Política
Guedes força a barra para privatizar a Eletrobras, um negócio lesivo ao Brasil
Há inúmeros conflitos de interesse que envolvem empresas contratadas para auxiliar no processo de privatização


No início dos anos 1990, Paulo Guedes era dono do Banco Pactual, hoje BTG, e colaborava nas sombras com o governo Fernando Collor, ao lado de Daniel Dantas, principal executivo do Banco Icatu na época. Guedes e Dantas defendiam que Collor privatizasse logo duas gigantes, Eletrobras e Telebras, e que os negócios fossem no escurinho, nada de leilões públicos. Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso realizou parte do sonho da dupla, ao leiloar a companhia telefônica por 22 bilhões de reais, 91 bilhões em valores atualizados pela inflação, maior desestatização da história brasileira. Com Jair Bolsonaro mal nas pesquisas eleitorais, Guedes se esforça para sua passagem pelo Ministério da Economia completar o serviço desejado nos tempos colloridos e entregar a Eletrobras a particulares, no que seria a segunda maior negociação de uma empresa pública do País, mais de 60 bilhões de reais.
A cruzada do “Posto Ipiranga” inclui pressão sobre um ministro do Tribunal de Contas da União, Vital do Rêgo, a antecipação do balanço de 2021 da Eletrobras e a convocação de uma assembleia de acionistas da companhia para 22 de fevereiro, destinada a autorizar a privatização, apesar de o TCU, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo, ainda estar com a palavra. Essa sucessão de fatos não se explica só pela convicção ultraliberal do Chicago Boy. Quatro dos oito maiores ricaços do País têm interesse na coisa. Jorge Paulo Lemann (fortuna de 96 bilhões), Marcel Telles (64 bilhões) e Carlos Alberto Sicupira (49 bilhões) são do fundo 3G Capital, detentor de 10% das ações da Eletrobras. André Esteves (39 bilhões) é do BTG (ex-Pactual), banco que é um dos líderes de um sindicato montado sem licitação pela estatal de energia para operar a privatização. Montado, diga-se, pela diretora-financeira, Elvira Presta, ex-executiva da Ambev, cujos donos são os endinheirados do 3G.
Se Guedes tenta materializar sua visão de Estado mínimo e se o “mercado” saliva, o povão tem motivos para assombrar-se. O plano privatizador, desenhado pelo time do ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Albuquerque, contém dispositivos capazes de levar o patrimônio público a ser vendido a preço de banana e de encarecer (mais) a conta de luz a partir de 2023.
Vital do Rêgo, do TCU, vê riscos ao Erário e potencial prejuízo aos consumidores. Técnicos do tribunal estranham os cálculos do valor da empresa , que teria omitido informações – Imagem: Waldemir Barreto/Ag.Senado
Técnicos do TCU e do gabinete de Vital Rêgo identificam, conforme apurou CartaCapital, omissão nos cálculos governamentais usados para definir o valor a ser pago como bônus de outorga pelos futuros controladores da Eletrobras, quando eles assinarem com a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel, contratos de exploração de usinas por 30 anos. Os cálculos excluíram a possibilidade de uma terceira casa de força funcionar na Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. Tucuruí, uma das maiores usinas do planeta, opera com duas casas de força, geradoras de 8,3 mil megawatts. O plano de uma terceira remonta a 2013 e ampliaria a capacidade em 25%, o que valorizaria a usina e, portanto, deveria ser considerado no valor da outorga, em princípio, de 25 bilhões de reais.
Há outra questão que agita os bastidores do TCU quanto ao valor da Eletrobras, uma discussão sem um número pronto, mas com potencial bilionário. O uso crescente de fontes de energia renováveis, como a eólica e a solar, levanta mundo afora o debate sobre a constância dessas fontes. São geradoras intermitentes, que, para funcionar, dependem de vento e sol, não disponíveis o tempo todo. Daí que se discute: os negócios no setor elétrico deveriam ser feitos com base na energia entregue pelas usinas? Ou seria melhor ter como base a capacidade de cada geradora? Nessa segunda hipótese, uma hidrelétrica vale mais. Embora sempre haja risco de crise hídrica, a oferta é mais certa, firme, como se diz no mercado, do que aquela de uma eólica, por exemplo.
Essa nova fronteira teórica e mercadológica já dá as caras aqui. Em 21 de dezembro, a Aneel fez um inédito leilão de compra de energia baseado na capacidade (potência) dos fornecedores. Quatro dias antes, o ministro Albuquerque havia baixado uma portaria, de número 32, sobre “Leilão para Contratação de Reserva de Capacidade, na forma de potência”. Apesar disso, ele é contra calcular o valor da Eletrobras, para fins de privatização, levando-se em conta a capacidade. Em nota de 3 de fevereiro, o ministério disse que não há legislação nem referenciais técnicos consistentes para avaliar a estatal a partir da capacidade das usinas. A CartaCapital a pasta afirmou que o que está em questão é a “precificação da energia”.
O CONTROLADOR PRIVADO TERÁ NAS MÃOS 48% DO ESTOQUE HIDRELÉTRICO E 50% DAS LINHAS DE TRANSMISSÃO
O que se desenha na Eletrobras lembra o modelo de venda da Vale, em 1997. A mineradora foi leiloada por 3,3 bilhões de reais (corrigindo-se pela inflação, 25 bilhões hoje) sem que o governo levasse em consideração que a companhia tinha jazidas para quatro séculos. “Sim, é verdade que é difícil medir o valor da ‘potência’, da ‘capacidade’. Mas a Aneel acaba de realizar um leilão de potência, algum parâmetro já existe”, diz o engenheiro Mauricio Tolmasquim, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética, a EPE. “O fato de se ter dificuldade de medir esse serviço não significa que não se deva medir. De alguma forma isso tem de ser incorporado ao preço (da Eletrobras e da outorga).”
Quanto mais valiosa for a companhia, maior teria de ser a cobrança de outorga. E quanto maior o bônus, maior será o impacto nas futuras tarifas elétricas, pois os compradores da estatal vão botar tudo na conta de luz. Tentar evitar disparadas tarifárias foi a principal alegação de Vital do Rêgo ao pedir, em 15 de dezembro, para interromper a deliberação do TCU sobre o modelo da desestatização, julgamento que será retomado na terça-feira 15. Ele queria tempo para examinar a papelada. Sem o aval da Corte de contas, o governo não pode concluir o negócio.
Um dia antes, o ministro almoçara com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na casa de um colega de tribunal, Walton Alencar. “Ele nos disse ontem que o maior problema que impõe essa escalada inflacionária chama-se energia elétrica. Será que hoje, em sã consciência, nós podemos ir com a privatização sem que essas questões sejam estudadas?”, relatou Rêgo na ocasião. A eletricidade ficou 21% mais cara em 2021, o dobro da inflação oficial, por obra da crise hídrica. Foi um dos fatores responsáveis pelo estouro do limite máximo de 5,25% da meta de inflação. O preço da energia, como o dos combustíveis, encarece quase todas as mercadorias, pois é um custo de produção. O estouro obrigou Campos Neto a enviar uma carta a Guedes sobre o ocorrido. O documento de 14 páginas cita nove vezes a expressão “energia elétrica” e quatro, “escassez hídrica”.
Lemman e Esteves, dois interessadíssimos na desestatização da companhia – Imagem: Marcos Rosa e Illinois Economics School
O “Posto Ipiranga” começou a pressionar Rêgo dois dias após a suspensão do julgamento. Em um café com jornalistas, afirmou que o procuraria para conversar. Questionado por CartaCapital se houve a conversa, o gabinete do ministro do TCU não respondeu. Em 28 de janeiro, Guedes aproveitou o anúncio de dados fiscais de 2021 para voltar à carga contra Rêgo: “Sabemos do apoio dele à causa (privatizadora)”. No Estadão de terça-feira 8, insistiu: “Quero crer que o TCU está apenas dando uma ajuda para que a coisa corra de uma forma mais suave”.
A Corte de contas paralisou a deliberação, mas permitiu ao governo manter os estudos sobre a privatização. Esta terá duas etapas. Na primeira, a Eletrobras lança novas ações na Bolsa, e o governo não pode comprá-las. O naco federal diluir-se-á, e o maior sócio será privado. Na segunda, assinam-se novos contratos de concessão, por 30 anos, entre a Eletrobras e a Aneel. Essa operação deverá ser aprovada em 22 de fevereiro em uma assembleia extraordinária de acionistas convocada pela estatal em 20 de janeiro. A convocação violou a decisão de dezembro do TCU, que autorizara os estudos, mas condicionara “a eficácia de medidas concretas” à “apreciação do mérito do processo” pela Corte.
Diante da violação, não surpreende que o ministro do TCU Jorge Oliveira, amigo de Bolsonaro e ex-chefe do Jurídico da Presidência, tenha agido para o julgamento ser retomado antes da assembleia da Eletrobras. Graças a ele, na quarta-feira 9 a Corte marcou a sessão para o dia 15. Em 23 de fevereiro, um dia depois da reunião dos acionistas, a estatal divulgará seu balanço de 2021, outro capítulo esquisito. A contabilidade costuma ser apresentada no fim de março. Na segunda-feira 7, a companha comunicou a antecipação. É, parece, uma forma de tornar seus números conhecidos pelos interessados na privatização. É, também, uma temeridade, diz um funcionário da Eletrobras habituado a se debruçar sobre os dados da casa. O balanço incluirá os dados das subsidiárias Furnas e Eletronorte? É o que ele questiona. Não custa lembrar, diz a fonte, que fraude contábil levou à falência uma megaempresa de energia norte-americana em 2001, a Enron.
Ao contrário das promessas do governo, a tendência é de uma alta expressiva nos preços de energia – Imagem: iStockphoto
Com correrias e atropelos, Guedes e companhia estrangulam o espaço para discutir pontos obscuros da privatização. Debatê-los era o pretendido por Vital do Rêgo ao brecar uma decisão em dezembro. Ali, o ministro mencionara três aspectos que mereciam lupa. Um era o fim da cotização, mecanismo que o governo Dilma Rousseff instituiu em 2012, a fim de baixar tarifas para a população e a indústria. Essa regra permitiu adiantar a renovação de contratos de usinas da Eletrobras com a Aneel que venceriam até 2017 e esticá-los até 2042. As geradoras que entraram na cotização são antigas, o investimento para construí-las está amortizado, caso de Furnas, em Minas Gerais. Por essa razão produzem energia barata, uns 70 reais o megawatt-hora. Segundo um documento de 2016 da Aneel, intitulado “Por Dentro da Conta de Luz”, a cotização tinha reduzido as tarifas em 20,2%, em média.
A privatização da Eletrobras acaba com a cotização. As usinas da estatal poderão cobrar os preços praticados no mercado livre. Neste, o valor médio do megawatt-hora no ano passado foi de 158 reais. Se a cotização diminuiu tarifas, é de se supor que seu fim provocará o oposto. Para a Aeel, a Associação dos Empregados da Eletrobras, será uma quebra de contrato com 110 milhões de lares, aqueles abastecidos por energia de usinas cotizadas que deveriam ter benefícios por mais 20 anos, até 2042. Detalhe: Tucuruí poderia entrar na cotização em 2024 e colocar mais energia barata na praça.
Para a descotização não empurrar as tarifas, o Conselho Nacional de Política Energética, comandado pelo ministro Albuquerque, definiu em agosto que a Eletrobras privatizada terá de recolher 64 bilhões de reais, até 2047, à Conta de Desenvolvimento Energético, fundo que subsidia a população de baixa renda. Um pagamento que será fixo em 2,6 bilhões a partir de 2027. “Provavelmente, o valor do aporte anual não amenizará os acréscimos tarifários advindos da privatização. Até porque esse impacto também é desconhecido”, disse Rêgo em dezembro. Segundo ele, apesar de a cotização representar 15% do consumo nacional, a Aneel não apresentou estudos satisfatórios a respeito de tarifas após a privatização.
HÁ INÚMEROS CONFLITOS DE INTERESSE QUE ENVOLVEM EMPRESAS CONTRATADAS PARA AUXILIAR NO PROCESSO DE PRIVATIZAÇÃO
Sob Bolsonaro, o regulador joga na retranca. Em um relatório de 2017, tempos de Michel Temer, a agência apontava que a privatização teria “efeito perverso sobre o custo de energia”, uma alta de até 16%. Em 2018, seu então diretor-geral, Romeu Rufino, disse que descotizar traria “um impacto significativo e por um longo período”. No atual governo, a Aneel e o Ministério de Minas e Energia só apresentaram certos números às vésperas da votação da lei da privatização no Senado, em junho de 2021. A conta residencial cairia 6,34%. O pressuposto era de que a energia custaria no mercado livre 155 reais. Dois meses depois, o Conselho de Política Energética subiu a estimativa para 233 reais entre 2022 e 2025. Um engodo e uma bomba-relógio para o próximo governo. A propósito: o diretor-geral da Aneel, André Pepitone, será diretor-financeiro de Itaipu, indicado por Albuquerque, prova de que é da confiança do governo.
“As contas do governo estão totalmente erradas”, diz a economista Clarice Campelo de Ferraz, diretora do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético, o Ilumina. “Mas o mais importante a salientar é o amanhã: como a gente fica sem esses ativos? Estão criando um monstro. Você vai ter um agente privado que detém 48% do estoque hidrelétrico do País, além de 50% de linhas de transmissão. É ele que vai definir o preço da eletricidade do País, no limite vai estar controlando o nosso índice de inflação. É uma loucura.”
Se tudo correr conforme o script governamental, esse pessoal que vai se esbaldar ouvirá a boa-nova da certeza da privatização da boca de Bolsonaro e Guedes nos dias 22 e 23 deste mês, em um evento do BTG. Banco que, como se viu, é interessado na Eletrobras e em energia. Ele lançou há pouco um investimento que, na prática, significa apostar na alta do preço da eletricidade no mercado livre. Antes de integrar o sindicato montado pela estatal para operar a própria privatização, tinha sido agraciado pela companhia com outro contrato sem licitação, em maio de 2017. O objetivo era auxiliar a venda de ativos da holding. O conselho de administração da Eletrobras era comandado pela economista Elena Landau. Que, aliás, tem feito críticas à privatização a caminho, apesar de ser fanática por desestatizações. O conselho do BTG era chefiado pelo ex-marido de Elena, Pérsio Arida. O BTG controla uma empresa térmica, a Eneva, e comprou a maior consultoria privada do setor elétrico em 2020, a PSR.
Gleisi Hoffman e Tolmasquim criticam o processo de privatização – Imagem: Luis Ushirobira/Valor/Folhapress e Gustavo Bezerra/PT na Câmara
Tem mais conflitos de interesse na Eletrobras e sua privatização. A diretora financeira, Elvira Presta, fez carreira no grupo empresarial dos ricaços sócios do 3G, fundo dono de 10% das ações da estatal. Outro caso de conflito de interesses, situação para a qual há uma lei de 2013 a caracterizar esse tipo de situação como improbidade, é o do Grupo Genial. Este possui uma corretora de valores que controla um fundo detentor de 5% das ações da Eletrobras. Outra firma do grupo foi contratada pelo BNDES para um pente-fino pré-privatização. Um terceiro braço do grupo recomenda a clientes que comprem papéis da estatal. E um quarto tem uma comercializadora de energia, conforme revelado por um representante do Genial em janeiro, em uma audiência pública do BNDES. O homem por trás do Genial é o empresário Lirio Parisotto, de 2011 a 2018 suplente do senador Eduardo Braga, do MDB do Amazonas, ex-ministro de Minas e Energia.
Conflitos à parte, a privatização vai vingar? O jogo de forças no plenário do TCU pende para o lado do “sim”, mas a esperada contundência do voto de Vital do Rêgo pode mudar tudo. No “mercado”, há opiniões divididas. Um analista político diz que na Faria Lima pouca gente crê em revés. Um outro pensa o contrário, especialmente após ter ouvido de um líder governista no Congresso nos últimos dias que seria melhor não concluir a venda, por causa da eleição. No PT, que vê Lula folgado à frente nas pesquisas, o economista Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, disse ao site de CartaCapital: “Espero que essa privatização não vá para frente, é um ato lesivo ao consumidor brasileiro e ao contribuinte”.
A presidente petista, Gleisi Hoffmann, prega ser “urgente” que o TCU barre a desestatização, diante da subavaliação do governo no valor da Eletrobras. Ela lembra que algo similar ocorreu na Petrobras, com a venda da refinaria baiana de Landulpho Alves, hoje rebatizada de Mataripe. O negócio foi selado com árabes por 10 bilhões de reais, mas uma ação popular questiona o negócio e aponta que o valor deveria ser entre 17 bilhões e 21 bilhões. Essa refinaria, aliás, tem cobrado preços mais caros do que a Petrobras, sinal de que privatização costuma ser sinônimo de peso maior no bolso dos consumidores.
Com a palavra, o TCU. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Tacada final”
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