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Hora da faxina

Primeira mulher a chefiar o Ministério da Saúde, Nísia Trindade anuncia um “revogaço” das decisões obscurantistas de gestões anteriores

Missão. “Lula tem reiterado a preocupação com represamento de exames, cirurgias eletivas e diversos procedimentos”, disse Trindade, ao tomar posse na segunda-feira 2 - Imagem: Walterson Rosa/MS e Ministério da Saúde
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Com 2,7% da população mundial, o Brasil concentra mais de 10% do total de mortes por Covid-19. Foram quase 700 mil óbitos e a tragédia poderia ser ainda pior, não fosse a existência de um Sistema Único de Saúde com expertise em programas de imunização em massa. Mesmo com um presidente da República sabotando sistematicamente a vacinação, ao atrasar a compra de imunizantes e ao semear fake news sobre a eficácia deles, o Brasil hoje dispõe de 81,7% da população protegida contra o coronavírus. Isso só foi possível graças ao trabalho desenvolvido por instituições centenárias, a exemplo da Fiocruz, que produziu mais de 153,2 milhões de doses da vacina ­Astrazeneca/Oxford apenas em 2021. Fundada em 1900 e presente em quase todos os estados, a Fiocruz foi responsável ainda pela fabricação dos primeiros kits para o diagnóstico de Covid-19, no mesmo mês em que foi confirmada a primeira morte pela doença no País.

O papel desempenhado pelo instituto no enfrentamento à pandemia pesou na decisão de Lula nomear a socióloga ­Nísia Trindade, que comandou a Fiocruz nos últimos seis anos, para chefiar o Ministério da Saúde. A falta de experiência na administração pública direta chegou a ser levantada por alguns críticos, que consideram o cenário desafiador demais para alguém que nem sequer geriu uma secretaria municipal de saúde. Não se pode, porém, menosprezar a importância da Fiocruz, com um orçamento ­anual superior a 5,4 bilhões de reais, algo intangível para boa parte dos municípios brasileiros, observa o médico sanitarista Gonzalo Vecina.

“Nísia Trindade é a pessoa certa na hora certa”, afiança o fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a ­Anvisa. “Sou até suspeito para falar, porque a apoiei na eleição da Fiocruz e cheguei a me manifestar publicamente contra a manobra de Jair Bolsonaro, que não queria reconduzi-la ao posto depois de ela ter sido reeleita pela comunidade acadêmica. Ela fez uma gestão fantástica, tem uma visão de mundo muito boa, sabe o peso da desigualdade na saúde e valoriza muito a pesquisa e o ensino”.

Na presidência da Fiocruz, a nova ministra controlava um orçamento bilionário

A avaliação é compartilhada pelo infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da USP: “Nísia é uma pessoa extremamente qualificada, administrou com competência a Fiocruz, tem um diálogo fácil com as pessoas e sabe se assessorar adequadamente. Claro que há outros nomes que poderiam ser indicados, mas ela também vem para reforçar a participação das mulheres no governo, o que é muito justo”.

Ao assumir a Saúde, na segunda-feira 2, Trindade lamentou o período de “negação da ciência” que marcou a gestão Bolsonaro e anunciou a extinção de dezenas de decisões obscurantistas tomadas por seus antecessores. “Serão revogadas, nos próximos dias, as portarias e notas técnicas que ofendem a ciência, os direitos humanos, os direitos sexuais reprodutivos, e que transformaram várias posições do Ministério da Saúde em uma agenda conservadora e negacionista”. Bastou dar essa declaração para a ministra se tornar alvo da artilharia bolsonarista, sobretudo de parlamentares que nem sequer enrubescem ao repetir tantas mentiras.

O deputado federal Mario Frias, ex-secretário especial de Cultura de Bolsonaro, compartilhou nas redes sociais uma manchete produzida pelo site Brasil Sem Medo, cujo editor é investigado no inquérito das fake news do STF, dizendo que Trindade anunciou o “fim das posições pró-vida do governo”. A publicação trazia um escandaloso alerta: “o aborto vem aí…”. Ex-ator da série global ­Malhação, Frias lamentou que “que alguns ‘cristãos’ ainda apoiam esse governo”. Em aparente tabelinha com o correligionário, a deputada estadual Ana C­ampagnolo, do PL de Santa Catarina, emendou nos stories: “Crente que vota no Lula vai pro inferno”. Deputado mais votado do Mato Grosso do Sul, Marcos Pollon estendeu o alcance da maldição: “Você católico que ajudou a eleger é responsável”.

Problemas. O programa Farmácia Popular foi abandonado e a cobertura vacinal despencou nos anos Bolsonaro – Imagem: Rodrigo Nunes/MS e Unicef Brasil

Na verdade, a ministra defende apenas o que é previsto em lei: o direito ao aborto legal em caso de estupro, de risco à ­vida ­da mãe e de feto anencéfalo. Espantosamente, o Ministério da Saúde criou empecilhos burocráticos para a interrupção da gravidez até mesmo nessas situações. Trindade prometeu ainda rever as recomendações para o tratamento da Covid-19 e os retrocessos na saúde mental. De fato, na gestão anterior, a pasta chegou a sugerir o uso da cloroquina e de outras drogas ineficazes contra o coronavírus, contrariando as indicações da Organização Mundial da Saúde. Na saúde mental, liberou a eletroconvulsoterapia, eufemismo de eletrochoque, e incentivou a internação de dependentes químicos em clínicas de reabilitação geridas por igrejas sem o mínimo de preparo.

O entulho reacionário representa, porém, o menor dos problemas da nova ministra. Descontadas as despesas extraordinárias para o combate da Covid-19, a Saúde perdeu 10,7 bilhões de reais entre 2019 e 2021, revela um estudo publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, mais conhecido pela sigla Inesc. Em perspectiva mais ampla, levando em conta o impacto do teto de gastos, um dos desastrosos legados deixados por Michel Temer, as perdas chegam a 60 bilhões de reais nos últimos cinco anos.

A “PEC da Transição”, negociada pela equipe de Lula no fim do ano passado, garantiu o acréscimo de 22,7 bilhões de reais no orçamento do Ministério da Saúde para 2023. “O momento é alvissareiro. Não apenas houve a recomposição dos mais de 10 bilhões cortados ao longo da gestão Bolsonaro, como sobraram 12 bilhões. Pela primeira vez na história, temos uma equipe que entra com recursos”, observa o ex-ministro Arthur ­Chioro, que fez parte do grupo de trabalho da Saúde no gabinete de transição. “Houve, porém, o desmonte de muitas políticas públicas, em todas as áreas. Não sobrou nada em pé. As filas para atenção especializada e a baixa cobertura vacinal estão entre os desafios mais urgentes. Os problemas que a nova ministra enfrentará são do mesmo tamanho, talvez até maiores, que a expectativa da população em relação à melhora dos serviços de saúde”.

Trindade parece ciente do tamanho da encrenca. “O presidente Lula tem reiterado a preocupação com represamento de exames, cirurgias eletivas e diversos procedimentos. Essa tem que ser uma agenda do Estado, da sociedade e da academia”, diz. A equipe de transição, da qual ela também fez parte, identificou ainda a desestruturação de políticas até então bem-sucedidas, como o Programa Nacional de Imunizações (PNI), o Mais Médicos, a Farmácia Popular e as ações para a prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, como a Aids. “Na verdade, o Ministério da Saúde perdeu a capacidade de coordenação do sistema, perdeu a autoridade sanitária. A ministra terá de reconstruir essa articulação rapidamente, pois tudo no SUS depende muito de uma concertação com os demais entes federativos”, avalia ­Chioro. “A União não coloca em prática política alguma nessa área. Tudo que é concebido em Brasília e financiado pelo governo federal acaba implementado pelos estados e municípios. Resgatar o pacto interfederativo é, portanto, o primeiro grande desafio”.

A “PEC da Transição” acrescentou 22,7 bilhões de reais para a saúde em 2023

Boulos concorda com a avaliação de que o Ministério da Saúde perdeu a autoridade sanitária nos desvairados anos de Bolsonaro. “É preciso voltar a levar a sério as ações de prevenção, por meio da vacinação e da vigilância epidemiológica, para evitar a repetição das catástrofes ocorridas nos últimos anos”, afirma. “O Brasil é uma referência mundial em campanhas de imunização em massa, totalmente gratuitas, mas agora corre o risco da reintrodução do sarampo e do retorno de doenças erradicadas, como a poliomielite, devido à baixa cobertura vacinal”.

Os dados do PNI reforçam o alerta do infectologista: em 2021, a vacinação infantil no país chegou a 68% de cobertura, frente a 97% em 2015. “É o pior nível em três décadas, graças ao descaso do governo Bolsonaro”, acrescenta ­Boulos. Com 33 milhões de cidadãos em situação de grave insegurança alimentar, segundo o último levantamento da Rede Penssan, divulgado em junho do ano passado, o Brasil voltou a registrar internações por desnutrição provocadas pela fome. A trajetória de queda da mortalidade infantil foi interrompida e a mortalidade materna aumentou.

Reconhecido por possuir um quadro técnico qualificado, o Ministério da Saúde também perdeu numerosos servidores que poderiam contribuir no esforço de reconstrução das políticas públicas. “Nos últimos anos, sobretudo após a chegada dos militares, na gestão do general Eduardo Pazuello, muitos foram perseguidos e anteciparam a sua aposentadoria ou se afastaram. Sim, diversos técnicos e especialistas permaneceram na pasta para resistir, mas outros tantos resolveram aderir. Nísia terá de caminhar sobre um campo minado”, adverte Vecina. “O Brasil precisa voltar a ter uma máquina pública republicana. Esses militares precisam ser enxotados e processados, porque muitos deles cometeram atos ilegais e devem pagar por isso. Chega de anistia. Precisamos aprender com a Argentina e buscar reparação exemplar, até para ­restabelecer a normalidade democrática”.

Além das denúncias de superfaturamento da compra de vacinas, os militares estão envolvidos em numerosos episódios de negligência. Talvez o mais escandaloso deles tenha sido protagonizado pelo próprio Pazuello que, avisado por ofício com dez dias de antecedência sobre a iminente falta de oxigênio em Manaus, permitiu que o estoque se esgotasse, o que provocou a morte de dezenas de pacientes de Covid-19 por asfixia. Vecina destaca, ainda, que a população precisa compreender qual era o real intento da dupla Temer e Bolsonaro, para que não cometa o mesmo erro no futuro. “O projeto deles sempre foi a destruição do Estado para a geração de lucrativos negócios para a iniciativa privada. Infelizmente, essa ficha ainda não caiu para muitos brasileiros, que renovaram o voto no capitão”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Hora da faxina”

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