Política

Legado consistente e sucesso na internet: os 92 anos de Maria da Conceição Tavares

Ex-deputada e militante aguerrida da esquerda, a economista é lembrada pela postura combativa e as obras questionadoras sobre o capitalismo brasileiro

A economista Maria da Conceição Tavares, em vídeo de manifestação contra o golpe de 2016. Foto: Reprodução
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O aniversário de Maria da Conceição Tavares, que completou 92 anos no último domingo 24, está espremido entre outras duas datas comemorativas caras a ela. Na véspera, o Dia de São Jorge, padroeiro de sua casa, e no dia posterior, a explosão da Revolução dos Cravos, de 1974, símbolo do fim da ditadura salazarista em Portugal.

Dez anos antes, a canção descrita como hino da revolução portuguesa, Grândola, Vila Morena, embalou sua festa de 80 anos. De vestido cor de esmeralda e pedras brilhantes, Tavares levantava os braços com os punhos fechados e bradava um “viva” para 25 de abril. No mesmo evento, posou com Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), rivais na eleição daquele ano. Ao fundo, alguém gritava: Viva a democracia!

As cenas aqui citadas aparecem no documentário Livre Pensar (2019), do cineasta José Mariani, que reuniu fotos, vídeos, arquivos e depoimentos para contar a biografia de Tavares, uma das mais destacadas economistas e ativistas da esquerda brasileira. 

Maria da Conceição Tavares, entre os adversários José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT), em 2010. Foto: Reprodução/Documentário ‘Livre Pensar’/TamanduáTV

Hoje, Tavares leva uma vida reservada com familiares na cidade de Nova Friburgo, na região serrana fluminense. Paradoxalmente, a sua presença se espalhou de forma viral nas redes sociais, sobretudo no ano passado, a partir de fragmentos de gravações de suas aulas, disponibilizadas no canal do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas no YouTube, e da célebre entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995, quando era deputada federal pelo PT.

Uma conta no Twitter chamada “Acervo Maria da Conceição Tavares” tinha quase 50 mil seguidores até o fechamento desta reportagem. Num vídeo de 11 mil curtidas, ela aparece de cigarro entre os dedos, em uma sala de aula da Unicamp, explicando aos alunos que o processo de industrialização ocorreu de forma autoritária ou selvagem na maioria dos casos internacionais. Dizia ela que o seu curso era dado para desfazer a “praga” da doutrina liberal, segundo a qual o mercado e a democracia caminhariam juntos.

Parceiro de Tavares em diversos textos, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, conselheiro editorial e colunista de CartaCapital, lembra-se do comportamento “sem cerimônia” da economista, mesmo diante de grandes autoridades. Como quando foram conversar com Tancredo Neves no Maksoud Plaza, em São Paulo, sobre as intenções do novo governo para a economia, e ela fez questão de se sentar na cadeira mais à frente.

Belluzzo diz suspeitar, no entanto, de que a recente viralização na internet expressa algum desconhecimento sobre a obra de Tavares. Teme que os seus novos fãs se apeguem mais ao aspecto cênico das manifestações da pensadora – assim como aconteceu com Chico Anysio, que criou uma personagem para satirizá-la em A Escolinha do Professor Raimundo.

Seria bom que a “febre” estimulasse a leitura do que ela escreveu, diz Belluzzo, já que sua obra ainda é muito aplicável aos tempos atuais. Em suas palavras, a marca da obra dela era articular as questões estruturais da conformação da economia capitalista brasileira com as questões conjunturais.

“Hoje, há um predomínio da visão mecanicista e bastante pobre da economia. Certamente, o pensamento de Conceição era muito avançado sobre a dinâmica da estrutura e a necessidade de executar políticas ativas de Estado”, avalia. “Por trás de sua exuberância, existe uma força intelectual muito grande.”

A entrada na política

Maria da Conceição Tavares passou a infância em Lisboa, em uma casa que recebia refugiados da guerra civil espanhola. Estudou Matemática na Universidade de Lisboa e se casou durante o curso. Grávida de sua filha Laura (anos depois, teria Bruno), chegou ao Rio de Janeiro em 1954, em plena era JK.

O clima de nacionalismo – embalado pela literatura, a música e as promessas de desenvolvimento urbano – a inspirou profundamente. “Acreditei que o Brasil iria ser uma democracia e uma civilização original dos trópicos. Eu realmente acreditei.”

Sem ter o diploma de Lisboa reconhecido no Brasil, ela iniciou os seus estudos em economia na instituição que hoje é a Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1957, quando obteve a cidadania brasileira. Nesse tempo, chegou a trabalhar para o Incra e, posteriormente, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, hoje o BNDES. Também colaborou com o governo Kubistchek num conselho para políticas econômicas.

Tavares se interessou por economia porque ficou estarrecida com as estatísticas da miséria e concentração de terras no Brasil, diz Hildete Pereira de Melo, professora de Economia da Universidade Federal Fluminense e vizinha de longa data de Conceição, como prefere chamá-la.

Conceição e Hildete se conheceram pessoalmente na efervescência dos protestos contra a ditadura, época em que economistas povoaram organizações políticas. As duas compuseram o MDB, representado naquele período por Ulysses Guimarães, figura central para o processo de redemocratização.

Rejeitada nos debates majoritariamente masculinos, Conceição arrombou portas o tempo inteiro, conta Hildete. Muitas vezes a única mulher em diferentes grupos, tratou de se enfileirar no movimento feminista.

A produção acadêmica e a postura contundente deram à economista um papel relevante na defesa do Plano Cruzado, lançado no governo de José Sarney, em 1986. Era um tempo em que a economista já passava a ser vista na televisão, sobretudo por conta de uma famosa aparição na TV Globo.

A passagem de Conceição no MDB se findou com o enfraquecimento de Ulysses Guimarães no partido, vide o baixo índice de eleitores do ex-deputado na disputa presidencial de 1989 e seu consequente falecimento em 1992. Enquanto Hildete tinha ido para o PSDB, Conceição se filiaria, anos depois, ao PT, disputando cadeira na Câmara dos Deputados em 1994. Hildete, ao ver o conservadorismo tomar conta do tucanato, acabou se encaminhando para a coordenação da campanha da amiga petista.

Maria da Conceição Tavares, em discussão acalorada no programa ‘Roda Viva’, da TV Cultura. Foto: Reprodução

O tino para o debate

Segundo Hildete, Conceição não tinha medo de provocar furores – até mesmo na esquerda. Ao documentário Livre Pensar, o ex-ministro Aloizio Mercadante relembrou um caso que corrobora essa impressão.

Uma vez, em São Paulo, em meio a uma discussão política acalorada entre Conceição, Mercadante e outros dois economistas, o grupo resolveu aliviar o clima indo ao cinema. Na fila da sessão, ela teria se recusado a assistir ao “americanismo chapado” dos Embalos de Sábado à Noite (1977) e levado os amigos a optarem por um bar frequentado pela esquerda, arena das boas para outro embate. Noite adentro, Conceição teria dado uma bronca com alguém que levantara defesa ao socialismo: “Socialismo? Essa esquerda festiva não consegue nem distribuir leite nessa cidade”.

Conceição sempre pontuou aos alunos que eles deviam fazer menos movimento estudantil e estudar mais, diz Gloria Moraes, que cursou as suas aulas de Desenvolvimento Econômico na Unicamp e hoje é professora de Economia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

A economista Gloria Moraes, ex-aluna de Conceição nos anos 70, conta que chegou a bater de frente com ela por conta da apresentação de um trabalho. Conceição tinha achado o trabalho muito ruim e decidiu interromper a apresentação da aluna pela metade. Gloria, espevitada como a professora e engajadíssima na militância universitária, não arredou o pé e afirmou que prosseguiria até o fim. Ironicamente, parece que elas se gostaram ali – embora Conceição não tenha deixado “pedra sobre pedra” no julgamento final sobre o trabalho.

A campanha eleitoral

Anos depois, Gloria passaria a compor o núcleo de economistas do PT no Rio de Janeiro e, a pedido de Mercadante, participaria da campanha de Conceição para deputada federal.

Conceição fez uma campanha com poucos recursos, à base de um livro de ouro de alunos e professores. Circulava o Rio de Janeiro no carro da irmã de Gloria, enfeitado com uma boneca vestida de blusa de seda e cigarro na mão, para cumprir uma agenda de palestras em universidades, sindicatos e bares.

Sua grande questão era a inflação e as privatizações, processos que vinham com neoliberalização da política brasileira, explica Gloria. O programa vinha na esteira de um pensamento já trabalhado havia anos por Conceição até chegar à publicação do livro Poder e dinheiro – uma economia política da globalização (1997), obra citada por Gloria como uma referência.

“Quando todos pensavam que os Estados Unidos viviam um declínio, Conceição mostrava um processo de retomada da hegemonia americana, pelo poder do dólar e das armas”, observa a professora. “O neoliberalismo chegava sem as pessoas se darem conta. Nós mesmos, economistas, deixávamos passar coisas sem entender muito bem o que estava acontecendo.”

Conceição gostava de ser a professora da bancada petista, dizem Hildete e Gloria. Não era muito chegada às negociações da articulação política. Chegava a demonstrar desinteresse nos cargos que despertavam apetite em muitos colegas, como a chefia de um ministério. Queria mesmo era investigar os bastidores da política econômica nos porões do Banco Central.

A passagem pelo Congresso se encerrou depois de apenas um mandato. O site da Câmara não informa nenhum projeto de sua autoria aprovado. “Eram históricas as discussões feitas naquele mandato, mas ela não estava treinada para a negociação”, diz Hildete.

Ao longo do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Conceição chegou a fazer colaborações presencialmente em Brasília. De acordo com as opiniões colhidas pela reportagem, a impressão da professora sobre a política econômica petista foi a de que “do ponto de vista do possível, avançamos muito”.

Maria da Conceição Tavares recebeu o prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia, em cerimônia com o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), e a presidente da República, Dilma Rousseff (PT), em 2012. Foto: Jane de Araújo/Agência Senado

A marca sobre o pensamento estruturalista

Fernando Nogueira da Costa, professor de Economia da Unicamp e ex-aluno de Conceição, define a abordagem da economista como estruturalista, pensamento ligado à Cepal e ao economista Celso Furtado, que demanda, em palavras simples, reformas na estrutura da economia para o desenvolvimento com a intervenção do Estado. Isso explica por que, em 2005, ela se juntaria a outros economistas para fundar o Centro Celso Furtado, com o ideal de instituir uma espécie de think tank para propor ao PT iniciativas em prol do desenvolvimento brasileiro.

Vice-presidente da Caixa Econômica Federal no governo Lula, Nogueira da Costa escreveu um livro dedicado a Conceição, A professora – atualidade do pensamento de Maria da Conceição Tavares, que CartaCapital teve acesso. Ambos foram colegas de mestrado em 1974, na Unicamp, quando ela havia voltado do Chile, depois de um período de fuga do AI-5 da ditadura brasileira.

Apesar de se considerar de uma corrente um pouco diferente à de Conceição – ela, “nacional-desenvolvimentista”, ele, “social-desenvolvimentista” – Nogueira da Costa diz ter levado para a vida os ensinamentos da professora, muito úteis nos momentos de enfrentamento no debate público.

“Todos os dias que dou aula, há alguma situação em que vejo um ensinamento dela. Um deles eu repito muito: nunca diga nada sobre a economia brasileira sem evidências empíricas, porque se não vão te acusar de ideologia”, diz. “E, até hoje, sempre coloco dados e estatísticas, comprovo tudo o que falo. Aprendi com ela.”

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