Política

Impeachment de Dilma: golpe ou medida de exceção?

Cenário no Brasil não é igual a 1964, nem ao impeachment de Collor. É mais parecido com os processos ocorridos em Honduras e Paraguai

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Dentre os muitos embates e discussões suscitados pelo possível impedimento da presidente Dilma Rousseff, afloram diversas questões relativas à natureza do processo.

Há quem o compare ao movimento que instalou a Ditadura Militar no país em 1964 e também, como seria de se esperar, ao impeachment sofrido por Collor, bem mais recentemente, em 1992.

E consolida-se entre aqueles que defendem a continuidade do mandato da presidente – não necessariamente por apoiar o seu governo, mas sobretudo pelo respeito à democracia e à ordem constitucional – a percepção de que o que está em curso é um verdadeiro golpe.

O processo em tramitação, que teve parecer favorável do relator da Comissão Especial instaurada na Câmara dos Deputados, na realidade, tem mais dessemelhanças do que semelhanças em comparação com os episódios citados.

A diferença fundamental em relação ao impeachment de Collor, por exemplo, é que neste caso havia fundamento jurídico adequado, já que o ex-presidente foi acusado de ter se beneficiado de um esquema de corrupção orquestrado pelo tesoureiro de sua campanha, Paulo César Farias.

Havia, portanto, a gravidade suficiente para caracterização de um crime de responsabilidade, o que não ocorre em relação ao impeachment que se avalia hoje. A presidente Dilma é acusada de cometer ilegalidades e inconstitucionalidades de ordem contábil e financeira, mas não de ter obtido qualquer tipo de beneficiamento pessoal.

Aliás, as medidas adotadas, as tais “pedaladas fiscais”, tiveram o intuito de pagar despesas do Estado com programas sociais, que são os mais relevantes na nossa ordem jurídica constitucional. A semelhança com o impeachment de Collor, portanto, é meramente formal, e não de conteúdo.

Já em relação ao golpe militar de 1964, embora possa haver alguma semelhança, ela não é preponderante. A ruptura constitucional que depôs o presidente João Goulart do cargo significou a assunção do poder pelos militares, de forma violenta e não democrática, a fim de estabelecer um governo de exceção que suspendeu direitos de toda a sociedade.

Esse governo de exceção, autoritário e ditatorial, se instalou sob uma aparência de provisoriedade, justificando-se e buscando legitimação no discurso do combate ao inimigo do Estado – no caso, o comunista.

Por essas características, podemos afirmar que ocorreu, sim, um golpe – e não uma revolução, como constava até pouco tempo em alguns livros didáticos de história. Nas revoluções, quem se mobiliza para assumir o poder, seja de forma violenta ou não, é a sociedade; e o faz visando a ampliação de direitos, e não a suspensão.

Na América Latina, golpes militares clássicos como os ocorridos no Brasil, na Argentina e no Chile, são um fenômeno do século XX, que ficaram para trás. No século XXI, estabeleceu-se no mundo ocidental um forte consenso democrático, ou seja, consolidou-se um discurso de legitimação da democracia como valor universal.

Entretanto, isso não significa que o autoritarismo deixou de existir no interior dos Estados democráticos. As medidas autoritárias apenas passaram a ser revestidas de uma aparência de legitimidade democrática, sem interdição declarada da ordem jurídica.

Essas medidas representam uma fraude, pois embora tenham uma forma jurídica que procura ter aparência de adequação, descumprem princípios fundamentais do Estado de Direito, sendo chamadas pela doutrina moderna de medidas de exceção, tal como descritas por Giorgio Agamben.

Esse tipo de medida de exceção vem sendo aplicada na América Latina, nos últimos anos, principalmente contra governos de esquerda, contando com a participação ativa do poder judiciário.

E, diferentemente da Europa e dos EUA, onde a exceção se produz por meio da lei ou de institutos semelhantes – como o Patriotic Act e leis antiterroristas europeias, altamente suspensivas de direitos de determinados grupos considerados inimigos do Estado –, na América Latina as medidas de exceção têm sido produzidas, no campo político, pelo judiciário ou pelo legislativo juntamente com o judiciário, e, no campo dos direitos fundamentais individuais, pela jurisdição.

Em Honduras e no Paraguai, em 2009 e 2012, respectivamente, interromperam-se mandatos presidenciais legitimamente constituídos, sem devido processo legal, contrariamente às normas constitucionais desses países, com o beneplácito ou atuação direta do judiciário.

Apenas para recordar, em Honduras, o presidente Manuel Zelaya foi preso por ordem da Suprema Corte do país e, então, retirado do exercício de seu mandato. Já no Paraguai, Fernando Lugo sofreu um processo de impeachment relâmpago, sem direito à ampla defesa, julgado pelo Parlamento e convalidado pelo poder judiciário.

Mas é verdade que também os governos de esquerda do continente valem-se de medidas de exceção travestidas de legalidade, a fim de penalizar seus oponentes. Na Venezuela, por exemplo, o judiciário tem sido utilizado para punir lideranças de oposição pela suposta prática de crimes comuns, quando na verdade são punidos pelo exercício de atividade política. Há, portanto, suspensão de direitos ,sob a aparência de ações legítimas e democráticas típicas de medidas de exceção.

Retomando a questão inicial, o que estamos vivendo hoje no Brasil não é igual nem ao golpe de 1964, nem ao impeachment de Collor. É mais parecido com os processos ocorridos em Honduras e Paraguai, embora um pouco mais sofisticado.

Caso se aprove o impeachment da presidente Dilma, sem fundamentação jurídica, teremos a concretização de uma medida de exceção com a finalidade política de interromper ilicita, inconstitucional e agressivamente um mandato legítimo, suprimindo a soberania popular e o direito político de mais de 54 milhões de pessoas, esvaziando, assim, a democracia.

Essa suspensão grave de diretos vem sendo justificada pelos oponentes da continuidade do governo com o argumento falacioso e cínico de que se busca combater o inimigo da vez – o corrupto, também personificado no “petralha” e no militante de esquerda.

O fato de se tratar de uma medida de exceção não retira, evidentemente, a legitimidade de o ativista político utilizar a expressão “golpe” para se manifestar e traduzir a ideia de ameaça de uma grave agressão à democracia e à Constituição. Sob o ponto de vista técnico, de teoria do Estado, porém, não há um golpe, mas sim uma medida de exceção.

Por fim, sobre a participação do Judiciário no atual caso brasileiro, vale salientar que embora o Supremo Tribunal Federal tenha determinado as regras do processo de impeachment, não avaliou seu mérito, ou seja, não emitiu avaliação sobre a causa.

E não há, repito, causa legítima para interromper o mandato da presidente, pois não existe crime de responsabilidade. Assim, se o impeachment se concretizar, o STF deve se manifestar, pois caso se omita, chancelará e será um dos agentes da medida de exceção em curso. 

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