trata-se de um ato que quer manter a iniciativa da disputa política nas mãos da extrema-direita. Nisso, foi exitoso.

A estratégia da ambiguidade parece ter sido uma escolha deliberada dos promotores do evento. Essa estratégia defensiva/ofensiva revelou-se também nos discursos. Bolsonaro encarnou a defensiva: pouco atacou, assumiu o figurino do “pacificador” e propôs a anistia aos participantes dos atos golpistas. Coube ao pastor Silas Malafaia partir para o ataque. O ministro Alexandre de Moraes e o STF foram os alvos preferidos. Sobrou também para o governo Lula.

Tanto a parte defensiva quanto a ofensiva viveram recheadas pelo conteúdo moral conservador, obscurantista e antidireitos. Trata-se da disputa de hegemonia no campo dos valores que, hoje, a direita sabe fazer melhor do que a esquerda. Nesse ponto, a extrema-direita mantém sua força mobilizadora e de convocação para as ruas.

A estratégia da ambiguidade lança alguns desafios para o governo e o campo democrático e progressista e para o Supremo. O principal elemento da estratégia da ambiguidade é o mote da anistia. No fim da ditadura, foi feito um pacto de anistia que tinha um lado legal e explícito e um lado tácito. O primeiro lado consistiu em não punir os responsáveis pelos atos de arbítrio, de violência e de tortura. O lado tácito pressupunha que a disputa de poder daí por diante ocorreria pela via democrática, sem o concurso das armas.

Bolsonaro posou de “pacificador”. Os ataques ficaram a cargo do pastor Silas Malafaia

O bolsonarismo, com a tentativa do golpe, rompeu a dimensão tácita do pacto de anistia realizado no fim da ditadura. Agora, com dezenas de condenados pela violência destrutiva do 8 de Janeiro, os bolsonaristas se antecipam à condenação das lideranças golpistas e quer um novo pacto legal e explícito de anistia. Esse pacto não pode ser aceito e precisa ser combatido por duas grandes razões: 1. O golpismo, principalmente de setores militares, precisa ser exemplarmente punido, para que se desencoraje de forma dura novas tentativas desse gênero. 2. Na estratégia da ambiguidade, o bolsonarismo quer a paz legal/jurídica, enquanto promove a guerra e o ódio políticos. Este é o conhecido jogo da extrema-direita, que se vale das instituições democráticas para destruir a democracia.

Há, no entanto, um problema de ordem política para o campo democrático e progressista e para o governo Lula em tudo isso: e se a campanha pela anistia ganhar força de mobilização de rua? É uma questão preocupante, pois as esquerdas têm se mostrado refratárias à capacidade de mobilização popular. E, ainda, continuam a patinar na tecnopolítica, nas redes sociais. Há também um problema de ordem jurídica, um desafio para o STF. Mesmo durante o governo Bolsonaro, a Corte, em parceria com o Tribunal Superior Eleitoral, colocou-se como o baluarte da defesa da democracia, do Estado de Direito e contra o golpismo. Nos julgamentos dos invasores e depredadores das sedes dos Três Poderes, o STF tem aplicado penas que chegam a 17 anos de prisão, dosimetria considerada alta por alguns juristas defensores da punição dos envolvidos.

Para ser coerente com esse trabalho exemplar, o Supremo, em tese, deve aplicar aos líderes e financiadores das tentativas e atos golpistas, penas superiores, no mínimo iguais, àquelas aplicadas até agora. Em face de pressões por anistia e por “pacificação”, o tribunal manterá a coerência e irá até o fim nesse propósito de fazer valer a Constituição e as leis e de dar um basta histórico à impunidade de golpistas? Embora se trate de uma questão jurídica, essa decisão do STF terá efeito político e histórico enorme sobre o futuro do País. Os democratas, os progressistas, as esquerdas e os movimentos sociais não podem ficar passivos perante os desafios dessa conjuntura. Até este momento, esses setores políticos e sociais pouco fizeram e pouco se mobilizaram. É como se tivessem terceirizado para os tribunais superiores a tarefa de defender a democracia e o Estado de Direito.

Esse tipo de conduta não pode ­continuar, com omissões, evasivas, justificativas do injustificável e fugas pela tangente. Vivemos num momento em que o jogo político e o jogo jurídico estão entrelaçados. Aqueles que não entenderem e não souberem fazer esse jogo poderão pagar um alto preço. Como esse jogo se enredará com as eleições municipais é algo a ser visto. •


*Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.

Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Morde e assopra’

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