Política

Lula em Lisboa: esperança nos salões, delírio nas ruas

Bolsonaristas e lulistas trocam ofensas no sereno, enquanto o presidente eleito fala do futuro com líderes portugueses

Créditos: CARLOS COSTA / AFP
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O locutor, impotente, repete ao microfone: “Por favor, por favor, pessoal de apoio, o Lula é o presidente eleito, o Lula é o futuro presidente do Brasil, por favor, temos de pensar nisso”.

Não foi por falta de empenho do pessoal de apoio, estava mesmo impossível fazer algo, a não ser observar os acontecimentos. Uma muralha humana impedia a passagem. Um, dois, cinco, trinta e, de repente, Lula havia desaparecido no meio dos abraços e das telas dos telefones celulares.

“Consegui, amiga”, chorava uma jovem ao mostrar a selfie, arrancada com dedicação e leves cotoveladas. “Por favor”, insistia o locutor. “Deixa ele ao menos tirar fotos com as crianças”.

O petista acabara de pronunciar seu mais emocionado discurso durante a passagem de um dia e meio por Lisboa. “Espero que em breve o Brasil esteja pronto para receber de braços abertos cada um de vocês”.

Na plateia lotada do auditório do Instituto Universitário da capital portuguesa, uma maioria significativa de mulheres repetia o jingle da campanha, gritava palavras de ordem, pedia picanha e, ansiosa, interrompia frequentemente o discurso de Lula, como se fosse uma conversa entre amigos.

Quando o futuro presidente citou a compra de viagra pelas Forças Armadas, alguém gritou: “Tá tudo brochado”. Quando agradeceu as cartas recebidas durante os 580 dias de prisão, ouviu: “Herói”. “Nem se eu tivesse todo dinheiro do mundo eu conseguiria pagar o que vocês fizeram por mim. Minha primeira palavra é gratidão. Pelo que fizeram por mim antes e pela votação aqui. Ganhamos de lavada e a partir de janeiro vou pagar com trabalho, fazendo o que for possível pelo povo brasileiro”. Em Portugal, no segundo turno, o petista angariou cerca de 65% dos votos válidos.

Créditos: CARLOS COSTA / AFP

O encontro com a militância na manhã ensolarada do sábado 19 manteve Lula em uma ilha de afeto e apoio nesta curta passagem por Portugal. No dia anterior, longe dos olhares e ouvidos do presidente eleito, bolsonaristas e petistas travaram nas portas dos palácios oficiais uma espécie de slam.

Ladrão rimava com prisão. Guerreiro, com povo brasileiro. No outro lado da rua do Palácio de Belém, residência do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, a polícia, por coincidência ou intuição, isolou os eleitores de Bolsonaro em um “cercadinho”.

Um repórter da CNN Portugal quis saber de uma senhora, camisa amarela, megafone dourado nas mãos, porque ela acreditava em fraude nas eleições. “São inúmeras provas, dezenas de auditorias independentes. E o Lula não poderia concorrer, ele foi condenado em quatro instâncias (sic)”. O repórter avança: “Mas a maneira como o juiz Sérgio Moro condenou o presidente Lula da Silva também não é uma forma de corrupção?”. “Para um jornalista, o senhor está muito mal-informado”.

Nem Deus nem o acaso atenderam, no entanto, as preces dos manifestantes que pretendiam constranger o petista. No exato momento em que a comitiva deixava o palácio, rumo ao compromisso seguinte, dois ônibus obstruíram a visão de quem estava do outro lado da calçada. Obra do demônio, dirão os mais fanáticos.

Restou a opção de infernizar a comitiva lulista no Palacete São Bento, casa do primeiro-ministro, António Costa, mas o rígido esquema de segurança impediu a aproximação e empurrou os manifestantes para a rua lateral. Enquanto os colegas enrolados em bandeiras do Brasil atrapalhavam o tráfego, uma senhora com a camisa da CBF tentava convencer, em um inglês claudicante, dois turistas franceses de que as eleições brasileiras haviam sido fraudadas. Ou eles não entenderam nada. Ou entenderam tudo. Uma outra, ao ver as câmeras de tevê, gritou o nome do ministro Alexandre de Moraes, ministro do Supremo, abaixou as calças e exibiu as nádegas. Quanto sacrifício patriótico.

Protegido da chuva fina, do frio e da gritaria histérica, acompanhado de Janja, futura primeira-dama, e de Fernando Haddad (futuro ministro da Fazenda?), o petista ouvia os elogios de Costa. “Portugal tinha muitas saudades do Brasil, o mundo tinha muitas saudades do Brasil e eu tinha muitas saudades do presidente Lula. Vamos recuperar o tempo que perdemos. Temos muita coisa para fazer juntos”, celebrou o primeiro-ministro. O convidado retribuiu: “Vim aqui para aprender. Estou muito feliz de estar aqui. O Brasil voltou ao mundo político, voltou a discutir os assuntos de interesse da humanidade. Fazia anos que o Brasil estava isolado. Não foi o mundo que isolou o Brasil, foi o Brasil que se isolou”. Entre declarações sobre a Copa do Mundo e amizade entre os dois países, Lula não se esqueceu de uma “dívida”: “Finalmente vou assinar o Prêmio Camões para o Chico Buarque que o atual governo não quis assinar. E faço questão de estar em Lisboa com o Chico para a entrega do prêmio”.

Na rápida coletiva ao lado de Costa, o futuro presidente, tratado, aliás, como presidente de fato tanto no Egito quanto em Portugal, criticou o terrorismo do mercado financeiro, que se descabela ante o medo de desequilíbrio das contas públicas (“Ninguém tem autoridade para falar de política fiscal comigo. No meu governo, fomos o único país do G20 a fazer superávit primário por oito anos consecutivos”), minimizou o golpismo de alguns generais (“O comando militar está tranquilo, me conhece. No momento certo, vou indicar quem será o comandante da Marinha, quem será o comandante da Aeronáutica, quem será o comandante do Exército. E aí o Brasil também vai voltar à normalidade nas relações entre as Forças Armadas e o governo”) e respondeu à obsessão da mídia a respeito da viagem no jatinho do empresário José Seripieri Filho, fundador da Qualicorp (“voei a convite de um amigo, que queria participar da Cop27. Quando for presidente, não poderei mais fazer o mesmo”). Lula e Costa prometeram retomar as negociações bilaterais, paralisadas desde a eleição de Bolsonaro, e a cúpula dos países de língua portuguesa, além de cooperar para o avanço do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. “É um compromisso de campanha”, afirmou o petista.

Quando a entrevista coletiva terminou, por volta das nove da noite, já não se ouviam os protestos. Mas que Lula não se engane. Para os bolsonaristas convencidos de fraude, a luta continua. No Brasil e além-mar.

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