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Memória insultada

Privatizado, o Cemitério do Araçá, um dos mais tradicionais da cidade, é o retrato do abandono e do desleixo

Memória insultada
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Sem paz. Jazigos profanados, roubados e abandonados compõem um cenário desolador em um dos cemitérios mais tradicionais da capital – Imagem: Marcelo Mazetis/Serviço Funerário da Prefeitura de São Paulo e Mariana Serafini
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Localizado entre os bairros do Pacaembu, Perdizes e Pinheiros, o Cemitério do Araçá é um dos mais antigos da capital paulista. Inaugurado em junho de 1887, foi construído para atender às necessidades da nova elite italiana, uma vez que o Cemitério da Consolação abrigava principalmente as famílias tradicionais paulistanas ligadas à indústria cafeeira e atravessava um período de superlotação. Lá estão enterradas figuras ilustres como o jornalista Assis Chateaubriand, o poeta Haroldo de Campos, as atrizes Nair Bello e Cacilda ­Becker, além do treinador da Seleção Brasileira Vicente Feola. Outros tempos. Após ser entregue à iniciativa privada, o local virou um espaço de túmulos em ruí­nas, calçadas quebradas, muitos jazigos alvo de vandalismo e furtos, e até urnas sepulcrais profanadas, com os ossários à mostra, jogados à revelia.

Não era essa a promessa do prefeito Ricardo Nunes, quando, em março de 2023, oficializou a concessão dos 22 cemitérios da capital para quatro empresas: Cortel, Consolare, Grupo Maya e Velar. As concessionárias ficarão à frente do serviço cemiterial e funerário durante 26 anos. O contrato mal começou, mas sobram denúncias de má zeladoria, cobranças de taxas exorbitantes e perseguição aos trabalhadores autônomos, autorizados a atuar via decreto deixado pelo ex-prefeito Bruno Covas. O Cemitério do Araçá, administrado pela Cortel, tem sido motivo de queixas de famílias que, ao visitar os jazigos de parentes, se deparam com a depredação e a falta de segurança no local.

CartaCapital visitou o Araçá e confirmou o relato. Assim como uma cidade, o cemitério é dividido entre áreas consideradas “nobres” e periféricas. A diferença entre uma e outra salta aos olhos. No entorno da Capela, mais próximo aos portões da Avenida Doutor Arnaldo, estão os jazigos opulentos, construídos em mármore e granito, com placas de bronze e grandes esculturas. Conforme o acesso torna-se mais difícil, seja pelas ruas estreitas, subidas muito íngremes ou distância dos acessos de entrada, a paisagem muda de forma drástica. Os jazigos são simples, construídos apenas em alvenaria, com placas de pedra e jardins modestos. Nessa parte reina o abandono. Há inúmeros túmulos abertos, com as tampas e portões quebrados. “Se uma família vem para um sepultamento nessa parte, é fácil ocorrer um acidente. Imagina uma criança cair numa cova dessas?”, preocupa-se a jardineira autônoma Vanessa Stoner, frequentadora do lugar desde a infância, quando acompanhava o avô, de quem herdou a profissão.

Familiares desconfiam que o objetivo da concessionária é forçar a venda dos jazigos antigos

Em um desses túmulos abertos, no jazigo das famílias Puzzilli e Capelli, a situação é desoladora. As urnas sepulcrais estão expostas ao relento, com as tampas quebradas, e os restos mortais explicitamente à mostra. “É inaceitável, um desrespeito com a família, e também com os munícipes que frequentam o cemitério e podem deparar-se com uma cena dessas”, lamenta Stoner. Segundo a jardineira, os furtos e as depredações de jazigos se intensificaram durante o período da pandemia, até por conta da circulação reduzida. Com a chegada da nova administração, a sensação de abandono não melhorou. Durante uma caminhada de pouco mais de duas horas, em um sábado, não encontrei nenhum profissional da vigilância. Stoner recorda que, antes, a GCM e a Rocam faziam ronda, além dos vigilantes particulares. “A má zeladoria e a falta de segurança foram argumentos para privatizar, mas já se passou mais de um ano e continua igual, talvez até pior.”

Um caso escandalizou os jardineiros. Em meados de 2023, mais de uma dezena de estátuas de médio e grande porte foram roubadas, e até agora a Cortel não explicou o episódio. O jardineiro Reinaldo Fernandes Cunha trabalha no Araçá há 29 anos, onde cuida de, aproximadamente, 35 túmulos, e garante que nesse período nunca viu nada parecido. “Roubos de placas e pequenos entalhes de bronze sempre aconteceram. Mas estátuas? Como saí­ram com várias estátuas daqui de dentro e ninguém viu?”, pergunta. Para remover uma escultura é preciso ter mais de um indivíduo, e retirá-la do local não seria possível sem um veículo com carroceria.

A família Altieri foi uma das lesadas. A escultura do jazigo, de pouco mais de 1 metro de altura, e todas as placas de bronze foram roubadas. O advogado Roberto ­Altieri explica que tanto a estátua quanto as placas chegaram a ser recuperadas pela administração, depois do roubo, ainda na região do cemitério, na Avenida Doutor Arnaldo. Na ocasião, as peças foram armazenadas em um galpão. “Fui ao local e constatei que estava tudo lá”, garante o advogado, que percebeu ainda a existência de “mais de uma dezena de estátuas” guardadas na mesma dependência. Semanas depois, quando voltou para buscar, o galpão havia sido furtado. “Levaram tudo. Fiquei sabendo por telefone.” A família formalizou uma reclamação, “não para receber dinheiro, mas para recuperar o túmulo como ele estava antes de ser furtado”.

Luta. A família Altieri busca, um ano depois, respostas para o furto que desfigurou o túmulo da família. “Levaram tudo”, lamenta Roberto – Imagem: Acervo Pessoal/Família Altieri

Um ano se passou, e até agora a Cortel não deu uma resposta à família. “As fotografias e o testemunho do jardineiro não mentem”, indigna-se o advogado. Ao longo desse período, Altieri fez contato diversas vezes, por telefone e e-mail. Chegou a receber uma mensagem, em outubro de 2023, em que a empresa pedia “um prazo de 30 dias para a apuração dos fatos e providências necessárias para instrução e deliberação que o caso requer”. Ou seja, a administração reconhece que houve falha na segurança e, de fato, diversas peças de alto valor foram roubadas. Não houve nenhum movimento para ressarcir as famílias lesadas. Até o momento, Altieri não ingressou com ação judicial, mas não descarta a alternativa, uma vez que a empresa não apresentou uma resposta clara e efetiva. “O objetivo primário da privatização era imprimir eficiência, celeridade, equidade e transparência desse serviço público ora concedido à iniciativa privada. Se não há resposta, configura omissão, que é a quebra de um dever objetivo atribuído ao serviço público”, queixa-se.

No último ano, a Cortel implementou um serviço de geolocalização no Araçá e no Cemitério Santo Amaro, na Zona Sul, duas das cinco unidades administradas pela concessionária. O propósito é facilitar a familiares a localização de sepulturas, ao buscar pelo nome do falecido ou o número do enterro. Ao fazer esse mapeamento, a empresa catalogou os túmulos considerados em “mau estado”. Em entrevista ao portal G1, o diretor do Cemitério Araçá, Ricardo Pólito, afirmou que as famílias que não atenderem ao chamado perdem o jazigo. “Tem um trabalho de publicação no Diário Oficial e em um jornal de grande circulação, tem um prazo de seis meses. Para nós não é interessante retomar o jazigo, importante é localizar a família.”

Em relação aos roubos de estátuas e urnas profanadas, a Cortel foi evasiva

O curioso é que os adesivos de sinalização de “mau estado” concentram-se principalmente na área considerada “nobre” do Araçá, onde estão os jazigos com materiais de alto valor. CartaCapital acionou a concessionária para entender qual o critério de “abandono”, pois em muitos túmulos quebrados, abertos, depredados e em nítido estado de má conservação, não há nenhuma notificação. A única diferença entre eles é a localização no cemitério. Na parte periférica quase não se veem os adesivos fixados.

Em conversas reservadas, os jardineiros especulam que a convocação dos familiares desses túmulos em bom estado tem como objetivo apenas pressioná-los a vender os jazigos. Além do contato oficial, a reportagem também acionou a concessionária como se fosse alguém interessado em adquirir um jazigo. Após o atendimento, as suspeitas dos jardineiros mostraram-se fundamentadas. A funcionária responsável pela venda destaca a qualidade dos materiais antigos como “algo de acabamento superior, que não se encontra mais hoje em dia”. Durante a visita, ela mostrou dois jazigos bem localizados, próximos à Capela, finalizados em granito “maciço e de época”. O preço de cada um é 120 mil reais.

Em série. Os jazigos vandalizados das famílias Puzzilli e Capelli fazem parte da paisagem – Imagem: Mariana Serafini

A compra pode ser parcelada em até 12 vezes por meio do cartão de crédito. Um jazigo “intermediário”, recém-reformado e ainda sem acabamento, não sai por menos de 70 mil reais. “Mas, se você fizer as contas, compensa adquirir o que está pronto, porque, para finalizar com granito ou porcelanato, vai acabar saindo o mesmo preço”, aconselha a vendedora. Por fim, a funcionária apresentou uma opção “popular”, numa área afastada da entrada. O pequeno terreno chamado de “carneira”, sem nenhum acabamento, apenas o quadrado de terra delimitado com cimento, custa 40 mil reais. Stoner ouviu de familiares abordados para se desfazer de seus jazigos que os valores oferecidos pela Cortel giram em torno de 8 mil a 10 mil reais.

Em nota, a Cortel informou que, “desde que assumiu a gestão do cemitério, em março de 2023, investiu 20 milhões de reais para realizar variadas melhorias nas cinco unidades administradas em São Paulo. A empresa reitera que tem investido no reforço de segurança e, principalmente, em ações permanentes de zeladoria nas áreas comuns dos cemitérios”. Alega ainda que nos cemitérios Araçá e Santo Amaro foram reformadas salas de velório, e fechados mais de 16 mil buracos em sepultura, “mesmo não fazendo parte das obrigações contratuais”. Sobre a segurança, explicou que existe “ronda de motos e veículos 24 horas por dia e instalação de câmeras de monitoramento”. Quanto ao roubo das estátuas e das urnas sepulcrais abertas, com ossários expostos, a empresa foi evasiva: “A respeito de zeladoria contratada, a Cortel SP informa, conforme edital, que se responsabiliza pelo jazigo em demandas relacionadas a queda de árvores e furtos de placas e portão, por exemplo”. •

Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memória insultada’

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