Política

EUA começam a se sentir protagonistas no futebol

Em Nova York, imprensa atenta e uma nova geração de torcedores começam a colocar o esporte no rol das paixões nacionais

Em Hermosa Beach, na Califórnia, torcedores celebram a vitória dos Estados Unidos por 2 a 1 sobre Gana, na estreia das duas seleções na Copa do Mundo
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Peter S. olha para os televisores instalados no Bobby Van’s Grill ao mesmo tempo em que separa as pilhas de revistas a serem distribuídas nas prateleiras da livraria do Terminal 8 do JFK e conversa, pelo telefone, com um amigo de infância. O jovem de 24 anos está visivelmente contrariado: “Mas é muita cara de pau! Tu nem sabe onde fica Buenos Aires. Seria como se eu resolvesse torcer para a Rússia, terra dos meus avôs, por causa do meu sobrenome. E o mais perto que eu cheguei da Russia foi uma russa que eu peguei. E no Brooklyn!”.

A discussão é subitamente interrompida pelo gol do menino John Brooks, aos 41 minutos do segundo tempo, garantindo a vitória de 2 a 1 sobre Gana. O funcionário do aeroporto internacional de Nova York berra no celular: “U-S-A! U-S-A!”, e segue pegando no pé do amigo, neto de argentinos.

Peter não foi a única voz a celebrar na noite de segunda-feira, 16, nas principais cidades norte-americanas. A vitória dramática na primeira partida dos EUA na Copa do Mundo do Brasil e a comemoração que tomou conta de bares país afora atestavam frase do técnico da seleção americana de futebol, o alemão Jürgen Klinnsman. “Para nós, o jogo contra Gana é uma espécie de final”, ele disse, em uma das muitas entrevistas dadas para a imprensa americana.

Pois é justamente a cobertura atenta da mídia, aliada à atenção prestada por um número cada vez mais visível de torcedores, ainda que de ocasião, os sinais mais palpáveis do aparente fim de uma das máximas duradouras do futebol internacional: a de que os EUA, um dia, vão de fato abraçar o esporte favorito do planeta.

Se há alguma dúvida, confira a primeira página do tablóide The New York Post, toda ocupada pela imagem de torcedores pintados no rosto com as cores da bandeira americana, em Natal, e o título, em letras garrafais: “Fantástico! Vitória norte-americana explode em celebração por toda Nova York”.

Esqueça Pelé, Beckenbauer e o Cosmos nova-iorquino dos anos 70. Pule a Copa de 1994, vencida pelo Brasil em solo ianque. Nunca antes na história deste país um técnico da seleção de futebol masculina – por aqui, as meninas sempre foram as tais – teve de dar uma coletiva com transmissão ao vivo pela TV para explicar a decisão de não convocar determinado jogador.

A justificativa de Klinnsman, a aposta na renovação do grupo, o mais velho, em média de idade, no Brasil, de olho na Copa de 2018, foi menos significativa do que a reação irada de 300 milhões de especialistas, indignados com o corte do atleta em questão,  Landon Donovan, 32 anos, maior estrela do Los Angeles Galaxy. Estará o futebol, ou, vá lá, o tal do ‘soccer’, se tornando uma paixão nacional nos EUA?

“A raiva dos fãs com a não convocação do maior goleador da história do nosso futebol foi intensa. Parecia que estávamos tratando de beisebol ou de futebol americano. O técnico do Galaxy, por exemplo, disse, em tom irônico, que ‘se de fato temos 23 jogadores melhores do que Donovan, então estamos indo para o Brasil para disputar o título’”, lamentou a CNN. “E o Twitter, apesar de Klinnsman ter sido campeão do mundo pela Alemanha em 1990 como jogador e comandado sua seleção que chegou às semifinais na Copa de 2006, amanheceu naquele dia, infelizmente, repleto de xingamentos à nacionalidade do técnico”, prosseguiu em extensa reportagem.

Três semanas depois da polêmica, as ruas de Nova York ganharam um clima de pré-4 de Julho, o dia da independência norte-americana. Como o jogo contra Gana – a compreensível ‘final’ a que se refere Klinnsman, já que os demais adversários, Portugal e Alemanha, são, ao menos no papel, os adversários mais temidos – aconteceu às 18h na Costa Leste, bares de Nova York se prepararam para receber um exército de torcedores que, nos últimos quatro anos, transformaram completamente o cenário do esporte no país.

“É claro que o fuso horário, de apenas uma hora de diferença em relação ao Brasil, ajuda. Mas na Copa da África do Sul, os jogos mais disputados eram os dos países com população maior de imigrantes na cidade. Agora, desde ontem recebemos ligações, uma atrás da outra, de gente querendo reservar um lugar para ver o jogo no bar”, celebrava o bartender do dia no Roebling Sporting Club, um dos principais bares especializados em transmissões esportivas – e extenso cardápio de cervejas artesanais – da porção setentrional do Brooklyn.

Com um gol marcado em menos de um minuto de jogo, uma vitória com sabor de vingança – Gana eliminou os EUA na Copa de 2010 e venceu o escrete ianque na primeira fase, em 2006 – e o tento decisivo nos minutos derradeiros do segundo tempo, americanos sentiram na segunda o gosto de participarem como protagonistas do teatro do futebol mundial.

Para uma nova geração de torcedores, a sensação foi indescritível e a possibilidade de uma zebra para cima de Portugal já anima gente como o designer gráfico Criswell Lappin, durante anos uma das principais estrelas da revista especializada Metropolis. Uma de suas mais interessantes criações é a série The World 32, dedicada às seleções classificadas para a Copa do Brasil, que faz sucesso entre a comunidade artística americana.

Inspirado no trabalho do suíço Josef Muller Brockmann (1914-1996, com um quê do projeto de pôsteres de bandas punks Swissted, de Nicholas Felton e Mike Joyce, Lappin conseguiu filtrar informação e história em um produto com apelo visual para torcedores de todas as idades, especialmente para os mais novos.

“Moro ao lado do Prospect Park, no Brooklyn, e, ano após ano, vejo o número de crianças disputando as peladas de fim de semana aumentar de forma dramática. Há uma preocupação crescente com os riscos de concussões do futebol americano, esta é uma geração de pais que, como eu, pôde ver ao vivo uma Copa do Mundo e agora já pode até escolher para qual time torcer na Liga de Futebol Profissional dos EUA”, celebra o designer.

Lappin destaca o fato de os fãs americanos poderem visualizar, em The World 32, o fosso que separa sua seleção de gigantes como o Brasil e a Alemanha em edições de Copas. Mas também considera curiosa a vontade desperta de cultuar os poucos momentos gloriosos do passado, como a surpreendente vitória sobre os bichos-papões ingleses em Belo Horizonte, por 1 a 0, na Copa de 1950.

O editor-contribuinte de Esportes da revista semanal New York, Will Leitch, escreveu na semana passada sobre um dos momentos mais emocionantes da cobertura esportiva em sua carreira, em setembro, quando os EUA venceram o México por 2 a 0 em Columbus, Ohio, garantindo a vaga na Copa do Brasil. “Um baixinho vestido de George Washington gritou na minha cara, repetidas vezes: América! América! Filha da mãe América! SIIIIIM!”. Outro, bandana com as cores da bandeira cobrindo metade de sua cara, começou o tradicional ‘U.S.A! U.S.A!’, seguido imediatamente por centenas de vozes.

As pessoas abandonavam os carros para se juntar à festa, o trânsito ficou impossível. O goleiro da seleção, o veterano Tim Howard, disse, emocionado: “Esta é uma torcida sensacional, que se tornou um monstro”. Cadê a vantagem de torcida que o México sempre tinha contra a gente? Não, desta vez eram 24 mil lunáticos que celebraram a noite inteira. Parecia que eu estava na Europa”, contou o jornalista.

A semelhança com os europeus – ironizada em um artigo engraçadíssimo do também setorista Jonathan Clegg no Wall Street Journal intitulado “Os Pseudo-Torcedores de Futebol dos EUA” e centrado na mímica do comportamento de fãs ingleses nos estádios ianques – também é destacada pelo capitão do time americano, e autor do gol-relâmpago de segunda, Clint Dempsey, ao tratar da emergência do futebol no país.

“Em dia de jogo, os fãs do time se encontram no centro da cidade uma hora e meia antes da partida e marcham juntos entoando canções, os cachecóis ao alto, a bandinha tocando sem parar. Parece que Seattle é uma cidade localizada em outro continente”, disse a principal estrela do Seattle Sounders à reportagem da Economist em edição dedicada ao esporte.

Os números da ‘revolução americana’ no futebol são impressionantes. Há sete anos, dois jovens fãs dos cafundós do Nebraska criaram uma torcida organizada nos moldes das europeias, os American Outlaws. Pois os fora da lei hoje estão espalhados por 127 cidades, com 18 mil associados espalhados pelos quatro cantos dos EUA. Eles fretaram dois aviões para a Copa do Mundo do Brasil. Os torcedores ianques são, aliás, os de maior número entre os estrangeiros que compraram ingresso para a competição.

O público médio nos estádios americanos é de 18.600 pagantes, à frente da NBA e da liga de hóquei, mas ainda bem atrás do futebol americano, com impressionantes 68.401. A Forbes garante que o valor médio de um clube de futebol masculino profissional nos EUA é de US$ 103 milhões, uma valorização de mais de 175% entre uma e outra edição da Copa do Mundo.

Não por acaso, os direitos de transmissão dos jogos da Liga Norte-Americana foram negociados a US$ 90 milhões para o ano que vem, mais do que quadruplicando o valor da temporada passada. A Fox e a Telemundo, juntas, garantiram, por sua vez, pela bagatela de US$ 1.1 bilhão, o direito de transmitirem as Copas de 2018 e 2022, deixando a ESPN para trás.

Pesquisas mostram que o futebol é, pela primeira vez, o segundo esporte mais popular do país entre jovens de 12 e 24 anos, atrás apenas do futebol americano. E a troca de figurinhas de craques virou mania nacional, com o Wal-Mart e a Target vendendo os álbuns em todas as suas lojas e não mais apenas nas próximas a bolsões de população de maioria hispânica, como na edição de 2010. De acordo com a empresa responsável pelo produto, cerca de 7 milhões de álbuns já foram vendidos no país.

“Sei que volta e meia alguém prevê a explosão do futebol nos EUA, o esporte do futuro desde o verão de 1972. Mas desta vez é mesmo diferente. Pense no futebol norte-americano como uma banda de rock independente prestes a chegar ao estrelato. O que está acontecendo aqui é algo assim como uma expressão de patriotismo aceitável, cool, hipster. Fala-se muito na decadência dos EUA. Pois o futebol atrai tanto os jovens por ser, hoje, aqui, uma narrativa clara de ascensão”, acredita Leitch, cujo texto foi finalizado antes da vitória sobre Gana.

Ele nem imaginava que um torcedor mais empolgado fosse entrar, no calor das celebrações do jogo, na página da Wikipedia do novato John Brooks, o autor do gol salvador, para registrar, ainda que por alguns poucos minutos: “Jogador de futebol germano-americano nascido em 1993. Ele é o maior cidadão norte-americano desde Abraham Lincoln”. Peraltices do futebol.

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