Política

Heterodoxia e parceria de Moro com o MP, uma história antiga

Delação que relatou arapongagem sobre juiz e procuradores sustentou ações propostas pelos próprios “grampeados” contra “grampeador”

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Um caso iniciado há 14 anos sob os cuidados de Sergio Moro mostra que a heterodoxia dele, acusado por seus condenados e alguns juristas de agir como promotor, não como juiz, e sua dobradinha com o Ministério Público (MP) não surgiram na Operação Lava Jato. São novela antiga.

Moro deu ordens investigatórias contra uma pessoa, o enrolado advogado e lobista Roberto Bertholdo, que foi acusada em um acordo de delação feito por um processado, o ex-deputado estadual no Paraná Antonio Celso Garcia. Esse último contou que o juiz tinha tido telefones grampeados exatamente pelo alvo das posteriores ordens do magistrado.

Nessa arapongagem, caíram ainda procuradores de Justiça. Entre eles, Carlos Fernando dos Santos Lima, uma das estrelas da força-tarefa da Lava Jato. Baseado na delação, Lima seria depois um dos autores de várias denúncias criminais contra Bertholdo, o mandante das escutas.

Qual seria o problema num caso em que Moro julga, é grampeado e aceita uma delação contra seu grampeador? E em que procuradores gravados assinam denúncias contra seu algoz?

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Uma delação “está a exigir, para ter acolhida no sistema, requisitos que lhe são indispensáveis – condições de validade. Um: deve ser coletada perante autoridade equidistante – no modelo vigente, o juiz. Ou seja, sujeito imparcial – aquele que não tem interesse pessoal na produção probatória”.

É o que julgou o Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do caso Moro-Bertholdo, proposto pelo ministro Ricardo Lewandoski em um habeas corpus pedido pelo lobista-grampeador.

E prossegue o ministro: “A equidistância, todavia, não é exigida apenas dos magistrados (…) Na hipótese de um Procurador da República vítima de um delito, não pode ele funcionar no processo como acusador de seu algoz”.

O HC julgado em fevereiro de 2008 pela Primeira Turma do STF é uma história que começou em maio de 2003, com a abertura de uma ação penal por Moro contra Celso Garcia, o “Tony Garcia”, por crime contra o sistema financeiro, a custar a prisão preventiva do ex-deputado estadual paranaense.

Garcia e Bertholdo eram amigos. Deputado estadual na época, o primeiro concorreu ao Senado na eleição de 2002 pelo PPB, atual PP, tendo o segundo como suplente, pelo mesmo partido. Uma parceria profícua. O titular da chapa precisava que o colega limpasse sua barra na Justiça, fazendo trancar um determinado processo.

Consta que para atingir o objetivo, Bertholdo pediu a Garcia 600 mil reais para subornar um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). É que diz uma das ações penais que mais tarde atingiriam o advogado e lobista, até hoje em segredo.

Investigado por Moro, Garcia entregou o parceiro. Fez uma delação sigilosa, em algum momento entre 2004 e 2005, ocasião em que ainda não havia a Lei da Colaboração Premiada. Relatou que Moro e Santos Lima e várias outras autoridades tinham sido grampeados entre dezembro de 2003 e maio de 2004.

“Moro passou a investigar o acusado (Bertholdo) logo após ter sido comunicado por Antonio Celso Garcia que seria vítima do crime descrito no art. 10 da Lei 9296/96 (Lei das Interceptações Telefônicas), praticado por Bertholdo”, diz um HC do lobista no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), a instância acima de Moro. “Em 1º de fevereiro de 2005, esse Magistrado autorizou uma ampla devassa na vida pessoal e na atividade profissional do acusado.”

Nesse HC, a defesa do grampeador pedia acesso à delação usada contra seu cliente em ações penais. Queria saber o que exatamente Tony Garcia tinha contado.

Pretendia também usar esse material para anular todos as ações penais nascidas do acordo, sob o argumento de que Moro era “suspeito” para julgar Bertholdo, já que grampeado. Alguns autores da denúncia do MP, caso de Santos Lima, também eram suspeitos, posto que igualmente grampeados.

A primeira ação penal contra Bertholdo com base na delação foi proposta pelo MP em 26 de outubro de 2005. O lobista foi acusado de escutas ilegais contra Moro, Santos Lima e mais sete pessoas. Entre estas, outra estrela da Lava Jato, Vladimir Aras, secretário de Cooperação Internacional do ex-PGR Rodrigo Janot.

No mesmo dia, Lima e Aras assinam outra denúncia contra Berhtoldo. Dois dias depois, Moro decreta a prisão preventiva do acusado, alvo em 15 de novembro e em 12 de dezembro de 2005 de mais duas denúncias assinadas pela dupla de procuradores grampeada.

Moro jamais liberou a delação para a defesa de Bertholdo, que começou a solicitá-la em 2005. Em um de seus despachos, justificou-se de que havia “cláusula de confidencialidade”. Mais: “Para a defesa do requerente nas ações penais, basta saber que existe acordo e que ele prevê redução de pena”.

Mesma opinião do MP, segundo quem o acordo foi firmado “em caráter sigiloso, e tal sigilo não se trata de um mero ‘capricho’ ou algum tipo de estratagema” para esconder de Bertholdo. “Trata-se de autêntica cautela processual, inclusive para a segurança de pessoal envolvidas, haja visto ser notório que o paciente é indivíduo perigoso, tendo sido preso preventivamente.”

Foi por isso que a defesa do acusado entrou com um HC no TRF4. Em vão. Recorreu ao STJ, também em vão. E, por fim, ao STF, onde teve melhor sorte.

Em seu julgamento, o Supremo determinou que a defesa de Bertholdo fosse informada sobre quem propôs e quem homologou a delação de Tony Garcia, informações que bastariam para fundamentar o pedido de anulação das ações penais contra o advogado.

Daquelas quatro ações, duas foram arquivadas, uma prescreveu e outra, está trancada, sob segredo de Justiça.

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