Política

assine e leia

Mordaça puída

Entidades saem em defesa do historiador Francisco Teixeira, alvo de ofensiva judicial de general da reserva

Mordaça puída
Mordaça puída
Kid preto. Ex-integrante das Forças Especiais do Exército, Álvaro de Souza Pinheiro se vangloriou da violenta repressão à Guerrilha do Araguaia em depoimento à Comissão Nacional da Verdade – Imagem: Redes Sociais
Apoie Siga-nos no

A prisão de um ex-presidente, três generais e um almirante, integrantes do núcleo central da trama golpista que culminou na invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, já entrou para a História como um dos raros acertos de contas do Brasil com agentes militares que atentaram contra a democracia e o Estado de Direito. Mas as tentativas de amordaçar aqueles que buscam lançar luz sobre o período sombrio da ditadura civil-militar, que subjugou o País por 21 anos a partir de 1964, continuam a acontecer.

O alvo da vez é Francisco Carlos Teixeira, professor emérito da UFRJ e uma das maiores referências acadêmicas na análise e compreensão da participação das Forças Armadas na política brasileira. Teixeira é réu em um processo por calúnia, difamação e “falsificação da História”, além de enfrentar um pedido de proibição do exercício da docência e uma cobrança de indenização de 30 mil reais, movido por um general que já se declarou um dos idealizadores da brutal repressão à Guerrilha do Araguaia.

Assinada pelo escritório Migueis Advogados, a ação por reparação e danos morais é movida pelo filho do general reformado Álvaro de Souza Pinheiro, hoje incapacitado pelo Mal de Alzheimer. O militar da reserva tornou-se uma celebridade instantânea em 2020, após viralizar nas redes sociais um vídeo em que aparece brandindo uma arma e ameaçando policiais militares, depois de ter sido repreendido por caminhar sem máscara na pista da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, no auge da pandemia. O episódio terminou com a alegação de um “surto psicótico” e com Pinheiro sendo conduzido ao hospital por familiares.

O militar acusa o professor da UFRJ de “falsificação da História” e pede a cassação de seus títulos acadêmicos

O general, que fez carreira como um “kid preto” nas Forças Especiais do Exército, já havia ganhado notoriedade sete anos antes, quando, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, confirmou ter sido um dos mentores do cerco à Guerrilha do Araguaia, operação que resultou em 60 guerrilheiros mortos ou desaparecidos. “Eu fui condecorado, inclusive. Sou absolutamente orgulhoso dessa participação. Como tenente operador, participei do processo decisório do mais alto escalão”, disse. Em outro trecho marcante, Pinheiro é questionado sobre se conheceu Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um dos combatentes assassinados: “É evidente que conheço nosso amigo Osvaldão, quem não o conhece? Vocês devem conhecer o Osvaldão melhor do que eu hoje em dia; devem saber exatamente o dia em que ele foi para o inferno, lugar de onde nunca deveria ter saído”.

Apesar das palavras públicas do próprio general, Teixeira está sendo processado por “falsificação da História” por ter declarado no ano passado, durante uma live na internet, que os “kids pretos” têm no general Pinheiro seu “grande instrutor e herói”, e que este é “um torturador notório e inimigo da democracia”. O professor também afirmou que as Forças Especiais constituem “um ninho de conspiradores anticonstitucionais”. Na ação, os advogados de Pinheiro sustentam que ele “é um conceituado e respeitado militar do Exército Brasileiro, que comandou e instruiu milhares de militares em todo o território nacional”, além de possuir “história e carreira ilibadas” e “diversos elogios e condecorações em seu extenso currículo”.

Em quase cinco décadas de carreira, Teixeira é autor ou organizador de mais de uma dezena de livros, muitos dos quais abordam temas como o fascismo e o intervencionismo político das Forças Armadas. A CartaCapital, ele disse acreditar que a ação penal movida em nome do general não é pessoal, mas faz parte de uma ampla operação de silenciamento. “Querem calar intelectuais, pesquisadores e professores que não permitem que o apagamento se abata sobre a história do tempo presente no Brasil. Minha convicção se baseia nos diversos processos movidos contra vários intelectuais, inclusive ex-integrantes das Forças Armadas, que tentam, por meio de exigências financeiras e da obrigação de retratação, silenciá-los.”

Prêmio. O general da reserva disse ter recebido uma condecoração pela operação que deixou 60 guerrilheiros mortos ou desaparecidos no Araguaia – Imagem: Acervo Arquivo Nacional

O professor foi um dos criadores, em 1994, do Laboratório de Estudos do Tempo Presente da UFRJ, que pesquisa a transição política e o processo de redemocratização no Brasil. “Entre nossas linhas de investigação, evidentemente, estão a repressão política, a presença da tortura, os sequestros e o desaparecimento de militantes e de pessoas que resistiam à ditadura”, afirma. A dedicação ao tema vem desde os tempos de estudante na própria UFRJ e já lhe rendeu outras perseguições. “No meu quinto semestre, em 1975, fui acusado de ser agitador comunista e elemento perigoso para a ordem. Foi aí que conheci a repressão pela primeira vez”, lembra. Curiosamente, a denúncia contra o então estudante foi feita por um professor de História Moderna e Contemporânea, cadeira hoje ocupada por Chico, como é chamado pelos colegas e alunos. Em 1978, ele chegou a ser preso. “Agora é a terceira vez. Aos 71 anos, estou retornando aos 19, quando enfrentava a ditadura com outros milhares de brasileiros.”

Com a tentativa de golpe bolsonarista, Teixeira passou a ser procurado por diversos veículos de comunicação para comentar o tema. Desde então, vieram as ameaças. “Tenho recebido mensagens anônimas por WhatsApp e e-mail. Uma delas dizia que eu iria levar um tiro de fuzil na testa por defender veados e comunistas. No momento em que você se torna um pesquisador conhecido, que publica livros e aparece em programas de televisão ou rádio, isso mobiliza todos os malucos possíveis contra você”, lamenta.

As ameaças e tentativas de silenciamento vêm de um setor específico, não das Forças Armadas como um todo, ressalta o professor. Ele lembra que, em 1994, foi convidado por Fernando Henrique Cardoso a participar do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, onde continuou atuando, sempre de forma não remunerada, nos governos Lula e Dilma. Teixeira também lecionou na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e na Escola Superior de Guerra, onde foi um dos fundadores do programa de pós-graduação em Segurança Internacional. “Fiz bons amigos, inclusive entre generais de quatro estrelas.” Alguns deles confirmaram a ele que está em curso uma tática militar conhecida como Operação Psicológica Adversa, direcionada contra aqueles que trabalham com a memória recente do Brasil. “Se eu for condenado, nenhum historiador, cientista político, sociólogo, pesquisador do direito ou jornalista terá mais liberdade”, alerta.

“Se eu for condenado, nenhum pesquisador ou jornalista terá mais liberdade”, alerta Teixeira

Essa percepção gerou uma onda de solidariedade a Teixeira, que se espalhou por universidades e organizações da sociedade civil. “Qualquer investida que procure restringir o pensamento, reescrever fatos históricos por vias coercitivas ou constranger pesquisadores deve ser firmemente repudiada”, afirma nota divulgada pela Associação Nacional de História, que ressalta ainda que a Justiça não é “o fórum adequado para debater análises, teorias e pesquisas históricas”. Já o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos manifesta “veemente repúdio à tentativa de calar uma voz competente por parte de um oficial que serviu nos tempos da ditadura”. O Ibep classifica a ação movida por Pinheiro como “risível”. “Trata-se de uma reação dos que estiveram no porão da ditadura aos avanços, ainda que tardios, das condenações dos que praticaram e praticam crimes de lesa-humanidade.”

Para Luiz Eduardo Motta, também professor da UFRJ, os militares brasileiros, se comparados aos vizinhos sul-americanos, foram os que menos mudaram seu comportamento desde o fim da ditadura. “A Comissão da Verdade provocou uma reação acintosa de parte dos militares ao revirar questões dos porões da ditadura que até então permaneciam ocultas”, afirma. Motta avalia que “esse general de pijamas não vai conseguir seu intento” de restaurar a censura característica do regime militar. “Esse sujeito quer simplesmente tolher a produção de conhecimento. Mas, por mais que isso agrade ou não a determinados setores, nós, pesquisadores que analisamos o período da ditadura, a ascensão da extrema-direita, o fascismo ou as práticas ainda permanentes de caráter autoritário nas corporações militares, incluindo a Polícia Militar, continuaremos rea­lizando as nossas pesquisas”, conclui. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mordaça puída’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo