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Igualdade racial

A criação de um fundo nacional transforma a reparação histórica à população negra em política de Estado

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Sem grilhões. Não se trata apenas de reconhecer os efeitos deletérios dos 300 anos de escravidão, mas de corrigir a persistente disparidade nacional – Imagem: Maí Yandara/Redes Sociais CPERS-Sindicato
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Em 16 de setembro, numa reunião memorável, a Câmara dos Deputados instalou a Comissão Especial sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 27/2024), que trata do Fundo Nacional da Igualdade Racial para a reparação da população negra. Sob grande emoção e com forte sentimento de unidade, todos os presentes se deram as mãos para manifestar o compromisso de acelerar e aprovar o relatório do colegiado até o fim do ano.

O autor da PEC da Reparação, deputado Damião Feliciano (União–PB), juntamente com os demais parlamentares negros, criou, em novembro de 2023, a Bancada Negra da Câmara, fundamental para mobilizar os esforços dos 120 deputados negros e pardos e articular com a presidência da Câmara a constituição do colegiado. A comissão especial tem a autora deste artigo como presidente, os deputados Márcio Marinho (Republicano–BA), Dandara (PT–MG) e Josivaldo ­(PSD–MA) como vice-presidentes, e o deputado Orlando Silva (PCdoB–SP) como relator. A composição suprapartidária é o ápice de um processo de avanços da representação negra na atual legislatura, que inclui a manutenção e o fortalecimento da Lei de Cotas e dialoga com o movimento “Quilombo nos Parlamentos”.

Um dos principais pontos da agenda da comissão é a discussão do conteúdo da PEC, que propõe a inclusão, na Constituição, de um fundo de 20 bilhões de ­reais, com aporte anual de 1 bilhão, destinado ao financiamento de políticas públicas e projetos voltados à promoção cultural, social, educacional e econômica da população negra. O fundo será gerido por uma instituição bancária federal e contará com um conselho consultivo, formado por representantes do Poder Público e da sociedade civil, de caráter permanente. A sua vinculação constitucional lhe dará status de política de Estado, prevenindo-o contra futuras mudanças de governo.

O fundo será constituído pelas seguintes fontes e recursos: 1. Indenizações a serem cobradas das empresas que, reconhecidamente, lucraram com a escravidão; 2. Doações internacionais; 3. Dotações orçamentárias da União; 4. Outras fontes previstas em lei. A cobrança de indenizações de empresas que lucraram com a escravidão tem sido discutida em vários países, inclusive nos Estados Unidos.

A justificativa dessa PEC demonstra que a reparação tem objetivos diversos e abrangentes. Ela compreende desde a questão do indispensável fundo financeiro até os aspectos econômicos, sociais e culturais que expressam a identidade da etnia negra e a sua valorização na sociedade enquanto cidadãos e cidadãs merecedores do mesmo respeito e igualdade de acesso e condições. A reparação é uma luta histórica do movimento negro que tem mais de cem anos. É uma demanda que faz justiça à população negra, que, na condição de escravizada, foi decisiva na construção da economia do Brasil Colônia, Império e República e que, depois da Abolição, foi mantida à margem da sociedade sem educação e em subempregos, vivendo em favelas e periferias, sofrendo todo o peso do racismo estrutural.

Se aprovado, será um marco na luta contra o racismo

As reivindicações essenciais do movimento negro foram objeto de debates e propostas da pequena, mas combativa, bancada negra na Constituinte de 1988. Desde então, a reparação tem sido defendida por vários projetos legislativos.

A reparação histórica da população negra não decorre apenas do reconhecimento da opressão cruel da escravização nem da estigmatização posterior de seus descendentes pelo racismo estrutural da sociedade brasileira. Insere-se também num contexto de absurda desproporção de recursos destinados para os setores privilegiados da população em detrimento do povo negro. Por isso, um dos objetivos do fundo é destinar recursos para o fortalecimento social, educacional e econômico da população negra, de tal modo que ela possa participar do jogo econômico em condições igualitárias. Os empreendedores negros e negras devem contar com condições de financiamento e de garantias para seus empreendimentos não ficarem em desvantagem significativa ante outros grupos.

Por todos esses motivos que beneficiarão o nosso país, a aprovação da proposta precisa ser apoiada por uma grande campanha nacional. Sabemos que não será algo simples e por isso temos de engajar fortemente a sociedade. A reparação não é de esquerda nem de direita, mas uma ação coletiva de justiça histórica e de promoção da igualdade racial para a maioria da população. Como muito bem disse a ministra da Igualdade Racial, Anielle­ ­Franco, “a reparação é uma luta histórica onde todos nós conseguimos, primeiro, nos assumir como pessoas negras, segundo, conseguir reivindicar, terceiro, fortalecer a democracia, e, daí, criarmos políticas públicas transversais”.

Nessa perspectiva, os embates contra o racismo e pela promoção da igualdade racial, que compreende a inclusão social e a reparação histórica, são partes essenciais da luta pela democracia e soberania nacional. Elas já fazem parte das políticas sociais do governo do presidente Lula. Dos 19,2 milhões de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família, 73% são chefiadas por pessoas­ negras. Na educação superior, das 94 mil bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), 30,7% são para negros.

Portanto, não é mera coincidência que a instalação da comissão da PEC da Reparação se dê no mesmo momento em que foi realizada a 5ª Conferência Nacional da Promoção da Igualdade Racial, sob o tema “Reparação e Justiça Social”. Impulsionada pelas bases sociais das populações negras e retomada depois de sete anos de paralisação pelos governos anteriores, a conferência foi exemplo da participação democrática de nosso povo.

As sessões da comissão especial serão realizadas em Brasília e em outros estados, o que representará uma enorme conquista para a população negra brasileira. Chegou a hora de alcançarmos a justiça histórica, levando essa mensagem poderosíssima para os estados e municípios. O Brasil precisa engajar-se na campanha para a aprovação da PEC, que será um marco na luta contra o racismo e em defesa da democracia. •


*Deputada Federal (PT/RJ) e presidente da Comissão Especial sobre a Proposta de Emenda Constitucional 27/2024.

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Igualdade racial’

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