Política

Jaques Wagner: Faltou ao PT politizar o povo

Em entrevista a Mino Carta, senador não descarta que a crise econômica atual possa precipitar um tensionamento social

O diretor de redação de CartaCapital, Mino Carta, conversa com o senador Jaques Wagner O diretor de redação de CartaCapital, Mino Carta, conversa com o senador Jaques Wagner
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Tenho a forte sensação de que se Hannah Arendt conhecesse Jaques Wagner gostaria muito dele. De fato, estou diante de um faiscador da verdade factual, denodado na sua busca para emitir ao cabo julgamentos tão precisos quanto justos. Ninguém como ele para analisar os eventos do passado próximo e nem tanto. Sua atuação dentro do PT foi muito importante e duradoura, e a respeito do partido cujos interesses defendeu com lealdade ele se atira a uma crítica apoiada em fatos.

Que diz Jaques Wagner? O PT carrega o pecado – mas ele prefere a palavra responsabilidade – de não ter promovido uma reforma político-partidária, logo no primeiro mandato de Lula, período em que público e privado mantiveram uma daninha proximidade.

No fim sobrou Lula, pai dos pobres com tendência a Robin Hood, mas incapaz de tirar dos ricos, de taxá-los conforme o tamanho dos seus haveres a bem de uma salutar desconcentração de renda, que, pelo contrário, acentuou-se mais e mais a ponto de transformar o País neste item o primeiro do mundo logo após o Catar, feudo de um sultão.

Instalado em quarentena no seu sítio a 12 quilômetros de Salvador, Wagner conta com a internet para manter as suas funções de liderança no seu estado e no País todo. Graças ao avanço tecnológico, ele organiza reuniões no presente momento com as autoridades de inúmeros centros baianos à vista das próximas eleições municipais.

Recusa-se a pronunciar o nome do presidente da República, mas espanta-se “com os discursos que a gente ouve”.

Explica que “as pessoas são fundamentalistas a ponto de repetirem o que o resto do mundo já entendeu. A terra não pode se tornar o reino das grandes corporações, o reino do acúmulo infinito”.

De resto, a maior dificuldade não é representada pela política econômica de Paulo Guedes, o Congresso, Senado e Câmara, imerge-se no neoliberalismo.

E Bolsonaro? Este trafega na névoa, nada sabe a respeito de coisa alguma, um títere parlapatão que neste momento serve aos desígnios dos eternos donos do poder.

“Acho que nós vamos sofrer muito, e se o povo não aguentar e precipitar uma erupção social, poderemos ter um encerramento mais ou menos rápido.”

Ele não enxerga, porém, um “cenário palpável de retirada dele”. Ocorre que o povo brasileiro carece de organização para se insurgir, e o motivo é fácil de detectar: a esquerda não cuidou de politizar as vítimas da desigualdade. Tudo o que pode haver, em função do crescimento do desemprego e dos índices de miséria, é um “tensionamento social”, uma inquietação latente de efeito por ora insondável.

Não posso dizer estar diante de um pessimista, neste meu bom amigo há reservas exorbitantes de energia e simpatia. E ele conta com compensações importantes, por exemplo, com as mãos, o coração e a mente de Fatinha, dona da cozinha, cujos quitutes eu invejo.

Não sei por que, mas de súbito me vem à cabeça, a despertar humores estimulantes nas entranhas, carne-seca com abóbora ou uma peixada mista, inebriada pelo leite de coco e pelo dendê. Espero poder repetir com meu velho amigo, muito menos velho do que eu, um daqueles jantares que já enfeitaram as nossas vidas.

A autocrítica

Sim, eu acho que ao PT cabe fazer autocrítica, mas também há duas formas de recomendar a autocrítica. Pode-se solicitá-las com um sentido renovador e propositivo, e há quem fale de autocrítica na verdade para acender mais a crítica e continuar tentando criminalizar o PT. Eu entendo que toda instituição como nós, com 40 anos de idade, com uma caminhada longa, e vou dizer exitosa, com saldo que considero positivo do ponto de vista da contribuição para a democracia, para as instituições, para o povo brasileiro, especialmente os mais sofridos. Não se trata de confessar culpas, e sim de apurar as responsabilidades. (…) Um erro grave foi não termos realizado a reforma política. Esse foi o caminho tortuoso da política brasileira, que já existia antes de nós, com coligação proporcional, com partidos artificiais, com uma série de situações que dificultam as tentativas de acertar o que não mudamos. (…) Algo que, felizmente, acabou, mas já querem voltar, o financiamento privado que foi a antessala da promiscuidade da relação público-privado. Então acho que esta é a grande responsabilidade do PT no primeiro governo do presidente Lula. Talvez tenhamos caído na mania de grandeza depois da vitória de 2002. (…) A primeira confusão deu-se na eleição municipal de 2004. O episódio protagonizado por Roberto Jefferson, ali começou a confusão, ou continuou aquela que já se fazia. O nosso pessoal às vezes fica zangado comigo porque uso um ditado popular, quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. (…) Tínhamos de botar regras. É óbvio que não tem ingenuidade alguma no que estou falando, quem é dono do capital sempre gostou de ver todos os políticos desesperados nos anos eleitorais precisando de suporte para campanhas cada vez mais milionárias, dependendo do dinheiro.

Renovação dos quadros

Tenho sido obsessivo na renovação dos quadros, mesmo com muito respeito aos meus cabelos brancos. O PT deve trazer a juventude para dentro do exercício da política e tem de fazer o que a gente deixou de fazer há muito tempo, que é a formação de novos quadros. (…) Precisamos abraçar questões que hoje mobilizam muito, e que, na minha opinião, têm um conteúdo, se não revolucionário, pelo menos de cunho reformista. A pauta da sustentabilidade ambiental é fundamental. Na verdade, o modelo de desenvolvimento capitalista afronta o meio ambiente e os seres humanos, ampliando a desigualdade social. (…) Hoje, todos falamos da pauta verde. Sou vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente e criei uma subcomissão aproveitando o trabalho da Cepal chamado de Big Push. Eu disse “não uso nome de língua estrangeira, arrume outro nome para chamar isso em português”. (…) Aí era um grande salto de sustentabilidade, mas é interessante, pois o preconceito é tanto que o pessoal falou “não coloca grande salto, não, que vão pensar que é alguma coisa chinesa” Então acabou virando um grande impulso pela sustentabilidade, é o que muita gente vem falando hoje.

Faltou politização

Fizemos distribuição de renda, mas não bulimos na concentração da renda. Durante 13 anos e meio, governamos e não conseguimos fazer o que era fundamental, distribuir. O que fizemos, claro, o Bolsa Família, e uma série de outros investimentos públicos, em um processo de inclusão, mas não bulimos lá em cima. (…) Tanto que hoje continuamos no segundo lugar na classificação mundial em concentração e somos o sexto pior em desigualdade social. Concordo com CartaCapital, faltou algo indispensável à obra de politização do povo. (…) Então o PT ficou com Lula, o grande pai de todos, o pai dos pobres, mas não houve uma politização, enquanto o governo atual politiza para o outro lado.

Golpe e democracia

Muita gente me pergunta: “Você acha que a democracia está ameaçada?” Pensam num golpe tradicional de tanque nas ruas. Eu digo que não se faz mais golpe como antigamente, não precisa fechar nada, basta você ter a co-participação de muitos. No impeachment de Dilma Rousseff pretendeu-se apontar como crime o que não era. A Câmara fez seu jogo político,e o Senado, que era o órgão julgador, julgou como quis, e o Supremo achou que não havia nada sendo violado. Por isso eu digo que os golpes atuais são golpes com a formalidade cumprida, não precisa fechar nada. (…) Aliás, o impeachment da Dilma completa agora quatro anos, começou em maio de 2016 e terminou em setembro de 2016, portanto, vai fazer quatro anos. Então, por isso quando em má-fé me perguntam sobre a necessidade de autocrítica, eu retruco: “E você, cara-pálida, já fez a sua por ter apoiado o golpe contra a Dilma?” Porque foi ali que vocês jogaram no chão as instituições. Agora estamos todos juntos de novo para defender a democracia, mas qual democracia? Aquela que impediu uma inocente que não tinha crime, a que prendeu e condenou um cidadão por convicção e não por prova? Somente agora a delação de Antonio Palocci foi para o lixo por ordem do STF. (…) Aliás, justiça se faça, ele fez a mesma delação para o Ministério Público Federal, que não a aceitou. Só quem aceitou foi a Polícia Federal, e daqui a pouco você descobre: o delegado que recebeu é o mesmo que Lula está processando há algum tempo por outros problemas. Era, portanto, alguém para ser considerado suspeito. É por isso que estou falando que a nossa democracia tem um grau de instabilidade que considero muito grande. Instabilidade também gerada pela formação de tantos partidos. Muitos viraram cooperativas de deputados, a tratar daquilo que interessa apenas para a reeleição de cada um.

O caos atual

Tenho 69 anos, estou na política desde os 17, no movimento sindical, estudantil e político-partidária a partir dos 28. Eu nunca vivi uma conjuntura tão complexa, tão desafiadora e incerta quanto esta. (…) Eu não pronuncio o nome do atual presidente, já falei genericamente de um método perverso de governar. (…) A primeira coisa que a gente precisa falar menos é o nome dele e tratar mais de questões que são da agenda popular, é a agenda do povo, saúde em primeiro lugar, emprego, renda e meio ambiente. Eu, por exemplo, estou agora em uma zona da Chapada, onde atuam voluntárias do meio ambiente. (…) Do ponto de vista do que está para acontecer, eu confesso que não é uma coisa simples livrar-se dele. Estendeu por mais dois meses o auxílio emergencial. Na pesquisa feita entre os que recebem o auxílio, a aprovação dele é 25% maior do que a média, ou seja, deve ser uns 30% ou 40% maior do que quem não recebe. Quando ele sair do auxílio, se ele já tiver aprontado o chamado Renda Brasil, provavelmente um jogo de trocar seis por meia dúzia, acaba o abono salarial, acaba uma série de outros programas sociais, mistura tudo, como vai ser o reflexo na cabeça das pessoas?

O homem fecha a boca

De um mês pra cá, ele está mais discreto, não mudou o caráter, mas deve ter mudado a orientação, alguém deve ter dito a ele “você não está ganhando nada xingando todo mundo”, tem 100 mil mortes e até agora você não fez um gesto de solidariedade. E também depois que a água bateu no bumbum do Fabrício Queiroz, e os cheques na conta da esposa, ele vai precisar que as investigações não prosperem. Então ele se cala por conveniência, é mudança de tática. Agora, nas próximas eleições municipais, podemos conseguir um resultado melhor do que em 2016, até porque não são tão comandadas pela questão nacional. Na maioria dos casos, a lógica é municipal. Em geral, o povo vota de cima para baixo, escolhe seu presidente e não quer intermediários, para deputado ele aceita intermediário por que ele acha que não vale muita coisa. (…) Por isso sou favorável a uma eleição única, sem reeleição, com mandato de cinco ou seis anos, se for, e de cima até embaixo. Há os democratas, que não gostam dessa ideia, mas eu digo que quem preside as eleições não é o vereador, não é prefeito. Você acha que eu fui eleito por quê? Se eu só tinha 50 prefeitos, por conta da onda que veio de cima de quatro anos do Lula, de 2002 a 2006, então os caras diziam vamos ver se esse cara faz alguma coisa parecida com a do Lula, a eleição é de cima para baixo, não de baixo para cima.

A fotografia de hoje

Eu vou falar da fotografia de hoje, porque a de amanhã eu não sei. Hoje em dia, duas semanas viraram longo prazo. Na fotografia de hoje, o atual presidente estaria no segundo turno, e aí não tem jeito. Eu vejo meu amigo Ciro, de que eu tanto gosto, acho um cara de uma boa formação, se perde muitas vezes pela boca, porque fala do que não precisa ou ofende a quem não merece, mas eu acho que não tem jeito, o povo no segundo turno de novo vai querer alguém de centro, de centro-esquerda, ou alguém com cara mais social do que os programas neoliberais que estão colocados aí. Nós estamos correndo um risco, a depender do auxílio emergencial e o que ele está chamando de Renda Brasil. Imagine o drama, em um país pobre como o nosso, onde a gente fez o Bolsa Família por absoluta convicção social de que abriria o País se você distribuísse renda, mas, se eu disser que isso não influiu na gratidão de quem recebe em relação ao presidente, eu estaria mentindo, claro que interferiu. (…) Então o nosso amigo Lula tornou-se o Robin Hood. Tirava aparentemente dos ricos, que não tirou, e dava para os pobres o nosso dinheiro dos impostos. Não taxamos grandes fortunas, não tiramos nada de quem você já sabe. Não conseguimos, não nos esforçamos, não sei. Então hoje a gente vive uma dificuldade com o segundo turno, aquilo que o Ciro diz. Precipita a polarização, em 2018 foi precipitada pelo PT. No caso a polarização é inevitável sobrar uma desculpa para quem não está numa polarização.

A pauta neoliberal

A pauta neoliberal não é do presidente, é do governo dele, é do Paulo Guedes. O ex-capitão não elabora em economia, tampouco em política industrial. Ele não elabora em coisa alguma. Quem é neoliberal é a maioria das duas casas do Congresso, a Câmara e o Senado. (…) Eu canso de ir ao interior e dizer em palanque nos ouvidos do prefeito: “Prefeito, cuidado, porque o deputado chamado à sua praça é o mesmo que mete a faca no seu povo pelas costas na reforma da Previdência, pela não valorização do salário mínimo”. Então a praça torna-se presente de grego, a oferecer espaço a uma maioria de gente conservadora. Por incrível que pareça, nesta pandemia é inevitável que a sensibilidade social tenha crescido.

Hora da tensão

Com essa taxa de desemprego que estamos sofrendo se acentua a exclusão social. Se ela será canalizada ou não para as ruas, numa manifestação reivindicatória, é uma incógnita. A última que tivemos foi a das Diretas Já, luta conceitual pela democracia, não era algo que tratava questões da economia. (…) Teremos, isto é certo, um tensionamento social. Se ele vai desembocar em manifestações, eu não sei dizer, mesmo porque acho não haver organização para tanto. No entanto, essas coisas acontecem sem ter um script predefinido. Vão virando uma bola de neve.

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