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Profissionais do setor denunciam calote do governo Tarcísio de Freitas e preparam uma greve

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Drible. O governador primeiro colocou a culpa em Brasília. Depois atribuiu os constantes atrasos a falhas tecnológicas – Imagem: Arquivo/GOVSP
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O governo Tarcísio de Freitas é acusado de descumprir obrigações trabalhistas básicas com profissionais da saúde do estado contratados via CLT. Segundo levantamento da subseção do Dieese no ­SindSaúde, mais de 20 mil trabalhadores teriam sido prejudicados por falhas no recolhimento do FGTS e das contribuições ao INSS. Servidores denunciam a interrupção dos depósitos obrigatórios e afirmam que seus dados seguem fora do eSocial, sistema federal exigido por lei para o registro das informações. Relatos indicam que os problemas começaram em outubro de 2022, logo após o prazo de migração obrigatória para a plataforma.

Diante da falta de solução, o sindicato da categoria anunciou uma paralisação de 48 horas a partir da quarta-feira 16. A decisão foi tomada após tentativas de diálogo que não avançaram. A situação, segundo o presidente do sindicato, Gervásio Foganholi, atinge os hospitais das clínicas de São Paulo, Botucatu, Ribeirão Preto e Marília, o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual­ de São Paulo e antigas autarquias (órgãos públicos com autonomia administrativa) como a Sucen, hoje incorporada à Coordenadoria de Controle de Doenças. “O governo estadual não aderiu ao eSocial até hoje. Eles tinham de ter feito isso e regulamentado em 2022”, afirma Foganholi. Segundo ele, a situação se repete em todas as autarquias da saúde sob regime CLT, com impactos diretos no acesso a direitos básicos como FGTS, INSS e Pasep, que dependem de cadastro atualizado. “Quando cobramos, o governo jogou a culpa no governo federal. Depois disseram que era um problema de TI. Mas como o estado mais rico da federação não resolve isso há dois anos?”

Para o dirigente, a justificativa técnica mascara a falta de vontade política. Algumas autarquias, relata, tentam resolver a situação manualmente, mas os pagamentos saem com atraso e sem padrão. “Os aposentados que continuam trabalhando não estão recebendo o Fundo de Garantia, ou o recebem com atraso. Quem tem algum problema de saúde e recorre ao INSS enfrenta dificuldade. Consta como se não tivesse vínculo empregatício. E ficam sem cobertura e sem receber.”

Servidores acusam a administração de não recolher FGTS e INSS

Em reunião em 3 de julho, a Secretaria da Saúde informou à comissão de negociação sindical que havia iniciado tratativas com a Secretaria da Fazenda para tentar resolver o impasse. Segundo a Coordenadoria de Recursos Humanos, foi criado um aplicativo para transferir os dados da folha de pagamento do Prêmio de Incentivo à Fazenda, responsável por alimentar o eSocial. A expectativa é de que, com essa medida, as pendências venham a ser regularizadas. Ainda não há qualquer previsão de quando os dados serão de fato atualizados.

A CRH alega que os recolhimentos têm sido feitos normalmente, mas que o sistema da administração estadual não permitia o envio automático das informações à União. O sindicato contesta a versão e afirma que os trabalhadores foram prejudicados. Entre os transtornos relatados estão negativas de auxílio-doença pelo INSS, erros no cálculo de aposentadorias, bloqueios no saque do FGTS e até a perda do abono salarial. A situação também afeta aposentados na ativa, cujos depósitos do FGTS deveriam cair diretamente em conta. Desde janeiro, segundo denúncias recebidas pelo sindicato, ou não há pagamento ou os valores têm sido depositados de forma incompleta.

É o caso de Moacir Gonçalves, há 20 anos funcionário da área de manutenção do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Aposentado, Gonçalves deveria receber mensalmente o repasse do FGTS, pois tem direito ao saque imediato. “Fui à Caixa porque não apareceram os depósitos de fevereiro e março. O gerente fez um levantamento e confirmou que não estava depositado”, relata. O servidor foi o primeiro no instituto a perceber o problema, em fevereiro. Desde então, monitora a situação. “Até o mês de maio não estava. Junho ainda não fui ver. Estou perdendo juros e correção monetária. Mesmo que depositem depois, quem vai repor o valor? A Caixa ou o governo?”

Mobilização. Os trabalhadores vão cruzar os braços no dia 16. Não houve avanços nas negociações com o governo – Imagem: SindSaúde/SP

Uma das razões para o impasse, segundo o sindicato, é que a solução apresentada pelo governo contempla apenas os profissionais contratados diretamente pela pasta. Não há confirmação de que o mesmo tipo de correção será aplicado nas autarquias e institutos, como os hospitais das clínicas e o Iamspe. Em alguns desses locais, a solução tem sido improvisada, informa a entidade. O Iamspe comunicou que tem feito lançamentos de forma manual. Trabalhadores relataram que os valores referentes a abril e maio só foram pagos no fim de junho. No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, a direção regional do sindicato foi informada da intenção de resolver o problema, mas a regularização depende da Secretaria da Fazenda.

Diante da morosidade da gestão estadual, a direção sindical formalizou denúncia à Superintendência do Ministério do Trabalho, por meio da assessoria jurídica, mas ainda não obteve resposta. Paralelamente, ingressou com pedido de mediação pré-processual no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. As audiências terminaram sem acordo. O desembargador responsável pelo caso chegou a criticar a postura da administração pública, classificou o episódio como “calote” e sugeriu a judicialização do impasse, caso o governo siga sem apresentar uma solução efetiva.

Desde janeiro deste ano, uma enfermeira, que prefere não se identificar, com mais de 30 anos de atuação no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, afirma não receber os depósitos do FGTS devidos. Ela só descobriu o problema recentemente, ao acessar o extrato pelo aplicativo do fundo. “Vi que não havia depósito desde fevereiro de 2025”. Segundo a enfermeira, em nenhum momento foi informada pela instituição sobre a falha. A resposta do setor de recursos humanos do hospital foi que os repasses só voltariam a ser feitos após a inclusão dos servidores concursados no eSocial, processo que, de acordo com a legislação, deveria estar em vigor desde setembro de 2022. A previsão atual, conforme informado aos funcionários pelo próprio RH, é de que a regularização ocorra apenas em outubro deste ano. “Eles disseram que só começaram a fazer isso há dois meses.”

O sindicato promete ampliar a greve, se a paralisação de 48 horas não der resultado

Outra trabalhadora afetada é Daiana Geralda, que há 18 anos atua na área de nutrição do Hospital das Clínicas de São Paulo. Ela conta que só descobriu recentemente a falta dos depósitos, ao tentar fazer um saque para pagar contas. “Descobri quando umas colegas comentaram que não estavam conseguindo se aposentar porque o FGTS não estava sendo depositado.” Geralda tentou fazer uma simulação pela internet e, ao verificar o extrato, constatou a falha. “Fui abrir minhas contas e vi que realmente não estava recebendo. Minhas colegas estão tentando resolver com advogado, porque não conseguem se aposentar. Eu só queria sacar para pagar as contas, mas nem isso consegui.”

Para Foganholi, os problemas relacionados ao eSocial, INSS e FGTS são apenas parte de um cenário mais amplo de descaso. O sindicalista cita ainda o atraso no pagamento do bônus por resultado, a ausência de reajustes salariais e a falta de valorização das carreiras. “São vários pontos. Até agora, nada foi resolvido. Se a greve de 48 horas não for suficiente para avançar nas negociações, podemos ampliar o prazo da paralisação.”

Por meio da assessoria de imprensa, a Secretaria da Saúde informou que os recolhimentos de FGTS e INSS dos profissionais contratados via CLT têm sido feitos conforme a legislação vigente. Afirmou ainda que, em parceria com a Secretaria da Fazenda, a Secretaria de Gestão e Governo Digital e a Prodesp, está desenvolvendo uma ferramenta para integrar os dados ao sistema federal eSocial, o que permitirá mais agilidade e transparência no processo. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mal de saúde’

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