Política

Memória de ambientalista assassinado sobrevive a tentativa de difamação

José Cláudio Ribeiro da Silva e seus irmãos foram absolvidos de acusação de homicídio – caso teria sido armado por pecuarista que mandou matar José Cláudio

José Claudio Ribeiro
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Na Amazônia, mata-se mesmo depois de a vítima já ter sido assassinada: a morte continuada pela difamação. A eliminação física as vezes não basta; só tiros de revolver da pistolagem podem não dar conta de “calar a voz”.

É o explícito poder de uma “necropolítica”, como escreve o filósofo camaronês Achille Mbembe, o poder de definir quem pode viver e quem deve morrer, também tenta governar o espírito além do corpo físico: atingir as ideias, o legado, a memória, e as formas de luta social que não morreram com a mesma bala que matou um corpo. Aquelas ideias que podem existir, e as que devem ser difamadas.

Dois pistoleiros a mando do pecuarista José Rodrigues Moreira (que pode ter agido em um consórcio) mataram José Cláudio Ribeiro da Silva e sua companheira Maria do Espírito Santo da Silva em 24 de maio de 2011, em Nova Ipixuna, no Pará. E aquele que mandou matá-los, José Rodrigues, criou um factoide de que José Cláudio era um assassino. O Ministério Público, inicialmente, caiu na história e acusou os irmãos e José Cláudio (mesmo assassinado).

A falsa acusação mandou prender três irmãos de José Cláudio e levou os familiares ao desespero por quatro anos: um assassinado, três presos. Na prática, serviu para convencer quatro jurados, de sete, a soltar José Rodrigues, em julgamento realizado em Marabá em 4 de abril de 2013. O representante do Ministério Público havia dito naquele momento: “Tranquilamente eu acusaria o José Cláudio e os irmãos dele, todos. Como acusei os irmãos dele. Ele só não entrou na história porque ele estava morto.”

A vítima mais recente dessa necropolítica terrena e espiritual amazônica é José Cláudio.

Como funciona a sequência: primeiro, assassinam os ambientalistas, os extrativistas, os camponeses, os sem terra, os sindicalistas, os “outros” que resistem a opressão e a destruição do ambiente, da natureza, do território.

Depois, assassinam a memória, difamam, criticam, acusam e sem que o morto possa se defender, agem para eliminar a memória de uma vida útil na luta social, nos movimentos, nas resistências. O Estado, quase sempre é cumplice. Como foi o juiz e o promotor contra José Cláudio e Maria.

Mas, as vezes a resistência vence. E essa semana há uma boa notícia que vem da Amazônia.

Na segunda-feira 10 de agosto, em Marabá, três irmãos de José Cláudio Ribeiro da Silva, foram absolvidos unanimemente da acusação de homicídio. A representante do Ministério Público, ao contrário do prepotente e injusto colega anterior, se disse “envergonhada”, retirou as acusações e pediu absolvição dos familiares injustamente acusados por seu antecessor.

“Depois de quatros de sofrimento, de angústia, a gente está mais calmo. Mas a família ficou quatro anos refém do próprio Estado que devia nos proteger. Vivemos refugiados do Estado”, me disse Claudelice, irmã de José Cláudio.

O caso difamado: Edilon de Souza Silva, conhecido como “Pelado”, foi morto dentro do projeto de assentamento agroextrativista  Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna, em 18 de setembro de 2009, um ano e meio antes do assassinato do casal. A polícia civil definiu o caso como um acerto de contas do tráfico e não investigou. O PAE Praialta Piranheira fica na margem do lago de Tucuruí e é utilizado como rota de tráfico de drogas.

Lugar violento, muitas mortes que ocorrem lá dentro nos últimos anos não chegaram sequer a ser registradas nas delegacias — e ainda assim, quando o são, podem ir para delegacias diferentes, como em Itupiranga, Jacundá. A maioria dos crimes, quando os policiais suspeitam ser tráfico, e não há critério para essa decisão dos delegados, não são investigados. Esse foi o caso do assassinato de Eremilton Pereira dos Santos, morto na mesma semana que o casal de extrativistas e cujo inquérito terminou “inconclusivo”.

Edilon, cujos boatos no assentamento davam conta de ser “vendedor de maconha”, foi outra vítima da impunidade reinante — porém seletiva — no Pará. Na notícia veiculada no Correio do Tocantins de 19 de setembro de 2009 o título era: “Rapaz é morto com tiro na testa”. Edilon tinha 21 anos. Seu irmão, Manoel Ribeiro, estava próximo a ele e chegou a encontrar os dois pistoleiros, conforme declarou ao jornal, mas disse a eles que era apenas “trabalhador de Pelado” e conseguiu escapar.

A morte de Edilon “Pelado” foi mais uma das tantas impunes e sem investigação no Praialta Piranheira, onde ocorrem assassinatos por diversos motivos, não apenas pela luta pela terra ou questões ambientais. Pelado era amigo de Antonio Bonfim Filho, conhecido como “Zome”, filho de um assentado e que também foi assassinado dois meses depois de Pelado.

No inquérito, a polícia concluiu que Zome “era conhecido no meio policial como traficante de drogas”. O assassinato de Pelado, mesmo a pedido da família para a polícia apurar, não foi sequer investigado.

Foi apenas em dezembro do ano seguinte que o crime de Pelado reapareceu: José Rodrigues, tentando expulsar agricultores para tomar conta de uma terra que havia comprado de uma grileira em Marabá, é denunciado por José Cláudio e Maria.

Passa a tentar intimidar José Cláudio e Maria, ameaçando-os de morte. Até que consegue mata-los, pelo serviço de um irmão seu, Lindonjonson Silva, e outro pistoleiro, Alberto Nascimento. As investigações apontam esse trio, mas a Polícia Federal aponta indícios de um consórcio envolvendo pecuaristas de Nova Ipixuna investindo em reconcentração de terras e grilagem no assentamento.

A estratégia de José Rodrigues passa a ser difamar José Cláudio, e ele leva Manoel, irmão de Pelado, até a delegacia de Nova Ipixuna para, mesmo muito tempo depois, fazer um boletim de ocorrência acusando José Cláudio e seus irmãos pelo crime.

O delegado manda para o Ministério Público. O promotor abraça a denuncia tardia do irmão de Pelado, mesmo tendo sido levado até a delegacia por José Rodrigues, e depois do assassinato de José Cláudio. E o promotor pede para prender os irmãos de José Cláudio, o juiz aceita imediatamente e com urgência – ao contrário da prisão de José Rodrigues, que foi negada por duas vezes por esse mesmo juiz. E, repetidamente, esse mesmo promotor difama José Cláudio no tribunal do júri que julgaria José Rodrigues do assassinato de José Cláudio:

“Eu poderia muito bem ter devolvido o inquérito, ter feito outra coisa que não denunciado os irmãos do Zé Cláudio. Só que eu sou um profissional do direito, eu sou membro do Ministério Público. Eu tenho um dever funcional, eu tenho um dever com a minha consciência. Mesmo baseando-se apenas tão somente na palavra do Manoel, que foi levado na delegacia pelo José Rodrigues, eu falei: não, a morte do Pelado, pra mim, é uma morte como qualquer outra. Tem que ser investigada. Os acusados tem que ser responsabilizados. Sejam eles quem fossem. É com toda a tranquilidade que eu digo pra vocês: se o José Cláudio estivesse vivo, se ele tivesse sido pronunciado e tivesse vindo pro Tribunal do Juri, eu também estaria ali acusando ele. Eu também estaria ali fazendo a mesma coisa que eu estou fazendo hoje. Eu tenho imparcialidade.” (SIC)

Como vimos essa semana, esse promotor não teve “imparcialidade. Assim como não havia tido o Juiz que absolveu o mandante e “criminalizou as vítimas” que, segundo ele escreveu na sentença, teriam “dado causa ao conflito”, entre outras atitudes que contribuíram para a impunidade, como apontaram os movimentos sociais em carta.

Além de outros absurdos que aconteceram nesse julgamento, como ameaça de morte a uma testemunha, um culto evangélico no meio do depoimento de José Rodrigues, parcialidade de pelo menos dois jurados, etc., razões que serviram ao Tribunal de Justiça do Pará para anula-lo. Mas José Rodrigues havia sido solto e ainda por cima ganhou dois lotes do INCRA como beneficiário da reforma agrária.

Após muita luta de familiares e dos movimentos sociais do Pará, como a Comissão Pastoral da Terra, a Terra de Direitos, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, ao menos no aspecto jurídico a coisa começou a mudar. O julgamento foi anulado e foi determinada a prisão de José Rodrigues, atualmente foragido: o INCRA assumiu que errou e agora diz que vai buscar na Justiça retomar o lote grilado (em vistoria em julho o INCRA encontrou terceiros ocupando o lote irregularmente, ele teria saído de lá).

E, agora, o Ministério Público se refez do erro anterior, sentiu vergonha publicamente, e os irmãos, após 3 anos vivendo como “refugiados” para não serem presos e, provavelmente, assassinados na cadeia pelos mesmos assassinos de José Cláudio, foram absolvidos.

A tentativa de difamação da memória de José Cláudio teve vida curta. Serviu em um momento para livrar, no primeiro julgamento, o mandante. Mas agora a memória da luta ambientalista do casal de agricultores extrativistas, por enquanto, sobrevive.

Difamações na Amazônia ocorrem sempre que lideranças de lutas sociais são assassinadas.

Uma vez entrevistei um fazendeiro que dizia que o Massacre de Eldorado dos Carajás havia sido um “acidente”, provocado pelos sem-terra que foram assassinados: “Eles estavam ocupando uma estrada, a polícia foi desocupar e houve esse acidente. Vamos chamar de acidente.”

Chico Mendes, seringueiro, ambientalista e sindicalista, assassinado em Xapuri, Acre em 1988, lutava pela reforma agrária e contra a expansão do capitalismo na floresta, hoje alguns tentam transformá-lo em “empresário verde” (de sindicalista a empresário…), conferindo um “selo verde” para empreiteiras e grandes empresas de destruição massiva do meio ambiente.

Na época, a UDR (União Democrática Ruralista, que era a organização criminosa dos ruralistas) acusava Chico Mendes de subversivo e guerrilheiro, portanto, que deveria ser morto. Como dá para notar, o neoliberalismo suavizou a difamação.

Dorothy Stang, freira norte-americana que durante décadas lutou na Amazônia ao lado de posseiros, andando pelos lugares mais violentos do mítico “Sul do Pará” e “Terra do Meio”, foi covardemente assassinada por dois pistoleiros a mando de um consórcio de madeireiros e fazendeiros. Uma senhora, com 73 anos de idade, que dedicava sua vida a ajudar camponeses pobres a terem acesso a um pedaço de chão e de floresta.

E defendia a floresta: “a morte da floresta é o fim das nossas vidas”. Mas é fácil escutar em qualquer delegacia ou boteco na região da Transamazônica, seja em Marabá ou em Altamira, ou em Anapu mesmo, uma história diferente: tratava-se, na verdade, de uma perigosa traficante de armas enviada pela CIA para conquistar a Amazônia — além de subversiva e comunista.

Além de difamar José Cláudio, o pecuarista José Rodrigues difamava todos os seus inimigos que ele havia mandado assassinar ou havia agido com extrema violência, seja ameaçando, queimando as casas e destruindo as plantações. Zequinha, que era um assentado que vivia no lote que José Rodrigues grilou, foi acusado de estuprar sua própria filha.

Quando foi preso, no seu primeiro depoimento em dizia que José Cláudio era uma pessoa muito violenta, assassina, que todos temiam no assentamento. Me disse o delegado na época: “parecia que ele ia confessar, dizer: veja porque eu fiz isso, matei esse homem violento, o senhor não concorda?”

Essas outras mortes dos mortos são as disputas por legados, lutas por memórias, difamações e martirizações. Operam no imaginário, nos discursos, e nas visões de mundo – que são bastante reais e materializadas na defesa da floresta e dos rios da Amazônia, ou na destruição total do ecossistema como estamos assistindo hoje.

Funcionam para tentar-se justificar a morte: “matei porque era subversivo, logo mereço a graça”. Ou como diz o deputado ruralista no filme Toxic Amazônia (que pode ser visto nesse link): “as vezes eles são abusados e nos temos que excluí-los da sociedade brasileira”

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