Política

Marina Silva: negacionismo ambiental de Bolsonaro fragiliza soberania

Ex-ministra do Meio Ambiente fala a CartaCapital sobre governo, eleições e o futuro do debate ambiental global

Marina Silva: negacionismo ambiental de Bolsonaro fragiliza soberania
Marina Silva: negacionismo ambiental de Bolsonaro fragiliza soberania
Foto: Wanezza Soares
Apoie Siga-nos no

Negra de origem indígena, evangélica, ex-ministra do Meio Ambiente e três vezes candidata à Presidência. A biografia e a personalidade de Marina Silva garantem a ela um papel singular na política nacional. 

 

Sob sua gestão no MMA (2003-2008), o Brasil se destacou como líder na redução do desmatamento e as emissões de gases que causam aquecimento global. Anos depois, em 2012, a queda chegou a 80%.

Agora, os rumos são outros. O governo Bolsonaro tem conseguido levar à cabo outros projetos para o meio ambiente. Ou conforme disse o ministro Ricardo Salles na fatídica reunião ministerial, passar a boiada. Embora o Ministério do Meio Ambiente não tenha sido incorporado à Agricultura, tem atuado na defesa de interesses do agronegócio e favorecido a grilagem e o garimpo.

Ibama e ICMBio perderam o protagonismo no combate aos crimes ambientais. A falta de incentivo e fiscalização favorece a criminalidade. Desde o ano passado, foram desmatados 9.216 km² da Amazônia Legal, segundo dados do Deter, sistema de alerta do Inpe.

Diante da pressão mundial, o governo tenta convencer líderes e investidores de que a situação não é tão grave assim. Também acusa ONGs e ambientalistas de artífices da ‘cobiça’ estrangeira pela Amazônia. Na quarta-feira, em menção ao presidente americano eleito Joe Biden, Bolsonaro ameaçou usar a pólvora em defesa soberania da bioma. A declaração virou piada. “Um governo que nega o desmatamento, a destruição da biodiversidade e a emissão de gases não defende a soberania. Pelo contrário, fragiliza”, critica.

Em meio uma agenda apertada de lives e gravações de apoio a candidatos municipais, a ex-ministra conversou com CartaCapital por telefone. 

Confira os principais trechos a seguir:

CartaCapital: Ao contrário de Trump, Joe Biden tem uma agenda ambiental ambiciosa. Como essa mudança afeta o Brasil?

Marina Silva: A União Europeia já tem uma atuação forte nessa agenda de mudança climática e desenvolvimento sustentável. Um governo como o do Biden, que assumiu claramente essa agenda e a coloca no mesmo lado do tabuleiro geopolítico Europa e Estados Unidos, a conjuntura muda, o ponteiro do debate muda. E a China, que sempre teve muito mais retórica do que prática na agenda ambiental, vai ter que ir além da retórica. 

Então, o mundo vai ter uma agenda completamente diferente daqui em diante. Se não tiver, estará ameaçando a segurança do planeta. Se quiser recuperar um mínimo de relação e manter as parcerias que queremos com os Estados Unidos, o governo terá que reposicionar a agenda de meio ambiente e de política externa. Salles e [o chanceler] Ernesto Araújo são o pior cartão de visitas que temos. 

Se o Brasil continuar tratando o desenvolvimento sustentável como concessão para sonhadores, estamos fadados ao caos

CC: Quais os riscos de ignorar essa agenda?

MS: Os países que não se ajustarem e não compreenderem isso se tornarão párias econômicos e ambientais — o Brasil já é. E vão pagar um preço alto, porque o próximo passo é a taxação dos produtos carbono-intensivos. Quando a China, os Estados Unidos e a União Europeia fecharem uma agenda de redução de CO2, não vão importar CO2 para seus países. Porque isso, além de prejudicar o planeta, é claramente antiambiental. 

E o Brasil é o país que tem as melhores condições para enfrentar esse novo momento. Tem condições de ser um grande produtor de grãos e proteína animal em base sustentável, de ter uma matriz energética 100% limpa. Nós já deveríamos estar onde eles dizem que querem chegar. 

Salles e Araújo são os piores cartões de visitas

CC: Quando o Brasil começou a se perder nesse caminho?

MS: Esse processo começou a desacelerar em 2012. O governo Temer o enfraqueceu completamente, e o governo Bolsonaro deu o tiro de misericórdia. Esse governo faz o Brasil andar pra trás, e os prejuízos econômicos, políticos e sociais são imensos. 

Se o Brasil continuar tratando as ações de desenvolvimento sustentável como concessão generosa para empreendedores sonhadores, estamos fadados ao caos. Não dá pra ter uma tecnologia em que é possível dobrar a produção, restringir a produção de CO2 e preservar a floresta em pé e, dos 236 bilhões do próximo Plano Safra, apenas 1% ir pra esse programa. Desse jeito, nunca vamos alcançar a agricultura de baixo carbono. 

A vitória do Biden colocou uma mensagem para o mundo: entre os extremos, há o caminho da mediação

CC: Apesar das críticas de todos os lados, Ricardo Salles se mantém firme no cargo. 

MS: O Salles é um operador do governo, um arquiteto dos planos do bolsonarismo: desmontar a governança ambiental, não demarcar mais um centímetro de terra indígena, acabar com o trabalho do ICMBio, do Ibama. Dentro dessa referência, o Salles coloca em prática esse horror antiambiental de forma competente. 

O vice está coordenando o Conselho da Amazônia Legal, discutindo políticas para a Amazônia, mas o presidente diz que nunca despacha com ele. Mourão foi colocado lá pra dar algum sinal para a sociedade e para o mundo. Salles é o homem certo para cumprir com o desmonte, assim como Weintraub era. Mas houve uma articulação, e ele [Weintraub] teve que sair. Mas Bolsonaro tentou segurá-lo até o último momento.

CC: Até onde a sociedade civil pode resistir a essa ofensiva?

MS: Eu acho que a nossa base é a Constituição. Nosso limite é a Constituição, e o nosso começo é a Constituição. E o presidente não está baseado na Constituição, ele extrapola o tempo todo os limites dela. Nossa batalha é uma batalha para não se deixar intimidar por esses arroubos autoritários, que querem ressuscitar o período de exceção. E, com base na Constituição, mostrar a eles que a Amazônia é calcada na mesma Constituição, e que o direito de ir e vir e a liberdade de expressão, organização e associação é assegurada. A lei está do nosso lado, o bom senso está do nosso lado, a ética está do nosso lado. Quem está do lado errado é o presidente.

CC: Uma das justificativas do governo para essa postura é defesa soberania da Amazônia. É uma preocupação legítima?

MS: Para defender a soberania de uma região tão importante é preciso se responsabilizar por ela. Um governo que entrega as populações locais à violência e ao desamparo, que nega a destruição da biodiversidade, o desmatamento, a emissão de gases não defende a soberania. Pelo contrário, a fragiliza. Essa é a pior forma de defender a soberania. Ser soberano é ter responsabilidade política, econômica, social, ética, técnica e científica. O Brasil entrou no debate das eleições americanas sob críticas fortes a essa irresponsabilidade. Uma soberania responsável evita, inclusive, que nos apontem falhas. 

CC: A senhora vê com bons olhos os movimentos em busca de um pacificador, um Biden à brasileira?

MS: Tenho dito já há muito tempo que precisamos discutir o que queremos para o País. Um país que viveu o trauma da corrupção, que vive o trauma de um governo como o do Bolsonaro, antes de um nome, de centro ou de que lado seja, precisa discutir o projeto. O Brasil está onde está porque só se discutiu projeto de poder. O PSDB entrou no governo discutindo ficar 20 anos. O PT também. Foram cometidos erros gravíssimos. É preciso reconhecer esses erros para fortalecer a democracia, reconectar a sociedade. 

A vitória do Biden colocou uma mensagem para o mundo: entre os extremos do populismo, seja de esquerda ou de direita, dos que se acham donos da verdade e das bandeiras, há o caminho da mediação. Mas esse caminho tem que se baseado no que se pensa para o Brasil. Como vamos resolver a desigualdade, sair da crise econômica e sanitária, como fazer com que o Brasil faça jus à potência ambiental que é… 

CC: O aumento do desmatamento e das queimadas tem repercutido muito. É sinal que percebemos a urgência dessas questões?

MS: Desde 2009, as pesquisas mostram que a sociedade brasileira é contra a destruição da Amazônia. O que falta é compromisso ético, responsabilidade com o futuro, para traduzir isso em políticas públicas. Infelizmente, as pessoas defendem certas coisas, mas na hora de votar, por alinhamento ideológico e por considerar partidos e líderes como se fossem times de futebol, ignoram isso. Na política, é preciso saber buscar outro caminho quando um partido ou proposta não atende às expectativas. Agora são furacões, tornados em Santa Catarina e no Paraná cada vez mais frequentes, chuvas escura em São Paulo, secas prolongadas… Isso já aponta para necessidade de proteger a Amazônia.O pior jeito de descobrir que uma doença é grave é perdendo um ente querido. As pessoas não precisam experimentar a quase-morte para se cuidar. 

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo