Política

Lei antiterror dos bolsonaristas é feita sob medida para aterrorizar rivais e inibir protestos

A ameaça para movimentos como os sem-terra e os sem-teto é que a engrenagem não seria usada só para ‘prevenir e reprimir’ atos terroristas

Protesto do MTST na Bolsa de Valores, em São Paulo, em setembro de 2020. Foto: Divulgação/MTST
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O sábado 2 de outubro era dia de protestos em todo o País contra Jair Bolsonaro, convocados pela oposição após o 7 de Setembro golpista do presidente. Uma semana antes, Lula havia encontrado, em São Paulo, lideranças negras, quilombolas, LGBTs, femininas, do rap e do samba e incentivado a presença nas manifestações. O PSDB do governador João Doria Jr. topara juntar-se à organização dos atos. O pedetista Ciro Gomes dividiria o palanque com desafetos petistas na Avenida Paulista. Os partidos e os movimentos sociais em geral, como as centrais sindicais, queriam levar mais gente às ruas do que o ex-capitão. Até verba do fundo partidário foi usada para financiar os protestos, os quais terão repeteco em 15 de novembro, provavelmente maior.

Se o “Fora Bolsonaro” incendiar o País e houver algum tipo de distúrbio nas mobilizações, o presidente e seus aliados partirão para a repressão linha-dura? “Eles estacionaram uma lei para usar caso haja manifestações caudalosas contra o governo, vão usá-la para dar uma resposta, se virmos grandes atos como no Chile (convulsionado em outubro de 2019) e nos Estados Unidos (após o assassinato do negro George Floyd, em maio de 2020)”, afirma o deputado Paulo Teixeira, do PT paulista. “Eu não sei se os partidos de ‘centro’ perceberam o perigo.”

O perigo, já apontado pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, é uma nova Lei Antiterrorismo, aprovada em 16 de setembro em uma comissão especial de deputados e, agora, à espera de uma decisão no plenário da Câmara, a depender do presidente da Casa, o governista Arthur Lira, do PP de Alagoas. O texto é tão vago, que permite aplicar a lei contra a oposição e movimentos sociais. Um risco identificado não apenas por personalidades e entidades que a ultradireita bolsonarista chamaria de “comunistas”. “O projeto é vago e pode ser utilizado, sim, politicamente, pelo governo da vez”, disse Edvandir Paiva, presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, em uma audiência pública na comissão especial em 27 de agosto. Essa associação e mais nove entidades representantes de policiais estão contra a nova lei.

O projeto é do deputado Vitor Hugo, do PSL de Goiás, um major do Exército. Surgiu em março de 2019, quando o parlamentar era líder do governo Bolsonaro. Ficou parado na gestão de Rodrigo Maia à frente da Câmara e andou com Lira, que criou a comissão especial. Hugo ressuscitou uma ideia que o então deputado Jair Bolsonaro, de quem era assessor, havia apresentado em julho de 2016. Após três meses de trabalhos da comissão, da qual Teixeira fazia parte, coube ao deputado Sanderson, policial federal eleito pelo PSL gaúcho, dar a cara final à lei, aprovada por 22 votos a 7. Nos bastidores, há quem diga que o placar resultou de certo desinteresse da bancada progressista na comissão, como a do PSB. Outra explicação: o domínio da bancada da bala. Cinco dos integrantes têm as palavras “major” (dois), “capitão”, “policial” e “delegado” no nome oficial de deputado.

O texto votado na noite de 16 de setembro define regras de combate e prevenção ao terrorismo. Cria uma Autoridade Nacional Contraterrorista, a ANC, cujo chefe seria nomeado pelo presidente. Esse órgão seria formado por membros das Forças Armadas, das PMs e da Agência Brasileira de Inteligência, entre outros. O agente contraterrorista poderia usar RG falso, infiltrar-se em organizações investigadas, acessar toda a comunicação dos suspeitos, plantar escutas ambientais e armar flagrantes, tudo sem autorização judicial. Contaria ainda com uma licença para matar em serviço, por “legítima defesa”, em situações de risco à vida de alguém.

A ameaça para movimentos sociais, como os sem-terra e os sem-teto, é que essa engrenagem não seria usada apenas para “prevenir e reprimir” atos terroristas descritos como tais em uma lei de 2016. Poderia ser empregada, também, contra “atos que, embora não tipificados como crimes de terrorismo, sejam ofensivos para a vida humana ou efetivamente destrutivos em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave”.

Eis a ambiguidade capaz de deixar um agente da ANC livre para encarar protesto social e político como “terrorismo”.

Esse pepino, segundo declarou na comissão especial em 2 de setembro a presidente da Associação Brasileira de Magistrados, Renata Gil de Alcântara Videira, vai estourar no colo do Judiciário. Ela disse mais: a lei não pode dar autorização prévia, sem aval judicial, para acessar as comunicações dos cidadãos, nem fixar em seis horas o prazo para um togado ordenar a localização de uma pessoa a partir do celular dela. Em 2016, a Supremo Corte da Alemanha suspendeu grande parte de uma lei antiterrorista de 2009 que possuía dispositivos tão invasivos quanto esses em gestação por aqui.

“Instituições de força, como as Forças Armadas e as PMs, precisam agir sob especificação clara, o uso da força exige controles cerrados, crime violento não pode ter conceito elástico”, afirma o coronel reformado da PM paulista José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Para ele, em apenas duas circunstâncias é aceitável usar a força estatal: quando há explosivos (ataque a banco com bombas, por exemplo) e armas de guerra (traficantes com fuzis). “Essa lei é imprestável, não pode ser vaga a ponto de trabalhar com fatos correlatos a terrorismo.” E acrescenta: liberar “legítima defesa” nos termos do projeto abre a porteira para novas chacinas como a de maio deste ano na Favela do Jacarezinho, no Rio. Recorde-se: a polícia fluminense fez uma operação na comunidade e matou 28 pessoas alegadamente por “legítima defesa”.

A descrição do que é terrorismo e as punições para quem o pratica (de 12 a 30 anos de cana) estão definidas na Lei 13.260, de 2016. Essa legislação nasceu no crepúsculo do governo Dilma Rousseff, em razão dos Jogos Olímpicos do Rio, disputados em agosto daquele ano. Com base nela, a Polícia Federal prendeu, às vésperas da Olimpíada, 11 suspeitos de pertencerem a uma célula do Estado Islâmico e de planejarem cometer atentados durante a competição. Dos capturados na Operação Hashtag, oito foram condenados pela Justiça Federal no Paraná em 2017. O indivíduo denunciado como chefe do grupo, Leonid El Kadre de Melo, hoje com 36 anos, pegou a maior pena, 15 anos, e a cumpre no presídio de segurança máxima de Campo Grande. A propósito, em 2 de setembro, a PF deteve, em Maringá, na Operação Trastejo, outro suposto radical islâmico suspeito de planejar atos terroristas por aqui.

Os movimentos sociais protestaram na época da lei de 2016, especialmente os sem-terra, por anteverem que sobraria para eles. A norma tinha, porém, um artigo que tentava acalmá-los. Diz que a lei “não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios”. Na comissão especial de agora, a linha-dura falava em “consertar” a legisação de 2016. O autor do projeto reclamava da isenção dada a movimentos sociais. Ao explicar, por escrito, em 2019, por que propusera o projeto, Vitor Hugo citou um artigo dele próprio, no qual defendia “discutir, com seriedade, os limites entre ações legítimas e democráticas de movimentos sociais e os crimes cometidos por suas alas radicais, muitos dos quais extremamente próximos conceitualmente do que seria o terrorismo”.

“Esse projeto mostra que foi um erro do nosso governo ter aceitado votar a lei antiterrorismo de 2016. Abriram a porteira e agora entram com uma jamanta”, anota José Genoino, ex-presidente do PT. “Esse problema de terrorismo não existe no Brasil. Tudo o que acompanhamos nos Estados Unidos e no Oriente Médio, de combate ao terrorismo com lei específica, não tem dado certo. O problema mais grave aqui nem é a lei em si, é criar uma espécie de DOI-Codi, um superpoder paralelo ligado ao presidente.” O DOI-Codi foi um órgão de inteligência e repressão da ditadura militar (1964-1985). Seu sucessor redivivo, na visão de Genoino, seria a Autoridade Nacional Contraterrorista.

A criação de “um sistema paralelo de vigilância e repressão comandado pelo presidente”, capaz de “provocar uma sistemática violação da privacidade da população e colocar em risco os opositores do governo”, foi um dos argumentos usados contra o projeto em uma denúncia levada em 27 de setembro ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça, por entidades brasileiras do ramo, como a ONG Conectas. Elas sustentam que a lei a caminho contém “graves riscos de abuso” contra ativistas e defensores dos direitos humanos. Para Camila Asano, da Conectas, se o projeto virar lei, o Brasil ficará com a imagem internacional ainda pior e entrará para o rol de nações que causam arrepios, quando o assunto é liberdade de ação da sociedade civil.

A Turquia é um caso de legislação antiterrorista utilizada pelo governo de Recep Erdogan contra a oposição. Em 2016, durante uma crise de imigração de árabes e africanos para a Europa, o então primeiro-ministro Ahmet Davutoglu negociou com a União Europeia um acordo que, entre outras coisas, levaria à revogação da lei turca. Davutoglu caiu, Erdogan e a lei ficaram. No ano anterior, durante uma crise parecida, o presidente da Hungria, Viktor Orbán, de extrema-direita, misturou migração (problema inexistente no país, menos de 2% da população de lá é estrangeira) e terrorismo em uma consulta popular, para melhorar o ibope. No Chile, uma lei antiterrorista de 1984, da era Pinochet, já foi usada contra os povos indígenas mapuche, que reivindicavam o reconhecimento de suas terras e haviam promovido incêndios em 2001 e 2002.

A chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, está de olho na lei dos sonhos do bolsonarismo. Ao abrir a 48a sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 13 de setembro, declarou estar “preocupada com o novo projeto de legislação antiterrorismo no Brasil”. Seu escritório acompanha o assunto desde abril. Na época, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, o petista Carlos Veras, pedira a opinião do Conselho sobre a proposta.

A resposta chegou em 25 de maio. Dizia que, dado o histórico internacional, inclusive teórico, quanto mais exatidão ao caracterizar o que seria terrorismo, melhor, ainda que inexista um tratado internacional sobre o tema, em razão justamente da falta de consenso descritivo. O documento apontava ainda uns senões espefíficos, como a licença para matar manifestantes e a equiparação entre a atuação de movimentos sociais e o terrorismo. E tascava tratar-se de um projeto ilustrativo da “velha tendência dos Estados a recorrer ao conceito de ‘terrorismo’ para desacreditar movimentos políticos, éticos, regionais ou de outro tipo que simplesmente não gostam”.

Os argumentos foram repetidos pelo chefe do escritório sul-americano do alto comissariado, o tcheco Jan Jarab, em uma audiência pública na comissão especial da Câmara em 26 de agosto. E, também, em uma carta confidencial de sete relatores especiais das Nações Unidas, enviada em 15 de junho ao governo brasileiro, na qual as autoridades daqui eram cobradas a dar explicações sobre os objetivos do projeto e a não deixá-lo avançar. A reação brasileira foi dizer que as alegações eram precipitadas, que não haveria violação dos direitos básicos da maioria da população e que era necessário se engajar em uma suposta tendência internacional de criminalizar a “mensagem do terror”.

Terror é o Brasil de Bolsonaro e seus 20%, 25% de fanáticos, tão doentes quanto ele mesmo.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1177 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE SETEMBRO DE 2021.

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