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Herança maldita

Um imbróglio jurídico provocado por Jair Bolsonaro assegura a impunidade de 74 policiais condenados pela matança em 1992

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Imagem: Epitácio Pessoa/Estadão Conteúdo
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Se lei foi aplicada para mim, por que não serve para eles?”, indaga Maurício Monteiro, sobrevivente do Massacre do Carandiru, ao comentar a situação dos 74 policiais militares condenados pelo assassinato de 77 das 111 vítimas da violenta repressão a um motim na Casa de Detenção de São Paulo, há quase 32 anos. Entre 2013 e 2014, eles foram sentenciados a penas que variam entre 48 e 624 anos de reclusão, mas permanecem livres, beneficiados pela letargia do Judiciário e por um controverso indulto concedido pelo então presidente Jair Bolsonaro.

Após as decisões da primeira instância, os condenados puderam recorrer em liberdade. Em 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou os julgamentos, sob a alegação de que não houve a individualização da conduta de cada agente. Acolhendo um recurso do Ministério Público, o Superior Tribunal de Justiça restabeleceu as condenações em junho de 2021. A defesa dos policiais ainda bateu à porta do Supremo Tribunal Federal, mas o ministro Luís Roberto Barroso reconheceu o trânsito em julgado do processo. Não havia, portanto, mais espaço para apelações.

Parecia o fim da linha para os algozes do Carandiru, mas a novela judicial ganharia novos e dramáticos capítulos. Antes de deixar a Presidência da República, em 2022, Bolsonaro concedeu um indulto aos condenados. Em 2023, a Procuradoria-Geral da República questionou a constitucionalidade da iniciativa, por entender que crimes hediondos e de lesa-humanidade não podem ser objeto de perdão presidencial. Em decisão liminar, Rosa Weber, do STF, suspendeu a validade do indulto. Com a aposentadoria da ministra, o caso passou para a relatoria de Luiz Fux, que autorizou o TJ de São Paulo a julgar a revisão das penas enquanto o Supremo não tomava uma decisão definitiva sobre o tema. Só que, em agosto, o tribunal paulista decidiu que o indulto é, sim, constitucional.

História. O presídio agora é um parque público, mas os sobreviventes lamentam o desprezo pela memória do massacre

“Veja a dimensão do imbróglio: quando o ministro Fux autoriza o julgamento pelo TJ de São Paulo, os desembargadores entendem que o indulto é válido. Mas essa discussão ainda está pendente de decisão do STF, que eventualmente poderá dizer que é inconstitucional”, observa a advogada Luisa Moraes Abreu Ferreira, professora de Direito Penal da FGV de São Paulo. “Os policiais já foram julgados, a condenação transitou em julgado. Mesmo assim, o caso continua sem um desfecho.”

Dos 74 policiais condenados, cinco morreram impunes, sem cumprir um dia sequer de prisão. Mais de 20 estão aposentados com salários superiores a 10 mil reais mensais. Há poucos dias, um dos desembargadores do TJ paulista colocou em dúvida se o Massacre do Carandiru é mesmo um “crime contra a humanidade”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Damião Cogan argumenta que “não houve qualquer ataque armado à população civil, mas um ato legítimo do Estado de intervenção em presídio onde uma rebelião de grandes proporções ocorrera com inúmeras mortes de presos”. Para Ferreira, a declaração do magistrado é espantosa: “São PMs com condenações definitivas por homicídio doloso. Ou seja, não tem mais discussão sobre a condenação. Ainda assim, há o risco de que eles não cumpram pena por conta desse indulto do Bolsonaro”.

É um verdadeiro escárnio. Comandante da desastrosa operação na Casa de Detenção de São Paulo e condenado a 632 anos de prisão em 2001, o coronel Ubiratan­ Guimarães pôde recorrer em liberdade e elegeu-se deputado ­estadual no ano seguinte com o número 14.111, em alusão ao total de mortos no massacre. Durante o mandato, defendeu seu “legado” no complexo penitenciário. Em 2006, acabou absolvido pelo órgão especial do TJ de São Paulo, que entendeu que o policial agiu, durante a rebelião, no “estrito cumprimento do dever legal”. Meses depois, foi assassinado a tiros em seu apartamento. Dias depois, um muro em frente ao prédio onde morava amanheceu pichado com a frase: “Aqui se faz, aqui se paga”.

O Supremo tarda a analisar a validade do controverso indulto concedido pelo ex-presidente

Denunciado no processo do Carandiru por estar à frente de um pelotão que participou do segundo momento da operação, denominada de “varredura”, logo após o assassinato de 111 presos, o coronel Sergio de Souza Merlo foi nomeado por Tarcísio de Freitas para assumir a Corregedoria Administrativa do Sistema Penitenciário. Durante a tal “varredura”, os presos, já rendidos, foram obrigados a passar por um “corredor polonês”, formado por policiais militares, ocasião na qual foram espancados com golpes de cassetetes, barras de ferro, coronha de revólver, pontapés e mordidas de cachorro. Apesar de denunciado, Merlo não chegou a ser julgado, pois os crimes imputados prescreveram. De nada adiantaram os protestos de entidades de direitos humanas contrárias à nomeação. O coronel permanece no cargo designado pelo governador paulista.

Maurício Monteiro não sabe como sobreviveu à invasão no Pavilhão 9. “Foram meus orixás que me protegeram”, especula. Três décadas depois, é ativista pelos direitos humanos, mantém um canal no Youtube que leva o nome de sua matrícula prisional, “Prisioneiro 84901”, onde fala sobre o sistema prisional brasileiro e passa uma mensagem de esperança a jovens periféricos. Atualmente, trabalha como arte-educador no Parque da Juventude, que foi construído no lugar onde ficava o antigo Carandiru.

“Honestamente, não acho que a prisão desses policiais é o mais relevante. Claro que é importante eles cumprirem as penas. Eles foram condenados, como eu também fui. Mas o que eu mais desejo é reparação às vítimas e preservação da memória”, diz. O Memorial Carandiru conserva antigas celas e estava aberto a visitas, mas há algum tempo a administração começou a dificultá-las, denuncia Monteiro. “Primeiro, começaram a dizer que precisava agendar. Depois, passaram a reservar datas apenas para ocasiões especiais. É uma tentativa de apagamento da memória.”

Resistência. Maurício Monteiro luta para manter o Memorial do Carandiru aberto ao público. O coronel Ubiratan morreu impune – Imagem: Arquivo/Alesp e Redes sociais

André du Rap – não confundir com o homônimo chefe do PCC – tinha 21 anos quando os policiais invadiram o Pavilhão 9, onde estava preso. Para escapar da morte, o jovem se escondeu entre os corpos e ali permaneceu por horas, se fingindo de morto, até a polícia desocupar a área. Hoje, o sobrevivente do massacre é poeta, escritor e compositor de músicas de rap. Na prisão, aprendeu modelaria, corte e costura, e atualmente têm três marcas de roupa. Desenvolveu também habilidades de carpintaria, que transmite a outras pessoas de sua comunidade, ensinando-as a construir suas próprias casas de madeira, de até três andares, igual à que ele vive. Aos jovens, ensina ainda como montar e fazer manutenção de bicicletas. “A gente junta peças em ferro velho e monta uma bike do zero.”

Autor de um dos livros de referência sobre o massacre, Sobrevivente André du Rap (Editora Hedra), ele acredita que, com trabalho e vontade e política, é possível reconstruir o território do antigo Carandiru de forma integrada à comunidade. “Fizeram o Parque, que é muito bom para o lazer do povo, mas não podemos esquecer a tragédia que aconteceu ali.” Ele reivindica a instalação de uma biblioteca no espaço e sonha até com um complexo de moradias populares. “A gente sai do parque e tem um monte de família morando embaixo do viaduto, não precisava ser assim”, lamenta o escritor. “Minha vida é lutar por defesa dessa memória.” •

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Herança maldita’

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