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Marcha da insensatez

A ANP insiste em leiloar blocos de petróleo em áreas próximas de Fernando de Noronha e Atol das Rocas

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Risco. Os danos ao ecossistema podem ser irreversíveis, alertam especialistas – Imagem: iStockphoto
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Reconhecido como Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, o arquipélago de Fernando de Noronha, em Pernambuco, está sob ameaça de contaminação e danos irreversíveis nos seus ecossistemas. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, conhecida pela sigla ANP, pretende leiloar a exploração marítima em blocos localizados na Bacia Potiguar, em direção ao litoral do Rio Grande do Norte, no chamado Setor SPOT-AP2. Em 2021, no governo de Jair Bolsonaro, foram ofertados 14 blocos na região, mas não houve interessados. Agora, sob a gestão do presidente Lula, 11 blocos voltam a ser disponibilizados no 4º Ciclo da Oferta Permanente de Concessão, prevista para 13 de dezembro, poucos dias após a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP28, na qual o Brasil busca recuperar o protagonismo no debate ambiental.

O leilão da Bacia Potiguar está sendo questionado na Justiça pelo Instituto Internacional Arayara, que moveu uma ação civil pública exigindo que os blocos localizados nas proximidades do Parque Nacional de Fernando de Noronha e da reserva biológica do Atol das Rocas sejam retirados do processo. De acordo com a nota técnica produzida pela entidade, a proposta de exploração está sobreposta aos montes submarinos Sirius, Touros e Guará, formações geológicas importantes para a vida marinha não só de Fernando de Noronha, mas de todo o País. De acordo com o biólogo marinho Vinícius Nora, gerente de clima e oceanos do Arayara, a Bacia Potiguar é conhecida como a porta de entrada, pelo Nordeste, da margem equatorial, que abarca também boa parte da Região Norte, incluindo a foz do Rio Amazonas. Todo esse trajeto vem sendo apontado como o “novo pré-sal” e, por isso, tem despertado tanto interesse da indústria petrolífera.

A Bacia Potiguar faz parte de uma lista de 602 blocos ofertados para exploração, o que faz do leilão de 13 de ­dezembro o maior da história do Brasil. Os investimentos na indústria petrolífera contrariam, porém, o plano de transição para uma economia verde, defendida por Lula. Derivados do petróleo, os combustíveis fósseis são os principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa, que provoca o aquecimento global e tem relação com o agravamento dos eventos climáticos extremos. Além dos danos ambientais, a ONG afirma haver irregularidade no processo de concessão para exploração de petróleo em Noronha, informação que é rebatida pela ANP. O órgão diz seguir as diretrizes do Conselho Nacional de Política Energética, a estabelecer “que o planejamento de outorga de áreas levará em consideração as conclusões de estudos multidisciplinares de avaliações ambientais de bacias sedimentares. A mesma resolução prevê que, para as áreas cujos estudos ainda não tenham sido concluídos, as avaliações sobre possíveis restrições ambientais serão sustentadas por manifestação conjunta do Ministério de Minas e Energia e do Ministério do Meio Ambiente”.

A exploração está sobreposta a formações geológicas importantes para a vida marinha

A manifestação conjunta é apontada pelos especialistas como uma espécie de brecha à avaliação ambiental de área sedimentar, que deve estudar a bacia para entender o impacto cumulativo e sinérgico. “Na ausência desse estudo, que é complexo e demanda tempo, existe essa manifestação conjunta para avalizar o leilão dos blocos exploratórios”, afirma Nora, antes de acrescentar: “Temos um precedente jurídico ao longo do litoral sobre a necessidade da mudança do bloco de petróleo, em função dos recifes de corais. O dano maior que se pode causar ao ambiente marinho e costeiro é a retirada ou a destruição desse ecossistema. Estamos falando de perfuração, de torre, de sísmica, de grandes embarcações, de poluição prevista no licenciamento, da perda e da modificação completa desse ambiente”.

O biólogo ressalta ainda que a exploração pode abalar a estrutura de formações rochosas submersas, contrariando uma diretriz ambiental da ANP, que trata do risco geológico. “Como vai se furar um bloco de petróleo em cima de uma montanha?” Questionado, o Instituto Chico Mendes (ICMBio) disse que o órgão só se manifesta quando acionado no processo de licenciamento, conduzido pelo Ibama. Mas, em texto publicado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Nordeste, o analista ambiental do ICMBio e chefe do Cepene, Leonardo Messias, ressaltou o perigo que a exploração representaria para as unidades de conservação de Fernando de Noronha e Atol das Rocas. “É um despropósito, do ponto de vista da geologia, a exploração de petróleo em áreas vulcânicas”, alerta, citando também o risco de vazamento de óleo no local. “Seria um desastre para os ecossistemas e para as espécies dependentes para cumprir seus ciclos de vida e suas funções ecológicas no ambiente marinho.”

A ANP esclarece que a inclusão dos blocos pelos ministérios nas rodadas de licitações não significa a aprovação tácita para o licenciamento ambiental e que todas as atividades que as concessionárias venham a executar nas ­áreas demandarão detalhado processo de levantamento ambiental. Em 2021, o ICMBio chegou a emitir um laudo não recomendando o leilão. Procurado pela reportagem, o Ibama não deu retorno. •

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

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