Política
Guerra urbana
Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, alerta para a proliferação de fuzis e metralhadoras na Região Sudeste


Há tempos, o uso de armas de grosso calibre pelo crime organizado deixou de ser novidade no Brasil. O aumento constante nas apreensões de fuzis, metralhadoras e submetralhadoras nos últimos anos, no entanto, tem gerado preocupação entre autoridades da segurança pública e organizações da sociedade civil. O fenômeno revela que as principais facções do País estão se armando de forma cada vez mais intensa – e letal – para a guerra cotidiana travada nas ruas das grandes cidades brasileiras.
Presentes em ações do “novo cangaço” no Sul e em garimpos ilegais na Amazônia, os arsenais de guerra concentram-se, sobretudo, na Região Sudeste, berço do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC). Um estudo do Instituto Sou da Paz, publicado em revista acadêmica da London School of Economics, aponta que, em 2023, foram confiscadas 1.655 armas de uso militar no Sudeste, aumento de 11,4% em relação a 2019, quando houve 1.494 apreensões nos quatro estados da região.
O Rio de Janeiro mantém a liderança, com 847 armas de guerra apreendidas em 2023, alta de 32% em cinco anos. O Espírito Santo destaca-se pelo expressivo crescimento de 467% nas apreensões. O estudo aponta ainda a proliferação de fuzis dos calibres 5.56x45mm e 7.62x51mm, modelos cuja aquisição por Caçadores, Colecionadores e Atiradores (CACs) foi facilitada pelo governo Bolsonaro. Além disso, alerta para a propagação de armas artesanais, conhecidas como ghost guns, em território nacional. Consultor sênior do Sou da Paz, o advogado Bruno Langeani conversou com o repórter Maurício Thuswohl sobre os principais achados da pesquisa:
CartaCapital: Qual é o principal alerta do estudo?
Bruno Langeani: A pesquisa revela dois cenários alarmantes: a disseminação de armas de uso militar em todo o Brasil e, de forma ainda mais preocupante, na Região Sudeste – berço das duas facções criminosas mais influentes do País e da América Latina, o PCC e o Comando Vermelho. O dado é especialmente grave, considerando que fuzis, metralhadoras e submetralhadoras têm sido empregados pelo crime organizado tanto para manter e ampliar seus territórios quanto para viabilizar ações de alto impacto, como resgates de presos, execuções de autoridades e grandes assaltos.
Alerta. “Há subnotificação das ghost guns em todo o País” – Imagem: Redes Sociais
CC: No Rio, a disputa por territórios entre facções rivais – ou entre traficantes e milicianos – intensificou a aquisição de armas de guerra?
BL: Historicamente, o estado apresenta alta demanda por armamento militar, impulsionada pela lógica territorializada dos morros e pela fragmentação do poder entre facções. No entanto, esse fenômeno já se espalha por outras regiões, como a Baixada Santista e a Região Metropolitana de Vitória. Parte desse crescimento é atribuída à flexibilização do acesso a munições de uso restrito durante o governo Bolsonaro, por meio de normas mais permissivas do Exército, que autorizaram a compra legal dessas munições por civis e CACs. Os fuzis ficaram mais baratos e atrativos para o crime organizado.
CC: O Espírito Santo, que no passado enfrentou a infiltração de milícias na máquina pública, registrou um aumento de 467% no número de apreensões. Houve um recrudescimento do crime organizado no estado?
BL: Esse crescimento pode estar relacionado tanto à entrada de facções cariocas no estado, que têm expertise em armamento de guerra, quanto à melhora na capacidade local de repressão. Desde 2019, o Espírito Santo conta com uma delegacia especializada no combate ao tráfico de armas, que tem se destacado em operações contra armeiros ilegais, especialmente fabricantes de submetralhadoras artesanais, frequentemente apreendidas por lá.
CC: As armas de CACs têm sido desviadas para facções criminosas?
BL: Sim. Identificamos uma presença expressiva de fuzis de fabricação nacional nas apreensões. Em uma análise qualitativa de processos judiciais, encontramos diversos casos de desvios praticados por CACs recrutados pelo crime organizado. Eles registravam legalmente os armamentos no Exército e, em seguida, os repassavam às facções. Essa prática evidencia falhas graves na fiscalização e no controle do acesso a armamentos de uso restrito.
CC: Já existe um mercado de ghost guns a abastecer o crime organizado?
BL: Ainda há uma subnotificação das armas artesanais no Brasil, devido à dificuldade que polícias e equipes de perícia enfrentam para classificá-las corretamente. Inicialmente, esses fuzis eram montados por pequenos armeiros no Brasil e no Paraguai, utilizando peças importadas dos Estados Unidos e da China. Com o tempo, o crime organizado passou a operar fábricas capazes de produzir centenas de equipamentos, como revelaram operações da Polícia Federal em Minas Gerais, em 2023, e em São Paulo, em 2025. Isso desmonta a ideia de que o problema se restringe às fronteiras, ele está enraizado nos centros urbanos e industriais do País.
De 2019 a 2023, as apreensões de armamento de uso militar cresceram 11,4% no berço do PCC e do CV
CC: Qual é a sua expectativa em relação à PEC da Segurança Pública? O senhor considera importante a aprovação de uma Lei Antimáfia no Brasil?
BL: Não vemos nas propostas legislativas em debate, como a PEC da Segurança ou a Lei Antimáfia, a solução para o problema dos arsenais de guerra. Muitas falhas no combate ao tráfico de armas poderiam ser resolvidas com maior priorização política, coordenação entre os níveis de governo e fortalecimento da investigação policial.
CC: O pacote em discussão na Câmara traz algum avanço?
BL: O texto tangencia pontos importantes, mas ainda aposta na criação de novos crimes e aumento de penas, sem resolver o gargalo principal, que é a baixa capacidade de investigação e responsabilização dos envolvidos. Sem isso, penas mais duras não terão efeito prático.
CC: O crime organizado vem se expandindo no Norte e Nordeste. Existe alguma estimativa da circulação de armas de guerra nessas regiões?
BL: No Norte, a presença desse tipo de armamento aumentou um pouco, embora ainda permaneça inferior à verificada em outras regiões do País. Já no Nordeste, onde há forte expansão do Comando Vermelho e conflitos com facções locais, observamos que a apreensão de fuzis triplicou entre 2021 e 2025, considerando apenas os dados do primeiro semestre de cada ano. O número saltou de 41 para 129 armas confiscadas, segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Justiça. •
Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra urbana’
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