Política
Mercado fechado
Regulação do cultivo de cannabis medicinal pode inviabilizar entidades que oferecem tratamento acessível no Brasil


A cabeleireira Lucilena de Jesus Vicente passa o dia em pé, lidando com escovas, secadores e tesouras, uma exaustiva rotina de movimentos repetitivos nos braços e punhos. Com o tempo, a intensidade da atividade passou a causar dores crônicas, a ponto de ela só conseguir iniciar uma nova jornada após ingerir vários analgésicos na noite anterior. Nem doses elevadas de relaxantes musculares nem sessões regulares de fisioterapia foram suficientes para aliviar o sofrimento. Foi então que o filho sugeriu um tratamento alternativo e apresentou-lhe a cannabis medicinal. “Sou de uma geração que, se ouve falar qualquer coisa de maconha, já pensa que é droga, que faz mal à saúde. Tive muito receio no começo”, diz a profissional, hoje com 60 anos. Após assistir a palestras e vídeos com especialistas, Lucilena decidiu tentar e, há dois anos, vive uma nova realidade. “Não vou dizer que a dor sumiu, mas reduziu muito. Agora consigo trabalhar muito melhor.”
O tratamento de Lucilena é assegurado por uma associação canábica, a Abrapango, com sede em Brasília. Primeiro, ela passou por avaliação médica e, em seguida, foi atendida por uma assistente social. Só então recebeu a prescrição para tomar algumas gotas de óleo essencial de cannabis, três vezes ao dia. “É tudo muito criterioso, precisa de receita, e eu sempre retorno ao médico para ajustar a dosagem conforme os sintomas”, explica. “Já faz dois anos, e não troco esse tratamento por nada. Hoje indico para várias amigas, porque mudou minha vida.” A principal diferença entre adquirir o produto na entidade ou em drogarias está no custo. Com a dosagem atual, o gasto mensal é de 180 reais. Já a versão industrializada não sai por menos de 400 reais. “Pela associação, consigo manter o tratamento. Se precisasse importar ou comprar em farmácia, não teria condições”, lamenta.
Lucilena é uma entre os mais de 672 mil pacientes que utilizam cannabis medicinal no Brasil. Segundo levantamento da organização Kaya Mind, esse número cresceu 56% em 2024, na comparação com o ano anterior. As associações canábicas atendem cerca de 22% desse público. A cabeleireira teme, porém, o fim precoce do tratamento. Em 30 de setembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apresentará uma nova regulamentação para o cultivo de cannabis medicinal no País, em cumprimento a uma determinação do Supremo Tribunal Federal. Os associados receiam que as novas regras dificultem a extração artesanal do óleo por essas entidades, tornando o custo proibitivo para quem tem menor renda.
Na última reunião da Anvisa sobre o tema, em 13 de agosto, os diretores discutiram a proposta de incluir a cannabis no Anexo 1 da Portaria 344/1998, o que permitiria o cultivo da planta para fins medicinais no Brasil, desde que o teor de tetrahidrocanabinol (THC) – o componente psicoativo – seja igual ou inferior a 0,3%. Atualmente, para manter o cultivo, cada associação precisa recorrer à Justiça e obter liminar que autorize a produção de óleos com finalidade terapêutica. As entidades alertam, no entanto, que não têm condições técnicas ou financeiras para trabalhar apenas com sementes de baixo teor de THC. Além disso, ressaltam que alguns tratamentos exigem concentrações mais elevadas da substância.
As associações canábicas vendem produtos até três vezes mais baratos que as farmácias
O fundador da Abrapango, Ítalo Henrique Nascimento, explica que as associações conseguem oferecer tratamento a baixo custo porque a produção dos medicamentos é feita a partir de plantações próprias, em território nacional. Caso precisem adequar-se aos padrões industriais, isso deixará de ser viável e poderá comprometer até a continuidade dessas entidades. O mercado de produtos canábicos já movimenta cifras expressivas no Brasil. Segundo a Kaya Mind, o faturamento do setor alcançou 853 milhões de reais em 2024, com expectativa de chegar a 1 bilhão neste ano. Embora as associações atendam pouco mais de 20% dos pacientes, Nascimento vê interesses econômicos por trás da nova regulamentação. “No Brasil, para ter inflorescência nos padrões da Anvisa, só será possível com sementes transgênicas. Então o negócio vai ficar concentrado nas mãos de pouquíssimas empresas, como Monsanto e Bayer, que têm capacidade de desenvolver essas sementes e cobrar royalties”, afirma.
Para produzir óleos essenciais, pomadas e outros derivados de cannabis, as associações mantêm parcerias com universidades. A padronização obrigatória das inflorescências, como propõe a regulamentação, também traria impacto negativo para pesquisas. “Todos os nossos produtos são desenvolvidos no Instituto de Química da Universidade de Brasília e passam por análises certificadas em todas as etapas pela Universidade Federal de Santa Catarina”, afirma Nascimento.
O THC, frequentemente tratado como vilão pelo Conselho Federal de Medicina e, ao que parece, também pela Anvisa, é essencial para diversos tratamentos, afirma o médico Paulo Vinícius Carmo. “Algumas patologias exigem concentrações de THC acima de 0,3%. Especialmente doenças neurodegenerativas, como esclerose múltipla, Alzheimer e Parkinson, mas também alguns casos de dor crônica, fibromialgia e insônia severa”, explica o diretor técnico do Instituto Manga Rosa de Medicina Integrativa. Nesses casos, os pacientes seriam forçados a recorrer a medicamentos importados, cujos custos podem ser até três vezes maiores.
Atualmente, os produtos à base de cannabis vendidos em farmácias seguem o mesmo controle aplicado a medicamentos de “tarja preta”. As associações defendem que esses tratamentos sejam classificados como fitoterápicos, por se tratar de substâncias naturais. Com esse enquadramento, seria possível estabelecer parcerias com o SUS para a distribuição gratuita dos remédios por meio da Farmácia Viva, iniciativa semelhante à Farmácia Popular, voltada a terapias complementares. Para Thabata Neder, fundadora da ONG Clube Brasileiro de Fitoterapia Canábica e empresária do setor, reconhecer oficialmente a cannabis como fitoterapia é “a única forma de incluir cultivo e acolhimento sob o mesmo CNPJ”.
Segundo o advogado Felipe Nechar, consultor jurídico da Associação Divina Flor, de Campo Grande, as entidades estão em diálogo com o governo federal por meio de canais oficiais para defender “o reconhecimento do uso tradicional e de modelos de agricultura familiar” no processo regulatório. “Nós idealizamos um modelo de resgate em que universidades e a sociedade civil possam, juntas, transformar ciência em ação, fortalecer a saúde integrativa e fomentar iniciativas como a Farmácia Viva.” •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mercado fechado’
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