Política

Juízo de exceção na democracia

O julgamento do “mensalão” seria um exemplo dessa anomalia?

Atualidade. Não se engane, esta ilustração de Daumier data do século XIX
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Em Honduras, o presidente Manoel Zelaya foi deposto por uma decisão do Parlamento, onde não lhe foi oferecido qualquer direito de defesa, e por uma ordem liminar da Corte Suprema daquele país que determinou sua prisão sem prévia oitiva.

Tal ordem judicial poderia até ser aceita como compatível com a Constituição não fosse o presidente preso pelas Forças Armadas e não pela força de segurança pública, como ordenado pela Carta Magna hondurenha, e não tivesse sido expulso do país, em flagrante desrespeito a dispositivo específico da referida Constituição que impede a expulsão de cidadão hondurenho. A nulidade da ordem judicial só foi reconhecida pela Corte Suprema após o término do que deveria ter sido seu mandato.

No Paraguai, o desrespeito cometido pela sala constitucional da Corte Suprema de Justiça à Carta Magna foi ainda mais grosseiro. A Corte negou vigência ao artigo 17 da Constituição, que garante defesa “no processo penal, ou em qualquer outro que possa derivar pena ou sanção”. Obviamente, a cassação de mandato eletivo é uma sanção grave, mesmo se realizada em processo político. É bizarro juridicamente imaginar como adequado ao Estado de Direito a realização de um processo político de impedimento sem direito a ampla defesa, como ocorreu no caso de Fernando Lugo.

Tais casos evidenciam um fenômeno político e jurídico, ou, como disse Fontana, na “franja ambígua e incerta, na intersecção entre o jurídico e o político”, bastante incomum. A jurisdição torna-se fonte da exceção e não do Direito.

Como bem observou Giorgio Agamben, a exceção não se localiza na contemporaneidade apenas no âmbito da crise política ou na situação excepcional e temporária imaginada por Karl Schimitt, em que surge o estado de necessidade estatal como razão para a submissão do direito ao poder soberano do governo. Ela ocorre também no interior da rotina de nossas sociedades democráticas, como espaço de soberania absolutista, suspensivo do direito e dos direitos.

Os exemplos são vários e em quase todas as sociedades democráticas ocidentais: a prisão de Guantánamo e o “Patriot Act” nos EUA, o trato não humano destinado a estrangeiros em países europeus, as façanhas do Bope e o excesso de medidas provisórias no Brasil.

Agamben aponta a falta de uma teoria da exceção no Direito público, talvez porque grande parte dos juristas a considerem mais uma questão própria do território da política do que um verdadeiro problema jurídico.

De qualquer forma, quando se passa a vislumbrar o Judiciário de países de constituições democráticas como fonte da exceção, não há como não pensar o tema no âmbito do Direito, pois tais decisões repousam em fundamentações pretensamente jurídicas que servem de roupagem fraudulenta à decisão soberana absolutista. Essa crítica e denúncia da fraude é dever ético do operador do Direito, pois ele é quem tem o instrumental técnico apropriado para evidenciar o embuste. É seu ônus social, deontologia de sua profissão.

Sem pretensão de esgotar ou sequer ensaiar de forma científica o tema num texto jornalístico, creio que de plano, entendida a exceção como decisão ocorrente na rotina democrática ou mesmo como técnica ocasional de exercício do poder político no interior da democracia, podemos verificar duas categorias de exceção nos Estados contemporâneos, inclusive no Brasil.

Há um tipo de exceção meramente aparente, estabelecida de forma autorizada e regulada pelo Direito. Neste caso, a suspensão de direitos se concretiza em uma forma de “direito especial”, próprio a ser aplicado em situações de guerra ou grave conflito interno, como é o estado de necessidade alemão, os decretos de urgência e Estado de sítio italianos e franceses, as leis marciais e poderes de emergência da doutrina anglo-saxônica e o estado de defesa e o estado de sitio dos artigos 136 a 141 de nossa Constituição.

E há o segundo tipo, a exceção verdadeira ou real, em que por vontade política soberana, decisionista, há a suspensão do Direito, implicando a submissão do jurídico ao politico, sem qualquer racionalidade transversal entre essas dimensões da vida social.

A lógica do lícito-ilícito, própria do Direito, é superada pela lógica do poder própria da política, mesmo dentro de um tribunal. Neste caso, na jurisdição, o poder político da toga supera faticamente a força da lei.

Tal nefasto tipo de exceção se caracteriza pela simplificação da decisão a si mesma, sem qualquer mediação real pelo direito, por uma provisoriedade inerente, pois não trata de extinguir o direito, mas de suspendê-lo em situações específicas, por seu fim eminentemente político-soberano, em que o poder se apresenta de forma bruta e, por consequência, por sua não autolimitação, nem mesmo por qualquer regra de coerência ou racionalidade. Nesse último aspecto, a decisão judicial de real exceção não produz “jurisprudência” para situações semelhantes juridicamente, mas diferentes politicamente. Mudando-se os atores envolvidos ou o fim político, muda-se a decisão, retornando-se ao Direito ou produzindo nova exceção.

Em nossa conjuntura, a questão é clara: o caso do “mensalão” trata-se de exceção real ou de mera mudança ocasional em postulados jurisprudenciais da Corte?

Efetivamente é cedo para uma avaliação terminativa.

Sinais existem de que a exceção pode estar acontecendo, mas não há ainda condições de certeza. Mesmo em um eventual erro judiciário, este não significa necessariamente exceção, pois nem sempre se dá por fins políticos, embora sempre ocorra em agressão ao Direito.

A influência poderosa da mídia sobre nossa Corte Suprema no caso, por evidente, não se prende à mera lógica noticiosa. Parece claro que a mídia brasileira, cujos veículos de formas diferentes compartilham do apoio explícito ou quase explícito ao bloco de oposição ao governo e da repulsa irracional de nossas elites ao petismo e ao lulismo, busca um fim político e não noticioso ou moral, qual seja, produzir uma mácula na imagem histórica do governo Lula e do PT, matar politicamente o inimigo.

O processo transcorre já se sabendo, aparentemente, do seu resultado, característica típica de juízos autoritários ou de exceção. A Corte tem adotado posições de constitucionalidade duvidosa e de mudança evidente em sua recente, mas incisiva jurisprudência garantista no âmbito penal. Além da forma pouco “ortodoxa” como o julgamento se desenrola, conforme reconheceu o próprio ministro Ricardo Lewandowski.

A conclusão definitiva do caráter ou não de juízo de exceção no caso só será verificado após não apenas a decisão final, mas também pela coerência ou não de futuras decisões em casos semelhantes, mas que tenham atores diversos, como o do chamado mensalão mineiro, do “mensalão do DEM do Distrito Federal”, dos crimes do bicheiro Cachoeira, que envolvem o governador de Goiás, e aqueles do banqueiro Daniel Dantas. Para ficar em poucos exemplos.

Em Honduras, o presidente Manoel Zelaya foi deposto por uma decisão do Parlamento, onde não lhe foi oferecido qualquer direito de defesa, e por uma ordem liminar da Corte Suprema daquele país que determinou sua prisão sem prévia oitiva.

Tal ordem judicial poderia até ser aceita como compatível com a Constituição não fosse o presidente preso pelas Forças Armadas e não pela força de segurança pública, como ordenado pela Carta Magna hondurenha, e não tivesse sido expulso do país, em flagrante desrespeito a dispositivo específico da referida Constituição que impede a expulsão de cidadão hondurenho. A nulidade da ordem judicial só foi reconhecida pela Corte Suprema após o término do que deveria ter sido seu mandato.

No Paraguai, o desrespeito cometido pela sala constitucional da Corte Suprema de Justiça à Carta Magna foi ainda mais grosseiro. A Corte negou vigência ao artigo 17 da Constituição, que garante defesa “no processo penal, ou em qualquer outro que possa derivar pena ou sanção”. Obviamente, a cassação de mandato eletivo é uma sanção grave, mesmo se realizada em processo político. É bizarro juridicamente imaginar como adequado ao Estado de Direito a realização de um processo político de impedimento sem direito a ampla defesa, como ocorreu no caso de Fernando Lugo.

Tais casos evidenciam um fenômeno político e jurídico, ou, como disse Fontana, na “franja ambígua e incerta, na intersecção entre o jurídico e o político”, bastante incomum. A jurisdição torna-se fonte da exceção e não do Direito.

Como bem observou Giorgio Agamben, a exceção não se localiza na contemporaneidade apenas no âmbito da crise política ou na situação excepcional e temporária imaginada por Karl Schimitt, em que surge o estado de necessidade estatal como razão para a submissão do direito ao poder soberano do governo. Ela ocorre também no interior da rotina de nossas sociedades democráticas, como espaço de soberania absolutista, suspensivo do direito e dos direitos.

Os exemplos são vários e em quase todas as sociedades democráticas ocidentais: a prisão de Guantánamo e o “Patriot Act” nos EUA, o trato não humano destinado a estrangeiros em países europeus, as façanhas do Bope e o excesso de medidas provisórias no Brasil.

Agamben aponta a falta de uma teoria da exceção no Direito público, talvez porque grande parte dos juristas a considerem mais uma questão própria do território da política do que um verdadeiro problema jurídico.

De qualquer forma, quando se passa a vislumbrar o Judiciário de países de constituições democráticas como fonte da exceção, não há como não pensar o tema no âmbito do Direito, pois tais decisões repousam em fundamentações pretensamente jurídicas que servem de roupagem fraudulenta à decisão soberana absolutista. Essa crítica e denúncia da fraude é dever ético do operador do Direito, pois ele é quem tem o instrumental técnico apropriado para evidenciar o embuste. É seu ônus social, deontologia de sua profissão.

Sem pretensão de esgotar ou sequer ensaiar de forma científica o tema num texto jornalístico, creio que de plano, entendida a exceção como decisão ocorrente na rotina democrática ou mesmo como técnica ocasional de exercício do poder político no interior da democracia, podemos verificar duas categorias de exceção nos Estados contemporâneos, inclusive no Brasil.

Há um tipo de exceção meramente aparente, estabelecida de forma autorizada e regulada pelo Direito. Neste caso, a suspensão de direitos se concretiza em uma forma de “direito especial”, próprio a ser aplicado em situações de guerra ou grave conflito interno, como é o estado de necessidade alemão, os decretos de urgência e Estado de sítio italianos e franceses, as leis marciais e poderes de emergência da doutrina anglo-saxônica e o estado de defesa e o estado de sitio dos artigos 136 a 141 de nossa Constituição.

E há o segundo tipo, a exceção verdadeira ou real, em que por vontade política soberana, decisionista, há a suspensão do Direito, implicando a submissão do jurídico ao politico, sem qualquer racionalidade transversal entre essas dimensões da vida social.

A lógica do lícito-ilícito, própria do Direito, é superada pela lógica do poder própria da política, mesmo dentro de um tribunal. Neste caso, na jurisdição, o poder político da toga supera faticamente a força da lei.

Tal nefasto tipo de exceção se caracteriza pela simplificação da decisão a si mesma, sem qualquer mediação real pelo direito, por uma provisoriedade inerente, pois não trata de extinguir o direito, mas de suspendê-lo em situações específicas, por seu fim eminentemente político-soberano, em que o poder se apresenta de forma bruta e, por consequência, por sua não autolimitação, nem mesmo por qualquer regra de coerência ou racionalidade. Nesse último aspecto, a decisão judicial de real exceção não produz “jurisprudência” para situações semelhantes juridicamente, mas diferentes politicamente. Mudando-se os atores envolvidos ou o fim político, muda-se a decisão, retornando-se ao Direito ou produzindo nova exceção.

Em nossa conjuntura, a questão é clara: o caso do “mensalão” trata-se de exceção real ou de mera mudança ocasional em postulados jurisprudenciais da Corte?

Efetivamente é cedo para uma avaliação terminativa.

Sinais existem de que a exceção pode estar acontecendo, mas não há ainda condições de certeza. Mesmo em um eventual erro judiciário, este não significa necessariamente exceção, pois nem sempre se dá por fins políticos, embora sempre ocorra em agressão ao Direito.

A influência poderosa da mídia sobre nossa Corte Suprema no caso, por evidente, não se prende à mera lógica noticiosa. Parece claro que a mídia brasileira, cujos veículos de formas diferentes compartilham do apoio explícito ou quase explícito ao bloco de oposição ao governo e da repulsa irracional de nossas elites ao petismo e ao lulismo, busca um fim político e não noticioso ou moral, qual seja, produzir uma mácula na imagem histórica do governo Lula e do PT, matar politicamente o inimigo.

O processo transcorre já se sabendo, aparentemente, do seu resultado, característica típica de juízos autoritários ou de exceção. A Corte tem adotado posições de constitucionalidade duvidosa e de mudança evidente em sua recente, mas incisiva jurisprudência garantista no âmbito penal. Além da forma pouco “ortodoxa” como o julgamento se desenrola, conforme reconheceu o próprio ministro Ricardo Lewandowski.

A conclusão definitiva do caráter ou não de juízo de exceção no caso só será verificado após não apenas a decisão final, mas também pela coerência ou não de futuras decisões em casos semelhantes, mas que tenham atores diversos, como o do chamado mensalão mineiro, do “mensalão do DEM do Distrito Federal”, dos crimes do bicheiro Cachoeira, que envolvem o governador de Goiás, e aqueles do banqueiro Daniel Dantas. Para ficar em poucos exemplos.

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