Política

Luis Roberto Barroso no Estado de compadrio

O ministro fez no TSE aquilo que criticava antes: mudou a jurisprudência em função de um réu, Lula

Barroso, como outros, mudou a jurisprudência para impedir Lula
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Na qualidade de juiz responsável por relatar a admissão da candidatura à presidência de Lula, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso fez o que muitos esperavam na sexta-feira 3: barrou a candidatura.

O que não se imaginava era que o ministro abusasse tanto dos dois pesos e das duas medidas.

Em 24 de agosto, há uma semana da sessão extraordinária que solicitou para julgar Lula antes do início do horário eleitoral gratuito, Barroso ministrou a palestra de encerramento do III Simpósio Nacional de Combate à Corrupção, promovido pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal em Salvador.

Nela, Barroso reafirmou algo que tinha dito no julgamento do habeas corpus de Lula no STF em abril de 2018: “As elites brasileiras criaram um sistema penal que, no geral, as deixa imunes de serem alcançadas por esse sistema. O sistema punitivo… foi concebido para pegar menino pobre, com cem gramas de maconha. E quando o sistema chega a alguém poderoso, seja no espaço público ou privado, que tenha desviado milhões, ao contrário do que deveria ser, tudo vai ficando muito mais difícil.”

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O que ocorre nestes casos? Segundo Barroso, “a reação é imensa, é a reação oligárquica, é a reação do abafa”. É contra ela que o Poder Judiciário deve se proteger, sobretudo quando julga alguém tão poderoso como Lula.

Também repetindo um tema de seu voto no julgamento do HC, Barroso deu a senha para o que faria, ao afirmar que não haveria “razão para mudar a jurisprudência. Um país que vai mudando sua jurisprudência em função do réu não é um Estado de direito democrático, é um Estado de compadrio.”

Qualquer bom entendedor compreendeu que Barroso se manifestava publicamente, fora dos autos, sobre o tema que julgaria. A jurisprudência a que se referia dizia respeito aos efeitos da condenação de um réu na segunda instância judicial, ou seja, antes de esgotar todas as possibilidades de recurso e chegar ao “trânsito em julgado” de que fala a Constituição.

Um dos efeitos da condenação em segunda instância por órgão judicial colegiado é, como se sabe, a antecipação da prisão antes do fim do processo judicial, contra a definição expressa pela Constituição. Lula está preso por causa desta “reinterpretação” peculiar da Constituição, que aliás só passou a vigorar em 2016 sob grande pressão de Barroso.

O segundo efeito é tornar o réu inelegível segundo uma certa interpretação da Lei da Ficha Limpa, com base na qual Barroso viria a julgar e barrar a participação de Lula nas eleições.

Com apenas um pouco mais de sutileza, a tática de Barroso ao se manifestar publicamente sobre tema ainda a ser julgado é a mesma “teorizada” por Sergio Moro no infame artigo em que defendeu a aliança do Judiciário com a mídia contra políticos acusados de corrupção. Trata-se de influenciar a opinião pública para resistir politicamente à reação “oligárquica” dos políticos profissionais, a elite ameaçada pelos autointitulados guardiões da coisa pública.

Dito em 24 de agosto, realizado em 31 de agosto. Com um problema: Barroso desrespeitou a jurisprudência e ritos processuais ao julgar o direito de Lula antes do início do horário eleitoral, com o objetivo evidente de limitar a “reação oligárquica”, ou melhor, a exposição pública do candidato que lidera as pesquisas de opinião.

Ou seja, fez exatamente aquilo que disse caracterizar um “Estado de compadrio”: mudou a jurisprudência e os ritos em função do réu.

Juristas não demoraram para apontar a quebra de vários precedentes, entre os quais:

1)    o entendimento do STF de que um tratado internacional (como o que levou à decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU a favor de Lula) teria validade com a assinatura do Poder Executivo, sem a necessidade de tornar-se lei interna;

2)   O entendimento de que Lula não poderia manter o “registro sub judice”, ao contrário das leis 9504/97 e 12304/2009 que permitiram que 145 candidatos com registro negado disputassem as eleições para prefeito em 2016, sendo que 98 se elegeram e exercem mandato.

O que mais me impressiona, contudo, é que Barroso se deu ao trabalho de chamar uma sessão extraordinária para julgar Lula menos de 24 horas depois de seus advogados protocolarem uma defesa de 200 páginas.

Desta maneira, Barroso não respeitou a rotina de reuniões do tribunal nem muito menos o prazo legal de cinco dias para a manifestação das partes. Barroso justificou o rito excepcional e apressado porque o caso é “notório”. Leia-se: não é preciso nem ouvir as partes (ou mesmo ler a defesa) porque os juízes já tem opinião formada antes do contraditório… Se isto não é um casuísmo típico de um “Estado de compadrio”, o que pode ser?

A exceção casuística à segurança da regra jurídica também foi justificada por Barroso, à la George Orwell, para evitar a “insegurança jurídica”. Leia-se: para evitar que Lula fosse apresentado à população que o prefere como candidato à presidência mesmo que apenas por alguns dias…

Não foi primeira vez que o Judiciário torceu ritos e prazos para condenar Lula antes das eleições de 2018. Depois de ser condenado por Moro com base na “colaboração informal” de um réu confesso que não apresentou provas materiais, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Carlos Eduardo Thompson Flores, afirmou que a sentença de Moro era “irrepreensível” e “irretocável”, mesmo admitindo não a ter lido, enquanto o caso de Lula era colocado na frente de 257 processos na fila do tribunal.

 O relator do caso levou seis dias para avaliar um caso de milhares de páginas e centenas de horas de testemunhos gravados. A corte chegou à decisão em 196 dias, quando toma em média 473 dias para casos semelhantes.

Também ordenou a prisão imediata de Lula: apenas três dos 20 réus condenados em segunda instância na Lava Jato foram aprisionados, e meses depois do julgamento.

Depois de se negar a Lula o habeas corpus no STF, o mesmo Thompson Flores afirmou que o respeito dos ritos judiciais levaria à prisão de Lula em “não menos que um mês”, apenas para assistir calado à ordem de prisão no mesmo dia, emitida por Moro 19 minutos depois da publicação da decisão do STF.

Moro admitiu que Lula tinha o direito legal a apelar, mas se colocou acima da lei ao afirmar que isto era uma “patologia protelatória” que deveria ser “eliminada do mundo jurídico”. Onde estava Barroso para nos defender dos casuísmos contra a ordem legal universal?

Dada a tendência do Poder Judiciário de desrespeitar ritos e prazos legais, mudar a jurisprudência e quase mesmo a própria lei para tratar de modo desigual o cidadão Lula, cabe a pergunta: quais são os compadres do ministro Barroso?

Não sei dizer. Será que estão entre os favorecidos pela mudança na jurisprudência que autorizou a terceirização de atividades-fim, e que tinham acesso privilegiado ao Conselhão ad hoc criado pela ex-presidente do STF Cármen Lúcia para discutir a reforma trabalhista, mas apenas com os donos do PIB?

Os mesmos que financiaram e/ou apoiaram a reação “legítima”, autorizada pelo STF, da verdadeira oligarquia política contra uma presidenta honrada comprometida com o combate à corrupção?

Estariam na própria oligarquia judiciária que recentemente se concedeu aumentos salariais para “compensar” eventual perda de auxílios ilegais em um dos judiciários mais caros do mundo?

Entre juízes cujos proventos mensais às vezes superam o custo de manutenção anual do finado Museu Nacional?

Estariam talvez os compadres dentro deste estamento judicial-burocrático que parece ter medo da “reação oligárquica” que poderia ser liderada por Lula contra o “ativismo judicial” e contra os privilégios a altos funcionários não eleitos, mas que fazem política abertamente?

Não surpreende que a maior parte da população considere que Lula é perseguido pelo Judiciário e pelos poderosos.

Não surpreende que caia a confiança no Judiciário, mas se mantenha ou aumente a confiança nos militares e em Lula.

Imagine se Lula pudesse falar mais em plena época eleitoral. O que o povo poderia pensar? Talvez por isso o Judiciário, liderado por Barroso na interpretação do “sentimento da cidadania”, precise fechar com pressa o ouvido do povo.

Depois de cometer arbitrariedades que levaram à perda da anunciada batalha pela opinião pública, precisam afirmar proteger o povo, mas de si mesmo.

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