Política

José Trajano dá um olé na intolerância política

Alvo de hostilidades por conta de seu ativismo político, o jornalista esportivo não cede à intimidação: “Não aguento ficar calado”

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Um dos mais respeitados jornalistas e comentaristas esportivos, José Trajano é um incansável defensor da democracia e crítico mordaz do discurso de negação à política em alta no País. Em 1986, engajou-se na campanha do antropólogo Darcy Ribeiro ao governo do Rio de Janeiro. Três décadas depois, uniu-se à resistência ao golpe que derrubou Dilma Rousseff.

Vítima do macarthismo que ronda as redações, não aceitou o silêncio imposto pela ESPN Brasil e acabou demitido. Aproveitou o recesso da lide profissional para alistar-se como voluntário na campanha de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio. Em todos os casos, uma lição de Darcy continua valiosa: o orgulho das derrotas sofridas no bom combate.

Em entrevista ao programa Jogo de Carta, exibido na tarde da terça-feira 15, Trajano falou sobre a sua saída do canal, os legados da Copa e das Olimpíadas, o “usurpador” governo Temer e o clima de intolerância política no País, do qual é vítima frequente. “Acabou a civilidade, é uma tragédia”. 

Jogo de Carta: Como foi a sua saída da ESPN Brasil?
José Trajano: Sou fundador do canal. Quando fui para a ESPN Brasil, ainda era TV Esportes, uma sociedade da Abril, malfadada Abril, com a ESPN americana. Foram 21 anos de casa. Quatro anos atrás, larguei a direção. Era diretor de jornalismo e de programação. Fiz um acordo, fiquei só como comentarista. Participava duas vezes por semana no programa Linha de Passe, ao lado do meu grande companheiro Juca Kfouri. Tudo ia bem, enquanto o Brasil seguia muito mal.

Não podia ficar quieto, comecei a participar de manifestações contra o golpe. Subi em palanques, assinei manifestos, fiz o que todo bom brasileiro deveria ter feito. Isso começou a incomodar a direção do canal. Diziam que eu representava a ESPN onde estivesse. Não concordava. Eles até poderiam dizer para eu não falar certas coisas durante o programa…

 

JC: Você também é cidadão, e não apenas um jornalista da ESPN.
JT: Isso. Entramos em choque, sentia que as coisas não estavam muito bem para o meu lado, e também fiz algumas críticas. Deveria ter ficado calado, mas às vezes a gente não aguenta. Falei de coisas que não gostava na programação, principalmente quando chamaram aquele engraçadinho do Danilo Gentili. Critiquei muito a ida dele ao canal. A ESPN Brasil começou a levar um tipo de gente que não tinha nada a ver com a história do canal simplesmente para agregar audiência. E, como bem sabemos, audiência nunca foi sinônimo de qualidade.

JC: Por conta de seu ativismo, você também sofre hostilidade nas ruas?
JT: Sim, e isso é até pior, porque não ocorre só comigo. No último domingo, fui ao Sesc Pinheiros ver o show do músico português António Zambujo. Ele está em uma temporada no Brasil cantando só Chico Buarque. Na medida em que ele cantava aquelas canções, uma mais bela que a outra, fiquei pensando: como aquele playboyzinho, filho de um playboyzão, teve a petulância de parar o Chico Buarque na rua para dizer que ele é um merda? É um acontecimento simbólico.

Tive de trocar o número do telefone, fui ameaçado no estádio do Corinthians, logo após criticar as vaias a Dilma Rousseff na Copa. Depois, fui hostilizado em restaurantes. Quando comentava qualquer coisa da ESPN Brasil, vinha uma enxurrada de comentários agressivos nas redes sociais: “Petralha, safado, vou te pegar”.

São tão idiotas que, com o anúncio de que vou fazer um programa de entrevistas no Canal Brasil, passaram a falar: “Cretino, agora vai mamar nas tetas do Temer?” Confundem Canal Brasil (da Globosat) com TV Brasil. Fui voluntário da campanha de Marcelo Freixo no Rio. Tive a ideia de levá-lo ao Maracanã, durante uma partida entre Flamengo e Corinthians, para panfletar na porta do estádio. Muita gente veio, pediu autógrafo. Mas também passavam aqueles fortões sem camisa, xingando e gritando o quê? “Bolsonaro”. O curioso é que Freixo disputava com Crivella.

JC: O Brasil já foi mais espirituoso. Tinha mais ironia, senso de humor.
JT: Lembro-me de um Roda Viva com o Darcy Ribeiro. Ele foi um dos meus grandes mestres. Participei da campanha dele para o governo do Rio de Janeiro em 1986. Ele participou do programa da TV Cultura e descreveu o perfil da elite brasileira, daquele jeito bem Darcy: “Essa elite mesquinha, covarde, rançosa, ignorante”. É isso. Agora acabou a civilidade, é uma tragédia.

JC: O que representa o governo Temer?
JT: Trata-se de um governo ilegítimo, usurpador. Temer é um grande traidor. Precisamos lembrar sempre, senão passa a impressão de que as coisas seguem normalmente. Foi uma agressão à democracia. Temer é covarde, não anda pelo País, está encastelado. Compõe com aquele grupo dele, Moreira Franco, Romero Jucá, Geddel Vieira Lima, gente da pior espécie.

JC: Enquanto isso, a crise se aprofunda. E o povo parece resignado.
JT: Em breve, o Brasil deve voltar ao Mapa da Fome das Nações Unidas com essa paralisação por 20 anos, proposta pela PEC dos Gastos Públicos. Há, porém, algo interessante em curso, a manifestação dos secundaristas. O símbolo é aquela menina, Ana Júlia, que deu um baile nos políticos da Assembleia Legislativa do Paraná. A ocupação das escolas está se disseminando pelas universidades. E os jovens estão tomando borrachadas, sendo ameaçados por esse pessoal do Movimento Brasil Livre, pela polícia. Estão jogando o Estado de Direito no lixo.

JC: A propósito do esporte, uma coisa me intriga neste momento: o quanto é importante no futebol um bom técnico?
JT: O Tite está aí para provar. Às vezes, um bom técnico é aquele que atrapalha menos, se for capaz de reunir o grupo. É claro que ele sabe preparar o time, mudou a maneira de jogar durante o jogo contra a Argentina. Viu que o Fernandinho estava começando a bater no Messi, o tirou daquela posição, botou o Renato Augusto e o Paulinho, ele sabe o que faz. O ambiente melhorou porque ele sabe se relacionar com os jogadores. E o Dunga era o contrário, era raivoso. Como o próprio Daniel Alves observou, “os jogadores são os mesmos”.

JC: O Brasil sediou uma Copa e uma Olimpíada. Que legado ficou para o esporte?
JT: De legado esportivo, nenhum. Li uma notícia hoje sobre a Arena Amazônica, um dos elefantes brancos, apesar de o ex-ministro Aldo Rebelo estar escrevendo um livro sobre como ganhamos a Copa. Ele não aprendeu a lição, aquilo foi uma vergonha. Não estou falando dos 7 a 1 para a Alemanha ou do sucesso do evento, os estrangeiros adoraram. Mas o que sobrou?

A média de público do campeonato amazonense é de 250 torcedores. Se somar o público de todos os jogos, deve dar uns 9 mil. Ninguém sabe o que fazer com a arena, e alguém tem de manter aquela estrutura. O Parque Olímpico é outro exemplo. A prefeitura do Rio adiou por três vezes a licitação para ver quem vai administrá-lo.

JC: E o legado social?
JT: Privilegiaram-se os bairros mais abastados. A Vila Olímpica é um conjunto de 31 prédios nas mãos do empreiteiro Carlos Fernando de Carvalho, dono da Carvalho Hosken, aquele senhor que disse que as moradias deveriam ser projetadas para ricos, e não para pobres. Em Londres, a Vila Olímpica foi construída para servir de moradia social.

O projeto visava justamente revitalizar as áreas mais pobres da cidade. No Rio, projetaram os imóveis para a classe média alta. Todo mundo festeja a Linha 4 do Metrô, que liga a zona sul à Barra da Tijuca, mas antes havia o projeto da Linha 3, que passaria pelo subúrbio, iria até Niterói e São Gonçalo, beneficiando um número maior de moradores.

JC: Isso é simbólico, demonstra que quem manda aqui é a casa-grande, ou a “minoria branca”, para usar a expressão de Claudio Lembo.
JT: Outra coisa emblemática é a construção daquele campo de golfe, em uma área de conservação ambiental. Você imagina o brasileiro andando pelas ruas da Barra com um taco nas costas para jogar golfe? Acho que sonham em transformar o Brasil em uma grande Miami.

JC: Sem falar da farra com recursos públicos. O Pan foi orçado inicialmente em 390 milhões de reais, mas custou 4 bilhões.
JT: E depois não puderam aproveitar a estrutura. Quem pratica atletismo e tem alto rendimento sofre horrores. O estádio Célio de Barros foi destruído na reforma do Maracanã. O Engenhão não está apto para o esporte. O Centro Esportivo Miécimo da Silva, em Campo Grande, tem uma estrutura sensacional, mas a pista de atletismo está abandonada.

O velódromo do Pan foi desmontado. Decidiram construir outro velódromo para as Olimpíadas. O Ministério do Esporte é um cabide de empregos. Há pouco tempo, foi entregue a um pastor. Às vésperas da Olimpíada, entrou outro político. Sempre foi deixado de lado.

JC: O que achou da entrevista do Temer para o Roda Viva?
JT: Não vi, mas li a respeito. Não perderia tanto tempo para ver este senhor falar. Pelo que soube, ele tirou o corpo fora sobre a votação do projeto que pretende anistiar os políticos que praticaram caixa 2. Disse ser assunto do Congresso. Outra declaração curiosa: avaliou que a prisão de Lula seria um problema, o País viraria de ponta-cabeça. Não sei o que queria dizer com isso, passou-me a impressão de estar com medo.

JC: Enquanto isso, o PT parece terrivelmente dividido. Há quem esteja disposto a brigar, outros que quer buscar uma conciliação.
JT: Só não entendo por que, depois de tanta confusão, alguns fracassos e erros terríveis, o presidente do partido, Rui Falcão, não renuncia e abre espaço para outros.

JC: Dentro do campo da esquerda, fala-se muito da necessidade de se construir uma Frente Ampla. Qual é a chance?
JT: Nenhuma. A esquerda agride-se demais. Há diferenças enormes, filosóficas, políticas, pessoais. De modo geral, os dirigentes partidários são arrogantes. Todos se acham donos da verdade, ninguém dá um passo à frente. Seria importante que os partidos de esquerda se entendessem, mas acho quase impossível.

Confira a íntegra da entrevista em vídeo:

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