Política

Ministério Público, candidaturas avulsas e investigação criminal

A Constituição diz que “são condições de elegibilidade a filiação partidária”. Simples e cristalino

Está nas mãos do STF a decisão sobre candidaturas sem partido
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Está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), a possibilidade de candidaturas avulsas em eleições. Caso os ministros decidam no sentido de que partidos são dispensáveis, não haveria mais necessidade de uma legenda para que um candidato pudesse disputar um cargo eletivo. O debate deste assunto é motivado por uma questão de ordem do ministro Luís Roberto Barroso em ação movida por um carioca que tentou disputar a eleição de 2016 de forma independente. 

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A Constituição de 1988 é bastante clara a esse respeito. No Capítulo IV, art. 14, § 3º, o documento diz que “São condições de elegibilidade a filiação partidária”. Simples e cristalino, mesmo para alguém que não tenha frequentado os cursos de direito no país e no exterior.

Além disso, em uma rápida visita aos debates da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88, é possível observar que essa matéria não foi polêmica, sendo decidida ainda no primeiro turno da Comissão de Redação.

Salvo algum debate ainda na fase inicial das subcomissões, o que se discutiu foi a necessidade de primárias para que os partidos pudessem escolher seus candidatos, mas não sobre a possibilidade de candidaturas avulsas. Nelson Jobim, deputado constituinte e relator adjunto, disse a esse respeito que o “fundamental não são as eleições primárias, mas a eleição, quando o povo escolherá, no rol de candidatos oferecidos pelos diversos partidos, os melhores” (grifo meu).

É curioso, portanto, que, segundo a imprensa, parecer da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, seja favorável a candidaturas não-partidárias, flagrantemente contrário ao desejo do constituinte e inoportuna para o que resta de nossa governabilidade. Ainda segundo os sites de notícia, esse parecer se baseia em dois argumentos controversos.

O primeiro é que como o Brasil assinou o Pacto de São José da Costa Rica em 1992, que previa que todo cidadão poderia participar de assuntos públicos “diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos”, isso embasaria uma nova interpretação da Constituição. Ora, este trecho assinado pelo governo brasileiro somente significa uma defesa de candidaturas avulsas numa leitura preconceituosa contra partidos políticos, em que associa a falta de liberdade à filiação partidária.

O segundo argumento, segundo matéria do portal UOL relata, é que o parecer da procuradora-geral defenderia que a legalidade das candidaturas não partidárias também estaria baseada na ideia de “ausência de proibição constitucional”. Em outras palavras, como não está escrito de forma expressa na Constituição que candidaturas avulsas não são permitidas, logo haveria uma brecha para candidaturas independentes de partidos políticos.

Não bastaria, portanto, apenas exigir a filiação partidária, como consta no texto constitucional. O parlamentar constituinte deveria ter criado mais um dispositivo afirmando que candidaturas avulsas não são autorizadas. Nossa Constituição, acusada constantemente de ser muito detalhista, deveria, por essa lógica, conter muitos outros artigos explicitando o que é inequívoco para não gerar qualquer oportunidade de leituras excessivamente elásticas.

Essa não é a primeira vez que o Ministério Público brasileiro busca legislar (essa é a palavra) baseado em suposta ausência de vedação constitucional, indo contra a interpretação de texto mais básica e desrespeitando os desejos da Assembleia Constituinte.

A possibilidade de integrantes do Ministério Público conduzirem investigações de assuntos criminais é um outro bom exemplo desse papel legislador da instituição. Assim como a recusa por candidaturas avulsas, é cristalina a opção dos nossos “pais fundadores” em relação à condução do inquérito penal: o que foi decidido após uma série de debates sobre os diversos modelos de Polícia e Ministério Público é que a primeira investigaria e os promotores e procuradores, baseados no inquérito policial, dariam o encaminhamento junto ao Poder Judiciário.

Estranhamente, contudo, em 2015, o STF decide legalizar, extrapolando as fronteiras da interpretação constitucional, a prática já largamente utilizada de promotores e procuradores agindo como policiais. No lugar de uma divisão de tarefas entre a Polícia e o Ministério Público, inequivocamente percebida na leitura da Constituição e nos debates da constituinte, os ministros do STF permitiram que os já excessivamente independentes promotores exerçam um papel para o qual eles não têm treinamento, equipamento e expertise.

O papel de debater assuntos que envolvem a Constituição permite que o STF, auxiliado pelo Ministério Público, legisle.  Não é apenas interpretar, é criar e modificar entendimento em matérias que parecem não ter espaço para dúvidas, ainda mais se recorrermos a história e aos debates constituintes.

Se a sociedade deseja que promotores virem policiais e que possamos pulverizar nosso já confuso sistema político com parlamentares e administradores sem vínculos partidários, esse debate caberia ao Congresso Nacional e não aos juízes e membros do Ministério Público que não prestam contas de suas decisões para os cidadãos.

O desequilíbrio entre os Poderes não se dá somente quando o Senado não aceita uma decisão do STF como argumentam os defensores da tese que os ministros têm a palavra final sobre qualquer assunto, mas também quando o Sistema de Justiça como um todo resolve legislar.

*Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ)

 

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