Política
Morde e assopra
O governo busca distensionar a relação com as Forças Armadas com robustos investimentos na indústria da Defesa


As evidências de corrupção e espionagem que envolvem militares próximos a Jair Bolsonaro no episódio da nebulosa compra e posterior utilização ilegal do software First Mile voltaram a agitar a lama que insiste em grudar nos coturnos de parte do alto escalão das Forças Armadas. Comprado sem licitação em 2018, ainda no governo de Michel Temer, pelo Gabinete de Segurança Institucional, o programa espião, segundo as investigações da Polícia Federal, foi utilizado durante três anos pelos arapongas da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, para vigiar os passos de pelo menos 33 mil cidadãos. A quase totalidade dos registros foi apagada antes da batida policial, mas, nos 1,8 mil arquivos obtidos pela PF foi constatada a espionagem exercida sobre políticos, juízes, advogados, jornalistas, ativistas de direitos humanos e outros desafetos do governo.
Desenvolvido em Israel, o software foi comprado também pelo Exército, em um “pacote de segurança” que drenou cerca de 40 milhões de reais em recursos do Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro, então comandado pelo ex-ministro e vice na chapa de Bolsonaro em 2022, o general da reserva Walter Braga Netto. Entre os alvos das ações de busca e apreensão autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal figurava o representante da empresa que vendeu o programa ao governo, Caio Cesar dos Santos Cruz, filho do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, outro ex-ministro de Bolsonaro. Na casa de outro investigado, o servidor Paulo Maurício Fortunato, que foi diretor de Operações da Abin no governo passado, foram apreendidos 171,8 mil dólares em espécie, montante não justificado que, segundo a PF, pode estar relacionado ao negócio fechado durante a intervenção.
Abin. A operação contra a espionagem ilegal da agência incomoda setores do Exército – Imagem: Antônio Cruz/ABR
O envolvimento de Braga Netto e Santos Cruz nas investigações de uma PF comandada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, desafeto dos militares, tem potencial explosivo para azedar ainda mais a relação entre o governo Lula e a caserna. O clima em parte dos oficiais de alta patente, que já era de desconforto desde o anúncio da delação do tenente-coronel Mauro Cid, principal ajudante de ordens de Bolsonaro, vem se deteriorando com notícias recentes como a intenção do governo de recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos durante a ditadura ou a divulgação do relatório final na CPI mista sobre o movimento golpista que culminou nas invasões às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro deste ano. Elaborado pela senadora Eliziane Gama, do PSD, o relatório pediu o indiciamento de ex-comandantes da Marinha e do Exército e de outros sete generais.
Para conter essa insatisfação, o governo aposta nos generosos investimentos nas Forças Armadas com recursos do novo Programa de Aceleração do Crescimento e projetos de produção ou inovação tecnológica impulsionados por órgãos como o BNDES e a Finep. Ao adotar a tática do “morde e assopra”, Lula, sempre com o auxílio do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, busca deixar claro ao comando militar que os movimentos para neutralizar a velha guarda golpista e para fortalecer os setores profissionais e democráticos das três forças são cursos que correm em paralelo e não devem se misturar.
A ideia do governo é separar o joio do trigo ao mesmo tempo que reconstrói as pontes com almirantes, brigadeiros e generais. Especialista em questões de Defesa, Francisco Carlos Teixeira, professor titular de História Contemporânea da UFRJ, refuta o termo “banda podre”, mas concorda que há hoje um grupo de oficiais, da ativa e da reserva, que impede a modernização das Forças Armadas e de sua relação com o Estado de Direito: “Há um grupo organizado que chegou ao poder com o impeachment de Dilma Rousseff e passou a controlar as instituições superiores das Forças Armadas. Esse grupo conspirador e antidemocrático cria obstáculos à Nova República desde que, em 1977, Ernesto Geisel anunciou o projeto de abertura política e essa turma, orbitando em torno do então ministro do Exército, Sylvio Frota, tentou aplicar um golpe contra o próprio Geisel. Entre eles, estava o então capitão Augusto Heleno”.
Aeronáutica. Em parceria com a sueca Saab, a brasileira Embraer começou a fabricar caças Gripen no interior paulista – Imagem: Embraer/SAAB
A militares como Heleno causa especial irritação a movimentação do governo para recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos, dissolvida ao apagar das luzes do governo Bolsonaro. Elaborada pelo Ministério dos Direitos Humanos, a minuta com a proposta de recriação do comitê recebeu parecer favorável do Ministério da Justiça e agora aguarda a análise final da Casa Civil antes de ser encaminhada para a assinatura do decreto presidencial por Lula. “Entendemos que os motivos que levaram à extinção da Comissão não correspondem à realidade dos fatos. Ainda não foi cumprida sua missão legal”, diz o parecer elaborado pela Secretaria de Acesso à Justiça do MJ. O documento, assinado pelo ministro Dino, acrescenta que o fim dos trabalhos “não considerou a existência de outras atividades ainda em curso e de ações judiciais em andamento”. No trecho que mais teria trazido incômodo à velha guarda militar, o ministério fala sobre a “necessidade de atender plenamente às recomendações do relatório publicado em 2014 pela Comissão Nacional da Verdade”.
O relatório final da CNV, que pede “a intensificação das atividades voltadas à localização e identificação dos restos mortais dos desaparecidos políticos”, responsabilizou 377 pessoas pelos crimes cometidos durante a ditadura, entre eles todos os presidentes militares do regime, de Castello Branco a João Figueiredo. “Esperamos que tanto a retomada da Comissão de Mortos e Desaparecidos quanto o cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade rompam, de fato, com os limites que as duas comissões viveram”, diz o professor Rafael Maul, integrante do Grupo Tortura Nunca Mais no Rio de Janeiro. O ativista de direitos humanos identifica a necessidade de avanço nas políticas de resgate da memória: “Talvez sejamos o país que menos se lembra das violações do Estado ao conjunto da sociedade. Pensar que elas atingiram apenas um determinado período e alguns setores ajuda na sua perpetuação”. Para Maul, as recomendações da CNV, por sua vez, apontam para “a fundamental articulação da política de memória em relação à ditadura com a continuação das violências de Estado praticadas até os dias de hoje”.
A insatisfação nos setores bolsonaristas das Forças Armadas aumentou com a divulgação do relatório final da CPMI do 8 de Janeiro. Além do próprio Bolsonaro, identificado, com certa licença poética, como o “mentor intelectual” da trama golpista, foram solicitados os indiciamentos dos ex-comandantes da Marinha, almirante Almir Garnier, e do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, e também os ex-ministros Braga Netto, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Paulo Sérgio Nogueira, todos eles generais. Para o deputado federal Rogério Correia, do PT, integrante da Comissão, as investigações deixaram claro que existiu uma organização para a tentativa de um golpe: “Essa disposição autoritária vinha na raiz do próprio governo e se radicalizou na medida em que avançava a conjuntura. Bolsonaro colocou no seu entorno pessoas de confiança para atentar contra a democracia diante da iminente derrota eleitoral”. Com o avanço da linha golpista durante o governo, diz o parlamentar, o ex-presidente fez substituições no comando das forças: “Seja com militares, seja com civis, Bolsonaro se cercou de pessoas que concordavam com a tese do golpe e com uma operação de Garantia da Lei e da Ordem como consequência do 8 de Janeiro”.
O novo PAC prevê quase 28 bilhões de reais para a indústria da Defesa até 2026
No outro lado da pista, o governo Lula corre com um pacote de investimentos que pretende trazer de vez as Forças Armadas para o seu lado. Somente no PAC estão previstos investimentos para expandir a base produtiva e a infraestrutura de Defesa que se aproximam dos 28 bilhões de reais até o fim do mandato. Já o orçamento total previsto para o setor este ano é de 8,4 bilhões de reais e abarca projetos como a construção de um submarino de propulsão nuclear e de um míssil nacional antinavio, ambos pela Marinha, e a expansão da produção do avião cargueiro militar KC-390 pela Aeronáutica. Outra aposta é a retomada, pela Embraer, da produção dos caças Gripen em parceria com a empresa sueca Saab para a Força Aérea Brasileira. A linha de montagem foi inaugurada em maio com as presenças de Lula, Múcio e do comandante da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro do ar Marcelo Damasceno.
Entre os projetos militares contemplados estão a compra de blindados e helicópteros para o Exército, a construção de submarinos convencionais para a Marinha e a implantação de um Sistema de Defesa Cibernética para as três forças. Em setembro, o ministro Múcio e o comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, reuniram-se com o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, que afirmou “a importância do setor de Defesa no processo de neoindustrialização do País”. Após a visita, Múcio e Olsen falaram sobre a proposta de elevar o orçamento militar a 2% do PIB, patamar recomendado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan): “O presidente Lula, desde o primeiro momento, mostrou-se preocupado em dotar as Forças Armadas de meios que correspondam à estatura política e estratégica do Brasil”, disse o militar.
Durante um seminário na sede do banco, Mercadante anunciou a aprovação de dois créditos no valor total de 2,4 bilhões de reais para a exportação de aeronaves da Embraer: “A nossa política externa precisa ser universalista, multilateral, fomentando a paz e a diplomacia. Temos liderança no Sul Global e acreditamos que uma indústria de Defesa forte, capacitada e inovadora é um alicerce para a nossa política externa”.
Marinha. Além dos submersíveis, há recursos para o desenvolvimento de um míssil nacional antinavio – Imagem: Marinha do Brasil
Em setembro, a Finep, órgão subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, também anunciou seu Edital de Inovação para a Base Industrial de Defesa, que dará apoio a 25 empresas em 22 projetos. O investimento previsto é de 238 milhões de reais. “Estamos pegando um sistema de Base Industrial de Defesa maduro, com Institutos de Ciência e Tecnologia com projetos maduros em um momento que temos recursos para investir. Isso trará ao Brasil enorme capacidade para produzir e exportar produtos de Defesa”, diz Celso Pansera, presidente da Finep.
A financiadora apoia o desenvolvimento de drones em parceria com a Suécia, de mísseis ar-ar do tipo A-Darter com a África do Sul e do sistema de foguetes de artilharia terra-terra Astros. “O fomento à indústria de Defesa permite ao Estado dispor de inovações imprescindíveis para o monitoramento do meio ambiente e das fronteiras, garantindo a segurança das terras indígenas, da população e do território nacional”, diz a ministra Luciana Santos.
Dando sequência à estratégia de aproximação com o comando militar traçada por Múcio, Lula deve participar nas próximas semanas do lançamento das pedras fundamentais de uma nova unidade do Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA) em Fortaleza e de uma nova Escola de Sargentos do Exército no Recife. É possível que o presidente aproveite uma das duas ocasiões para anunciar a criação da Agência Nacional de Segurança Cibernética. Paralelamente, o ministro da Defesa tenta aparar outras arestas e, segundo interlocutores, teria pedido ao ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, para “aguardar um momento menos turbulento” para recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Indagada por CartaCapital, a pasta não confirmou, mas também não negou o pedido de Múcio. Entre tapas e beijos, a relação entre o governo e as Forças Armadas ainda é um trabalho em construção. •
Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Morde e assopra’
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