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Lembrar é resistir

Sem memória, o horror pode repetir-se, alerta o juiz que condenou a União pela morte de Vladimir Herzog

Lembrar é resistir
Lembrar é resistir
Orgulho. “O Estado não cumpriu a decisão”, diz Moraes. Ele ainda conserva a Olivetti em que datilografou a sentença e guarda recortes de jornais da época – Imagem: Luca Meola/CartaCapital
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“Foi com ela que datilografei a sentença”, conta o juiz aposentado Márcio José de Moraes, ao mostrar sua inseparável máquina de escrever. Recém-formado em Direito pela USP, ele ganhou a Olivetti Lettera azul de presente da mãe, no início dos anos 1970. Naquele momento, não pensava em seguir a magistratura, tampouco imaginava que aquelas teclas registrariam um dos documentos jurídicos mais importantes da história do País. Levava uma vida agitada como advogado de bancos e, embora seu irmão mais novo, estudante de História, o alertasse sobre os horrores nas masmorras da ditadura, não dava muita atenção. “Parecia exagero que o Estado mantivesse opositores presos arbitrariamente”, recorda. “Foi ao ler nos jornais sobre a morte de Vladimir ­Herzog que meus olhos se abriram.”

Vlado – seu nome verdadeiro, o “Vladimir” foi adotado no Brasil – foi assassinado nas dependências do DOI–Codi paulista em 25 de outubro de 1975. O regime militar divulgou a versão de que o então diretor da TV Cultura teria se enforcado em uma cela, com o cinto do macacão que vestia, mas ninguém acreditou nessa farsa. Familiares e amigos sabiam que o jornalista jamais tiraria a própria vida. A roupa, por sinal, nem sequer possuía esse acessório, e um dos protocolos da época era justamente retirar os cadarços dos sapatos dos presos para evitar enforcamentos. Além disso, Herzog havia se apresentado voluntariamente na delegacia da Rua Tutóia, em São Paulo, no dia anterior, após receber intimação para depor sobre sua militância no Partido Comunista Brasileiro. Apesar do vínculo com o “Partidão”, rejeitava táticas radicais de resistência, como a luta armada, preferindo atuar na área cultural, especialmente em projetos teatrais.

A reação da sociedade civil foi imediata. Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista, e o reverendo Jaime Wright, da Igreja Presbiteriana, convocaram um ato ecumênico em homenagem a Herzog na Catedral da Sé, que reuniu milhares de manifestantes e teve ampla repercussão internacional. “Esse acontecimento mudou minha percepção sobre o regime militar de tal forma que fiz questão de comparecer ao ato”, recorda Moraes.

Há 50 anos, o jornalista foi assassinado nas dependências do DOI–Codi de São Paulo

Três anos depois, coube ao jovem juiz julgar a ação movida pela família de ­Herzog contra o Estado brasileiro, ainda sob a vigência do AI–5, que instituiu a censura e suspendeu direitos e garantias indivi­duais. Graças ao processo, os advogados finalmente tiveram acesso ao laudo necroscópico de Vlado, ao qual foi anexada uma foto da cena forjada, na qual o prisioneiro aparece pendurado pelo pescoço, mas com os joelhos dobrados e os pés tocando o chão – posição incompatível com o enforcamento. O legista Harry Shibata confessou ter assinado o laudo sem examinar ou sequer ver o corpo. Em 27 de outubro de 1978, apenas dois anos após ingressar na magistratura, Moraes expediu a sentença que responsabilizou a União pelo crime. “Há revelações veementes de que teriam sido praticadas torturas não só em Vladimir Herzog, como também em outros presos políticos nas dependências do DOI–Codi”, escreveu, em sua Olivetti.

Por mais de 30 anos, Moraes recusou pedidos de entrevistas para comentar o caso. “Queria que a sentença falasse por mim”, justifica. Numa tarde ensolarada, recebeu a reportagem de ­CartaCapital em sua casa, em São José dos Campos (SP), para contar, em detalhes, a história. Longe do dress code do ambiente jurídico, de jeans e tênis All Star, apresentou sua biblioteca, onde a Olivetti azul ocupa lugar de destaque, ao lado de recortes de jornais emoldurados que noticiaram o caso na época. “A repercussão na imprensa foi muito importante para ecoar a gravidade dos acontecimentos.”

Aos 29 anos, casado e pai de duas meninas – uma de 2 e outra de 4 anos –, M­oraes sabia que a sentença incomodaria os militares e o risco era alto. Colegas da magistratura e parlamentares o aconselharam a esperar o ditador Ernesto ­Geisel revogar o AI–5, o que só ocorreria em 31 de ­dezembro daquele ano. “Sem o decreto, haveria menos chance de represálias”, lembra. “Havia um constrangimento e um silêncio mesmo entre nós, juízes.”

Terror. Dom Paulo Evaristo Arns marcou presença no velório de Vlado (ao lado). Elvira Alegre foi a única fotojornalista a registrar o momento. “Tremia de medo”, diz – Imagem: Elvira Alegre/Acervo Instituto Vladimir Herzog

Mesmo ciente do perigo, decidiu acelerar o trabalho e chegou a tirar férias para dedicar-se ao processo com exclusividade. A esposa, hoje falecida, deu todo o suporte para que ele passasse “um mês fechado no escritório”. Pouco tempo depois, a condenação da União no caso Herzog transitou em julgado, sem possibilidade de recurso. A Procuradoria da Justiça Militar deveria investigar os responsáveis pela morte do jornalista, mas isso jamais aconteceu. “O Estado nunca cumpriu essa decisão.”

Segundo Ivo Herzog, filho do jornalista e presidente do conselho do Instituto Vladimir Herzog, a sentença abriu caminho para a sociedade compreender “que a democracia só se sustenta quando há memória e justiça”. Ele acrescenta: “A decisão foi como um raio de verdade em meio à escuridão, um reconhecimento de que o Estado também pode cometer crimes e deve responder por eles”. Moraes, por sua vez, ressalta a coragem da viúva, Clarice, que acionou a Justiça “mesmo naquelas circunstâncias”.

O magistrado afirma que a decisão teve repercussões em sua carreira, “nem todas positivas”. Mesmo assim, com a abertura democrática, tornou-se desembargador federal e chegou à presidência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, entre 2001 e 2003. Após se aposentar, há dez anos, passou a dedicar-se à psicanálise, profissão que exerce até hoje, aos 80 anos.

“A decisão de Moraes foi como um raio de verdade em meio à escuridão”, resume o filho Ivo Herzog

Moraes acredita que revisitar esse episódio não é apenas voltar ao passado. “É um tema que trago com frequência às aulas, porque precisamos conhecer para evitar que tudo isso volte a acontecer.” Ao contrário de outros países da América Latina, que julgaram e puniram os algozes das ditaduras, no Brasil prevaleceu a impunidade. Ainda assim, ele vê um elo entre as histórias. “Na Argentina, foram as Mães da Praça de Maio que tomaram as ruas. Aqui, foram mulheres como Clarice Herzog e Eunice Paiva que romperam o silêncio e moveram a Justiça.”. Por um instante, seus olhos se enchem de lágrimas, e ele fez uma breve pausa, antes de concluir: “Quero acreditar que essa resistência foi, sobretudo, feminina, com uma coragem que supera a dos homens, que tantas vezes se limitam às palavras”.

Única repórter fotográfica a registrar o velório de Herzog, Elvira Alegre esperou dez anos para ver as imagens publicadas. Pouco antes de agentes da ditadura invadirem a redação do Ex-, jornal em que trabalhava, ela conseguiu resgatar os negativos. “Algumas fotos saíram tremidas porque eu realmente estava tremendo de medo”, confidencia. Ex-preso político, Ivan Seixas lembra-se de um carcereiro que se aproximou para comentar “a morte do jornalista”, que repercutia na imprensa. “Eu não tinha acesso a nada, não sabia do que ele estava falando.” Quando soube que a vítima era um diretor da TV Cultura, sem envolvimento com a luta armada, ele e os colegas de cela entraram em pânico. “Concluí­mos que iriam exterminar todo mundo.”

Seixas é um dos fundadores do Núcleo de Memória Política, que lutou ­pelo tombamento da antiga sede do DOI–­Codi ­paulista. O diretor-executivo da ONG, Maurice Politi, outro ex-preso político, explica que o objetivo é transformar o edifício em um espaço de memória. O projeto esbarra, porém, na falta de vontade política. Em 2021, o governador Tarcísio de Freitas deixou claro que não tinha interesse de construir de um museu ali. “Hoje, o Memorial da Resistência, onde funcionou o DOPS, recebe, em média, 200 visitas por dia. Já o prédio onde Vlado e tantos outros que resistiram à ditadura tombaram está caindo aos pedaços.” •

Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Lembrar é resistir’

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