Política
Lula é Haddad
Ao contrário do que sugerem alguns aliados, o grande trunfo do candidato continua a ser o ex-presidente


Como sofremos. A semana anterior ao primeiro turno trouxe reversão brutal das expectativas, que culminou na onda do domingo 7. Jair Bolsonaro abriu ao longo dos dias uma vantagem de 2 a 0 sobre Fernando Haddad. E por pouco, muito pouco mesmo, não aumentou a vantagem para 3 ou 4.
No domingo, a bola bateu na trave, bateu no travessão, mas não entrou. Foi por um fio. O que vimos não foi, como disseram alguns dos jornais, uma onda de direita ou conservadora. Foi uma onda Bolsonaro, de extrema-direita, que arrasou grande parte da direita tradicional. Os seus candidatos
à Presidência e aos governos de estados foram dizimados. No Congresso, os partidos associados a Michel Temer e ao golpe de 2016 murcharam.
A esquerda também ficou abalada, como sabemos. O impacto foi tão forte que muitos se desanimaram e passaram a considerar que as chances de Haddad são remotas ou até inexistentes. Calma. O jogo não acabou. Vamos ter de jogar com garra, dar o sangue, bater na medalhinha. Mas é perfeitamente possível virar o jogo no segundo tempo.
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Primeiro ponto: o voto útil da direita já migrou maciçamente para Bolsonaro nos últimos dias antes da votação. Era a tentativa de evitar o PT no segundo turno e liquidar a fatura no primeiro. Mas não houve voto útil na esquerda em Haddad. E por que haveria? O petista não tinha a menor chance de ganhar na primeira volta. Ciro Gomes teve votação respeitável e cresceu um pouco no final. É agora que os votos dele e de outros candidatos migrarão para Haddad.
Posso ilustrar esse ponto recorrendo a um pouco de aritmética? A diferença entre Bolsonaro e Haddad foi de 17 pontos porcentuais dos votos válidos (46 contra 29). Parece razoável admitir que o grosso dos eleitores de Ciro passe para Haddad no segundo turno. Recebendo, digamos,
11 dos 12,5 pontos de Ciro, Haddad iria a 40% dos votos válidos.
Acredito que é possível também, usando o discurso correto, tirar eleitores de Bolsonaro ou levá-los a votar em branco – especialmente aqueles de baixa renda, que já votaram em Lula e no PT no passado, mas que optaram, desorientados, pela falsa novidade do candidato de extrema-direita. É verdade que, segundo os institutos de pesquisa, a taxa de fidelidade (o porcentual que declara não mudar de voto em nenhuma hipótese) é alta tanto para Haddad como para Bolsonaro – algo como 80%.
Mas, tendo em vista a velocidade e a dimensão da subida de Bolsonaro na reta final, é provável que
a sua taxa de fidelidade tenha caído, ou seja, que tenha aumentado o porcentual de votos voláteis e reversíveis. Repare, leitor(a), que bastaria que 3% dos votos válidos passassem de Bolsonaro
para Haddad para levar os dois candidatos a empatar em 43%. Isso, claro, se a transferência de Ciro alcançasse valor próximo ao indicado acima.
Segundo ponto: por motivos não inteiramente claros, Haddad escapou ileso da onda de extrema-direita que vitimou várias lideranças de peso do PT e da esquerda (Dilma, Suplicy, Lindbergh e Requião, entre outros). Ele até cresceu um pouco na reta final.
Terceiro ponto (que talvez explique o segundo): Haddad tem perfil moderado e é um bom candidato para disputar o segundo turno, ocasião em que os candidatos devem tentar se deslocar para o centro. Ele é um político naturalmente “amplo” e pode conquistar, sendo apenas ele mesmo, eleitores mais ao centro do espectro político, não necessariamente muito simpáticos ao PT.
Temos trunfos importantes, portanto. Podemos também (Deus ajudando) contar com os erros dos integrantes mais medíocres ou menos experientes do time adversário (Fala mais, general Mourão! Fala mais, Paulo Guedes!). Mas o decisivo é jogar bem, agressivamente, com coragem, usando todos os trunfos.
O grande trunfo de Haddad continua a ser o ex-presidente Lula, um dos maiores – talvez o maior – líder político da história brasileira. No meu entender, o desafio de Haddad no segundo turno é definir
corretamente a sua relação com Lula. Veja, leitor(a), a complexidade do desafio.
Haddad não pode se deixar ofuscar ou se anular perante Lula. Mas não pode, também, tomar distância dele. É uma faca de dois gumes. Só que um dos gumes corta muito mais. A mídia tradicional recomenda, em coro: “Haddad precisa mostrar que é Haddad, a rejeição a Lula é alta, para
crescer é preciso ficar mais longe do padrinho político encarcerado”… Canto de sereia. São muitos os méritos do candidato, que tem tudo para ser um grande presidente. Mas os votos são de quem?
Tomar distância de Lula será visto pelo eleitor como ingratidão e levará à perda de apoio e votos. E quem é visceralmente contra Lula não votará em Haddad de qualquer maneira. Que melhor conselheiro poderia ter Haddad? Lula, para além de todos as suas qualidades, tem vasta e inestimável experiência em disputar ou orientar disputas eleitorais. E ganhou as quatro últimas eleições presidenciais.
Haddad não deve reduzir as suas visitas a Curitiba. Humildade e realismo nunca tiraram voto de ninguém. Uma inflexão na forma de apresentar a relação com Lula é provavelmente recomendável. Haddad fez bela campanha e chegou ao segundo turno em condições adversas, depois de pouquíssimo tempo de campanha.
No primeiro turno, para garantir a transferência de votos, o lema foi “Haddad é Lula”. No segundo, o lema não deve ser “Haddad é Haddad”, mas, sim, “Lula é Haddad”. Diferença sutil. Lula passa para o início da frase, mas Haddad ocupa o seu centro. Inflexão, não cavalo de pau.
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